Então eu pego o meu já amigo trem das 6:17 partindo de Bastia, me adormento e como sempre acordo em Orte, quando a cabeçada que trabalha/estuda em Roma entope o trem e faz um barulho danado; durmo de novo e acordo na Tiburtina. Dali são alguns minutos até Roma Termini. Pego um táxi e vou parar na embaixada da Sérvia e de Montenegro, numa ladeira lá pros lados da Villa Borghese. Quando eu estou esticando meu dedinho pra tocar a campainha a porta abre, e saem três eslavos batendo papo. Seguram a porta aberta pra eu passar, olham pra minha cara e dizem alguma coisa em eslavo. Eu faço a-han e penso, mas será o benedito? Eu com essa cara de nacionalidade não-identificada mas DEFINITIVAMENTE não eslava e esses falando comigo na língua deles? Entro, pego o visto, que leva dez minutos e vinte e um euros pra ficar pronto, olho pra cara do visto, que é uma etiqueta pré-impressa e preenchida à mão, dou tchau pro antipaticíssimo cara da portaria, e vou-me embora.
E aí começa a missão vamos encontrar uma agência dos correios. Os bancos têm tarifas altíssimas, então optei por abrir conta no BancoPosta, que cobra menos (e funciona super mal, uma vez que não é privado). Precisava tirar uma grana no caixa eletrônico, mas uma gorda antipática na banca de jornal disse que ali perto de onde eu estava só tinha uma agência, mas teria que caminhar bastante. Intrépida, habituada a caminhar quilômetros, fui seguindo as instruções da gorda: desci uma ladeira, subi outra, e dali tinha que subir umas escadas, que não achei. Entro num mercadinho/açougue pra pedir mais informações, e começa a italianada (muito semelhante à cariocada, diga-se de passagem):
– Fulano, mas não tem que subir as escadas?
– Tem sim. Vira ali à esquerda…
– Mas que esquerda, fulano! Direita!
– Direita?
– Direita sim, ali depois dos portões, tem as escadas, e depois das escadas vira à esquerda.
– Esquerda? Não tinha que descer a rua à direita?
No final das contas um romano gatinho (mas pequenininho; ó vida, ó céus, por que os mediterrâneos são todos pequenininhos? Não podiam ser altos também, além de charmosos e divertidos?) sai do mercadinho e me leva até as escadas. Faço o que tenho que fazer, e quando passo pelo mercado de novo, voltando pro ponto de ônibus que eu já muito espertamente tinha localizado como sendo-me útil, ele sai da loja e vem perguntar se eu achei a agência. Achei sim, darling. Sorrisos, buone feste, auguri, e vou-me, contente. Adoro esses arroubo de simpatia nas pessoas.
Pego o primeiro ônibus que me deixará numa estação de metrô. Desço na Piazza Barberini, pego o metrô, sempre entupido e sempre atrasado, e desço na Ottaviano. Dali caminho até a via Cola di Rienzo, resisto à tentaçao de uma lindíssima bolsa Gucci, tão falsa quando a cobra de onde em teoria saiu seu couro marrom, ando mais um pouco e entro na Castroni, ma-ra-vi-lho-sa loja de coisas comíveis de todo o mundo. Me emociono com o guaraná, a goiabada, o polvilho doce, o preparado pra pão de queijo. Compro leite condensado, pão de queijo, guaraná, feijão preto, doce de leite (infelizmente argentino). Pego o metrô pra estação de trem, almoço um McChicken e fico esperando o trem, que só sai às 14:14. Magari! Saiu quase às 15.
Sentado à minha frente, um tipo repugnante: o homem não-homem. O homem não-homem é transparentemente pálido, magro, tem ombros estreitos (ó céus, quer coisa mais broxante que ombrinhos estreitos?), tem mãos brancas e delicadas, aranhescas, os dedos longos e bem-feitos mãos de quem não faz nada da vida, mãos de homem que não sabe nem trocar lâmpada. Uma delicadeza, uma fragilidade totalmente não-masculina. Joelhos pontudos marcam as calças jeans quando ele cruza as pernas como uma mocinha. A cintura é fina, a respiração é difícil além de delicado deve ser vegetariano. Nojo, nojo.
