Adormeço com um dedo marcando a página em Lolita (do qual, aliás, estou gostando; bom contraste com aquela chatice do Catcher in the Rye), e acordo uma hora depois com um barulho de portas e janelas fechados com pressa, e mais alguns rumores meteorológicos vindos de fora. Parece que o temporal que não houve ontem, o terrível temporal que todo mundo, inclusive eu, jurava que ia desabar por aqui mas ficou restrito a Foligno e a Spello (Spello está do outro lado do Subasio em relação a Assis, mas o clima é completamente diferente), hoje veio parar nessas bandas com uma força escandalosa, sem que ninguém suspeitasse. O dia foi muito muito quente, de sol muito muito forte, do tipo ao qual você se expõe por 30 segundos e sente seus melanócitos todos pimpões bombeando melanina pra lá e pra cá em resposta aos raios solares. Aíagora às cinco e meia da tarde eu acordo com o mundo caindo.
Como eu já disse aqui antes, o único fenomeno meteorológico que eu abomino é o vento. Chuva, trovões, relâmpagos, não me assustam nem incomodam. O que rolou hoje foi um ventinho básico, acompanhando uma chuva avassaladora que molhou todo o chão embaixo da minha janela no intervalo de 10 segundos que eu levei entre acordar e interpretar o que estava acontecendo, e levantar pra fechar a janela. Arranquei uma das cortinas sujinhas, daquelas que se prendem à janela e não a um trilho acima dela, pra poder ver a chuva mesmo com a janela fechada. Os grossos pingos viraram pesadas pedras de granizo se esborrachando contra o vidro, plaft, plaft, PLOFT, plect. As plantas do jardim do vizinho se balançavam furiosamente com o vento. Lá longe, no alto de um prédio em obras, vejo confusamente, contra o céu cinzento, uma coisa lençol-like balançando loucamente um pedaço de plástico que eu vira um operário estender sobre seu pedaço de telhado horas antes que a chuva caísse.
A coisa continua por alguns minutos, e depois pára. Os plaft ploft contra o vidro cessam; do outro lado da minha janela descortinada os pingos vão rareando, até sumirem por completo. Levanto com muita preguiça, escancaro as janelas; o ar que entra é limpinho, cheiroso, fresco.
A pausa dura cinco minutos. Trovões de quinze, vinte segundos cortam o silêncio, e a chuva cai outra vez. Na verdade essa chuva é muito bem vinda, já que fazia mais de um mês que não chovia decentemente, mas o granizo é um saco, causa prejuízos às lavouras, aos carros deixados na rua, a gente que não acha uma marquise pra se abrigar em tempo e leva pedradas de gelo na cabeça. Coisas da vida.
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Uma outra lenda da roça italiana, parente do antibiótico com ovo e da já mencionada corrente de vento, é a bebida gelada. Assim como no Brasil a gente pobre e ignorante tem conhecimentos médicos reduzidos ao trio sistema nervoso/problema no fígado/febre interna, febre na cabeça e outras variações do mesmo tema, aqui o pessoal tem cisma, além da tal corrente de vento, com as bebidas geladas. Aaaah, mas fulano teve uma congestão bebendo água gelada! Na boa, o mundo INTEIRO toma bebida gelada, por que é que é só na Itália que isso faz mal à saúde? E vocês pensam que eu consigo convencer esse povo que dor de estômago, gastrite, enxaqueca, dor nas costas, insônia, indigestão não são causados diretamente por água gelada? Nananinana.
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Roma melou. Papai ligou hoje de manhã, enquanto eu estava fazendo nada no escritório (sábado é dia de fazer nada no escritório; no máximo botamos as faturas em ordem e limpamos a sala, hoje nem a limpeza fizemos), dizendo que não iria mais a Roma. Como não estou podendo gastar grana sem uma boa justificativa, desisti da viagem. Fiquei jururu; queria muito ver as meninas, queria muito ver Roma, queria muito comprar meu Harry Potter, que todo o mundo civilizado já leu mas eu, que estou realmente morando na Serra Leoa aparentemente, ainda não vi nem a cor. Minha última esperança de ler o livro antes da próxima passagem do cometa Halley é a Silvia, amiga da Martinha que estuda em Firenze e ficou de procurá-lo pra mim antes de voltar aqui pra Costa do Marfim hoje.
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O piso do meu quarto é de ladrilhos. Ladrilhos decorados, cada quatro formando um desenho antiquado em cores de marrom-cocô e verde-catarro. Em alto relevo. Uma maraviiiilha pra limpar. Não só você não percebe quando tá sujo ou não, mas mesmo durante o processo de limpeza não consegue saber direito se já tá limpo ou é pra continuar varrendo. Se eu encontro a criatura que teve a idéia de botar um treco desses no chão de casa, eu juro que eu mato.
A espécie humana só vai poder ser considerada evoluída quando pessoas que têm idéias de jerico dessa magnitude não nascerem mais. E, claro, quando o apêndice vermiforme (aquele que só serve pra inflamar), os dentes do siso, os genes da calvície, da dependência da nicotina, das varizes, da crueldade com crianças e animais, do chulé, da vontade de escarrar no chão, e principalmente da compulsão alimentar forem eliminados do nosso código genético. Vai por mim. Tamos mooooito atrasados ainda…