Quem mora fora do Brasil

Quem mora fora do Brasil tem sempre mais ou menos a mesma lista de saudades, normalmente gastronômicas mas nao só: churrasco, guaraná, leite condensado, Catupiry, coxinha de galinha, limão verde, pé-e-mão-derreau etc – os clássicos. Mas a lista das saudades inclui uma coisa aparentemente simples mas que faz toda a diferença do mundo: o ralo. O conceito de lavar ambientes – a cozinha e o banheiro – causa tanta estranheza nos não-brasileiros quanto causa em nós o hábito europeu de lavar a cabeça só uma vez por semana, e de não tomar banho todo dia.

Senhores, eu não acredito em lendas urbanas, em unanimidades burras. Coisas como “francês fede”, “italiano fala alto e gesticula”, “napolitano é tudo safado” não se espalham pelo mundo à velocidade da luz se não tiverem um mínimo de fundamento científico. O francês realmente fede, como aliás quase todos os europeus, em particular aqueles do leste, socoooooorro que bando de bodes; os italianos berram e gesticulam muito; Napoli è a capital italiana da picaretagem DE VERDADE. Pois então: sair na rua de cabelo molhado é quase uma heresia pros europeus. Não tem UM dia em que alguém me veja de cabelo molhado (e olha que eu, proprietária de cabelo ruim e portanto não passível de lavagens diárias sob o risco de ressecamento total eterno e irreversível, só lavo dia sim, dia não) e não diga: nossa, menina, mas você com esse cabelo molhado assim… Como se fosse uma coisa do outro mundo. Eu não seco o cabelo nem no inverno, porque cabelo ruim e secador de cabelo são coisas tão incompatíveis quanto abacaxi e salada – desculpem, mas eu ABOMINO a combinação doce-salgado – ainda mais no verão marroquino que tá fazendo aqui! Mas eles acham estranhíssimo. Também não tomam banho todo dia – dão “uma lavada” nas partes íntimas, pés e sovacos. Em todo o nosso tour da Itália eu e Valéria encontramos mil banheiros só com chuveirinho, e nos perguntamos milhares de vezes como uma criatura consegue tomar banho com uma mão só, enquanto a outra segura o chuveirinho. Aqui na roça uma desculpa frequente pra “lavada” em vez do banho decente de chuveiro é a sensação de afogamento causada pela água do chuveiro caindo em cima da cabeça e no rosto. Então tá.

Desde quando me mudei sou a feliz embora temporária usuária de um banheiro provido de ralo! CLARO que o supracitado ralo não foi colocado ali com o objetivo de escoar a água de lavagem do banheiro. Simplesmente o chuveiro não é fechado em um box, fica no canto do banheiro. E o ralo do chuveiro virou o ralo do meu banheiro. Todo domingo de manhã me armo de balde, sabão em pó tabajara (ensinamento de mamã: sabão em pó bom pra lavar roupa, sabão em pó tabajara pra lavar o chão), removedor de calcário, Lysoform Bagno, pano de chão, Pato Purific, esponja, vassourinha de cerdas duras que eles usam pra passar pano no chão mas eu uso pra esfregar o chão mermo, rodinho pra limpar vidro que eu uso como rodo no chão mermo, já que em terra onde não tem ralo, rodo não existe e a gente tem que improvisar. Jogo água pra tudo que é lado, lavo e esfrego tudo – me sinto a Dona Teresa que tinha mania de limpeza, aquela do livrinho da Atica que todo mundo da minha geração leu na escola; d. Teresa, que lavava até o sal e o açúcar… Só não tiro as teias de aranha da janelinha lá do alto porque os Silvas – há tantas aranhas na roça quanto Silvas nos catálogos telefônicos brasileiros – servem pra comer os mosquitos, que também abundam. Deixo a porta aberta pro chão secar e pro cheirinho de limpo se espalhar pela casa e quem sabe inspirar os outros moradores a serem limpinhos também.