O atraso do trem significa que perdi a conexão em Foligno. Um frio desgraçado, um vento maldito, um bando de gente que perdeu a conexão amontoada na cabine de espera na estação. A próxima conexão, que deveria sair às 17:06 (o que perdemos saía às 16:20), chegou na hora mas demorou pra sair por conta de um Eurostar que vinha no mesmo trilho e chegou atrasado, como todo bom Eurostar.
Eis que adentram a cabine duas brasileiras. Uma senhora com cara de baixo Q.I. e uma jovem de cabeça achatada e cara de empregadinha e a arrogância de quem acha que deu o golpe do baú. Essa última vestia um casaco comprido de camurça falsa cor camelo, forrada com pelúcia 100% nylon, no melhor estilo ursos Peposos. E aí começa a conversa assassina (assassinaram a gramática, ô ô):
– Não, muié, falta der minuto ainda!
– Ah é… Mas e as criança, hein? As criança hoje come em casa?
– Num sei não…
Por que é que eu tenho que ficar encontrando essas peças em tudo que é lugar que eu vou? Pra piorar, subiram bem no meu vagão! Logo logo a velhinha que tava sentada em frente à garota sacou, pelo óbvio sotaque è liberu qui?, que era estrangeira, e puxou papo. E logo a garota começa a sorrir e explicar que sim, sonu brasiliãna, saca da carteira umas notas de reais pra mostrar pra velha, desvencilha dos brincos de ouro fake (aqueles de 1,99 que se compram nas estações do metrô no Rio) uma mecha dos belos cabelos castanhos. Pronto! É assim que começa, comprovando a eficácia da campanha boca-a-boca: a velhinha provavelmente vai contar a uma média de 9 pessoas do seu círculo de amizades o encontro que teve com a brasileira, coitadinha, tão lerdinha, tão despreparada, mora aqui há anos e ainda não aprendeu a língua, feito uma mexicana qualquer… Cada retardada dessas fora do Brasil dificulta em uns 5% a vida de brasileiras normais que vão morar no exterior com a melhor das intenções e grande capacidade de adaptação. Dei à garota um olhar schifoso quando me dirigi à saída do vagão, depois de ter guardado na bolsa meu último Ian McEwan (Atonement. Lento, mas interessante.).
Desço em Bastia, pego o carro (estou com a Fiat Punto do Mirco, que trocou de carro) e vou à oficina, deixar a Punto e pegar o Volvo do lanterneiro, porque o carro dos eslavos quebrou e eles vão pra casa com a Punto do Mirco. O vento sacode o carro, que vive embaçando desde que limpei os vidros com desembaçador, há muuuitos meses atrás; não vejo nada, o aquecedor demora pra engrenar, minhas mãos congeladas dentro das luvas, meu nariz mais duro que mármore, meus pés insensíveis, com as terminações nervosas todas congeladinhas, coitadas. Chego na oficina, troco de carro, volto pra casa. Não tenho vontade de fazer nada, mas amanhã é dia de fazer os doces pra família da Marta…
– C***lho, exclamou a princesinha, preciso descansar!
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Natal pra mim significa somente o aniversário do meu pai, e um feriado. Mas como convenção social é convenção social, desejo a vocês, que acham essa data uma coisa especial, um Natal interessante (poucas qualidades são, pra mim, mais importantes do que interessante). Esse ano não consegui mandar cartão pra ninguém, coisa que muito me envergonha, visto que tenho muito orgulho de ser adepta do snail-mail. Mas perdoem-me; 2003 foi um ano horripilante e cansativo, e não só por causa das minhas 4 mudanças de casa. Não tenho forças pra escrever nem telegrama, quanto mais cartão de Natal. Por isso considerem-se todos devidamente abraçados, beijados e presenteados. E que todo mundo, inclusive eu, tenha um 2004 show de bola. Até porque a Ane, com quem tive o prazer de falar hoje no telefone, tem razão: pior do que 2003 é difícil, viu, meus queridos.