Considerações gerais sobre a vida

Os móveis do meu atual apartamento são menos hediondos do que aqueles de Cipresso, atual lanterneirolândia. Mas eu queria muito saber quem foi que teve a idéia de pintar os móveis de vime de preto, e quem escolheu o tecido floridão das almofadas do sofá. A coisa boa é que o apartamento fica no andar térreo; quando estou preparando o almoço deixo a porta aberta enquanto cozinho, assim o Legolas deita no capacho e fica olhando “as modas”, como diz a minha mãe (ele sempre foi do tipo fofoqueiro que fica na porta ou na janela olhando o povo passar). De noite prendo na coleira dele um pisca-pisca que o Mirco me trouxe de NY ano passado, pra botar na bicicleta. Assim ele fica ali na porta de casa enquanto eu cozinho o jantar, e se dá na telha dele de ir ali na esquina fazer xixi, consigo encontrá-lo de longe – lembrem-se que ele é negão, e achar negão de noite em rua escura não é tarefa fácil. Por outro lado, ser andar térreo é uma droga porque não posso deixar as janelas abertas, porque da rua se vê a casa toda. Privacidade zero, e em termos de segurança também nao é lá essas coisas. Menos mal que agora já começa a esfriar de novo, e dormir com as janelas abertas já não é necessário. Também tem o Legolas, que tem um latidão que, embora inócuo, assusta qualquer um, o que me ajuda a dormir com menos medinho, quando fico sozinha em casa.

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Exatamente em frente de casa tem uma creche (“asilo”, em italiano). De manhã a calçada do meu “predinho”, ou seja, logo do lado de fora da janela da sala/cozinha, vira um estacionamento. Por cerca de meia hora ouvem-se as crianças chorando, buzinas, as professoras dizendo “calma, calma, vem com a tia”, os cachorros dos vizinhos latindo (o Legolas é muito educado e não é de latir muito), mais crianças chorando e dizendo que querem voltar pra casa, etc. A creche reabriu semana passada, então imaginem a quantidade de crianças chorando traumatizadas por terem sido deixadas pelos pais pela primeira vez na vida! A coisa legal é que criança é muito bacana. Tem uma menininha LINDA, com um sorriso avassalador, cara de peste, que por acaso se chama Letizia (hohoho), que sempre pára em frente à minha casa pra ver o Legolas, que ridiculamente fica em pé com as patas no batente da janela, se exibindo. E uma outra coisa legal é ver a igualdade pais/mães, tanto de manhã quanto na hora do almoço, quando as crianças vão embora (a partir de outubro o horário passa a ser integral). A Itália é um pais muito machista, e ver pais tão participativos, tão íntimos dos filhos, tão cheios de cuidados, é muito, mas muito legal. (Provavelmente na avançadíssima Alemanha os pais já fazem isso há muitos anos, mas com certeza são pais feios, sisudos e mal vestidos, levando pra creche crianças feias, sisudas e mal vestidas).

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A Martinha é um amor mesmo: hoje me veio com um livro do casal Eddings, comprado na internet. Ficou com pena de mim porque tenho poucos livros aqui e sem ler fico desesperada, e me deu de presente esse, em “lingua originale” :) Pra quem é subdesenvolvida, interculturalmente deficiente, tem diploma comprado, morou na Rocinha, e sobretudo é um personagem inventado, até que tenho bons amigos.

Alinhás, segunda-feira Martinha precisará das velinhas acesas de vocês. Acompanhá-la-ei ao médico (linda ênclise, obrigada). Amiga ex-médica é pra essas coisas.

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Ontem fomos (tentar) jantar na festa da cebola em Cannara, aqui perto – aliás, pra onde a empresa vai se mudar, assim que terminarem de consertar a cagada que fizeram no pavimento do escritório novo. Cannara é famosa em toda a Itália por ter a melhor cebola do país, o que quer que isso signifique. Só que quando rolam essas festas, TODO MUNDO da zona vai pra lá, por falta de coisa melhor pra fazer. Ou seja, tinha tanta, mas tanta gente que não conseguimos comer nada, porque as filas eram gigantescas, e Mirco tem muito pouca paciência (leia-se paciência zero) pra filas. Acabamos jantando uma pizza muito tabajara numa pizzaria na entrada da cidade. Depois voltamos pro centro pra dar umas peruadas. A cidade é super bonitinha, como todas aqui da Umbria. Encontramos um outro Mirco, amigo de escola do lanterneiro, que se casa amanhã e vai passar a lua-de-mel na… Austrália. Pronto! UMA HORA E MEIA dentro de uma mini-igreja do século XII falando sobre a Austrália. [Mirco é absolutamente fissurado pela Austrália, já esteve lá 4 vezes e tem mapas fotos calendários chaveiro cartão-postal caneta da Austrália espalhados pela casa toda. Fora que ele gosta tanto de viajar que fica todo agitado só de falar no assunto, mesmo que a viagem não seja dele. No final da conversa o menino tava todo suado, agitadíssimo, com a boca seca. Credo.] E depois nada, porque a conjunção pizza ruim + agitação + muitas outras coisas chatas que andam acontecendo derrubaram o menino, que capotou na cama e dormiu feito pedra.