***

Aih ontem depois da lavaçao banheiral tomei meu banhinho basico no banheiro cheiroso, fiz um almocinho de verao – alface, atum, milho, ervilha e umas batatas cozidas temperadas com timo, que eu nao sou de ferro e sem carboidrato nao vou nem na esquina – e fui a Perugia encontrar a Verinha, gaucha que estudou comigo em Perugia e que agora tah em Bolzano, no norte da Italia, e de vez em quando vem pra essas bandas visitar as ex-roomates. Levei meu espetacular cachorro comigo, obviamente. Também obviamente fingi que nao sabia que precisa amordaçar cachorro pra andar de onibus, e pagar metade do bilhete pro cachorro andar de trem. Mas correu tudo bem, fora o calor insuportavel. Era aniversario da Verinha, dei de presente pra ela uma latinha de Guaranah Antarctica, uma das ultimas que sobraram da ultima viagem a Roma. Tomamos o sorvetinho nosso de cada dia, botamos o papo em dia, peguei meu buzao e meu trenzinho escaldante de volta pra casa e pronto. Larguei o Leguinho na casa dos ex-mas-nao-tanto-sogros, tomei outro banhinho no meu banheiro cheiroso e fomos comprar comida chinesa pra jantar na casa da FeRnanda. Acabamos dando carona a uma senhora equatoriana que chorava na estrada em Bastia, porque tinha perdido o ultimo trem pra Perugia e nao sabia como voltar pra casa. Lah vamos nos a Perugia deixar a senhora, a coitada da mulher chorava de nervoso, estava parada em pé hah UMA HORA pedindo carona na ponte de Bastia, e nada. Neguinho é foda mermo, ninguém para pra dar carona, nao tavam vendo que era uma senhora quase nos seus 50 anos, que nao era uma prostituta qualquer ou uma cigana ladra?

De volta à casa da Fernanda, rimos muito e comemos feito loucos: ravioli de carne no vapor, rolinhos primavera, spaghettini de soja com frutos do mar, frango com amendoas e cenoura, carninha com bambu e cogumelos chineses, arroz à cantonesa, frango agrodoce, cerveja chinesa (que segundo a FeRnanda tem cheiro de lança-perfume). Ouvimos Cidade Negra, discutimos as chateaçoes burocraticas envolvendo traduçoes juramentadas de documentos etc, e fui pra casa dormir. Claro que nao dormi right away; tendo alguma coisa pra ler perto da cama eu nao consigo fechar os olhos enquanto nao dou uma olhada, e acabei lendo a Panorama (tipo a Epoca), com uma reportagem de capa sobre gente “handicap” (aqui eles nao dizem deficiente fisico ou mental, dizem handicap, que com o sotaque italiano vira “andiquép-a”) que venceu na vida. Fiquei impressionadissima, as fotos sao muito bonitas mas muito chocantes também.

E aih hoje o Chefe Meio Idiota nao tah no escritorio, nem o Meio Chefe, nem o Cretino Pai do Chefe Meio Idiota, entao estamos super light: a Martinha toda vestida de azul-celeste, a menina da calça dourada hoje veio de vermelho e de saia florida, a irma do CMI tah ligando pro veterinario pra alguém vir suturar o coitado do Ralph (o cachorro da casa-escritorio) que tah com um buraco embaixo das costelas por conta da mordida que levou do Pedro (o Sao Bernardo da casa em frente) no sabado à noite. Eu até suturaria, mas nao tenho material. Coitado do bicho, tah com um rombo tao grande, tadinho, o corte abriu todo o subcutaneo e dah pra ver até a fascia muscular.

E agora que eu jah fiz tudo o que eu tinha pra fazer – ligar pras escolas do Lazio onde recolhemos cartuchos vazios, preencher formularios, inserir os poucos pedidos – sao sempre poucos na segunda-feira de manha – o que é que eu vou ficar fazendo nesse escritorio? Sugestoes?