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Aí hoje de manhã não venho trabalhar, pra poder resolver minhas coisas burocráticas. Fomos primeiro ao Commissariato de Assis, onde eu tinha deixado o meu permesso di soggiorno, pra mudar o endereço (quando se muda de comune, ou cidade, precisa comunicar à polícia e requerer residência no novo comune, mas pra isso eu, que sou estrangeira, preciso mudar o endereço no permesso di soggiorno, que é meu documento mais importante aqui). Como na semana em que deixei o documento eu tinha cortado o polegar cortando alho, não podia tirar as impressões digitais, que ficaram pro dia da entrega do documento alterado – ou seja, hoje. Lá vamos nos esperar numa fila (leia-se comentário acima sobre a paciência do Mirco com filas) cheia de gente estranha e sobretudo fedorenta: um casal de albaneses com três filhos crescidos e um na barriga, uma chinesa mais perdida que cego em tiroteio, um velho árabe, dois adolescentes albaneses que liam quadrinhos de Street Fighter II enquanto esperavam, um casal de russos, dois frades franciscanos da Indonésia, duas sapatonas romenas – todos devidamente identificáveis como estrangeiros por causa da infalível pastinha de documentos na mão. Assim como paciente de hospital público, que não vai a lugar nenhum sem sua pastinha com documentos, exames velhos e novos, receitas, nomes de remédios recortados das caixinhas pro caso de esquecerem, nós estrangeiros também levamos nossa pastinha de documentos toda vez que é preciso alterar, requerer, anular ou renovar alguma coisa. A minha pastinha tinha fotocópias do permesso di soggiorno, do passaporte, do codice fiscale (tipo o CPF), do contrato de aluguel, da declaração do meu landlord de que eu moro mesmo lá. Enfim; sei a nacionalidade desse povo todo porque 1) tenho olhos de lince e consigo ler de longe o nome do país escrito no passaporte na mão de cada um, e 2) porque a funcionária da polícia, ligeiramente estressada, não falava, mas urrava. O pessoal da fila dava muita risada porque a todo mundo que chegava no balcão faltava alguma coisa: ou as fotos 3 x 4, ou alguma fotocópia de algum documento, ou a assinatura de alguém. Chega uma hora que a mulher estressa geral e berra: QUANDO VOCES VÊM PRA CÁ, TÊM QUE SABER QUEM SÃO, ONDE MORAM, O QUE ESTÃO FAZENDO AQUI, PORQUE EU NAO POSSO LEMBRAR DE TODO MUNDO, NAO POSSO DECORAR A BIOGRAFIA DE TODO MUNDO QUE VEM AQUI! Também, convenhamos, passar o dia inteiro repetindo coisas como “não, não posso dar o documento da sua mulher, ela tem que estar presente pra assinar, meu querido” não deve ser o trabalho mais agradável do mundo.

Depois de uma longa espera, a outra funcionária, a que me atendeu da outra vez e foi muito simpática, olha pra minha cara, lembra não só de onde eu sou mas também o que eu fui fazer lá (mudar o endereço), e começa a convocar a galera pra tirar as impressões digitais. Lá vamos nós, embrenhando-nos nas entranhas do prédio do Commissariato, que aliás já fica num buraco na praça Santa Chiara. Subimos ao segundo andar e formamos a clássica fila italiana: a que não é fila, mas um coágulo de gente amontoada totalmente fora de ordem. Primeiro as sapatonas romenas, uma vestida de camuflado da cabeça aos pés, a outra totalmente hominho. Depois a superfamília de albaneses confusos, cujas filhas já falam italiano com o sotaque de Bastia. Depois o casal russo – o cara tinha dedos tão grossos que as digitais de um dedo se confundiam com as dos outros. E depois eu, com meus dedos fininhos de fada, meus cinco sobrenomes que tornam logisticamente impossível o preenchimento de fichas, e as invariáveis perguntas e comentários:
– Mas a senhora está há quantos anos na Itália? (menos de dois)
– Mas a senhora é médica? E está fazendo o que aqui nesse buraco? (…)
– Mas por que todos esses sobrenomes? (megalomania monárquica de vovô)
– Guilherme equivale ao nosso Guglielmo? (sim)
– Mas nem se sente o sotaque!
– Mas você é tão branquinha!
– Mas tão nova e já médica! (temos dois anos a menos de escola, senhora)
Il solito discorso

Depois fui ao Comune di Bastia requerer a residência. Agora tenho que esperar que a polícia venha à minha casa comprovar que eu moro lá mesmo, e depois posso voltar ao Comune pra fazer a carteira de identidade, que leva quinze minutos pra ficar pronta e é bem feinha. Próxima parada: eu na USL (“unidade local de saúde”, onde você se registra no sistema de saúde deles) pra fazer a carteirinha de saúde, lanterneiro no banco. Depois outro banco, depois supermercado pra comprar tomates-cereja que ele ama e eu abomino, depois almoço, depois parque com Legolas e seus brinquedos novos comprados na feirinha de Bastia, depois trabalho, ou pseudo, já que na ausência de chefes o ritmo diminui consideravelmente. Fora que ontem trabalhei feito um camelo e deixei tudo organizado pra hoje poder ficar sem fazer nada. Ho ho ho.

Però nada de post sobre modéstia hoje. Sem saco pra ficar filosofando muito. A vida é bela e os passarinhos cantam – nem sempre, mas de vez em quando sim.