Eu sei que não parece, mas morar com um lanterneiro criativo tem muitas vantagens.

O bom dele ser lanterneiro é que toda e qualquer ferramenta ou está à disposição, ou pode ser facilmente comprada, e pequenos probleminhas são facilmente resolvidos. Bateu o carro? Se ele não conserta pessoalmente (ele nao, o pai, porque ele pinta máquinas industriais), conhece alguém que o faz, por pouca grana e em pouco tempo. Arranhou o carro? Ele vai lá com a pistola de tinta e resolve. Quebrou alguma coisa em casa? Ele volta pro almoço com a ferramenta justa, e conserta.

O bom dele ser criativo é que, se um problema não pode ser resolvido no modo convencional, ele inventa outra solução. Sabe aquela coisa do homem da casa? Então. É assim. E como eu também sempre fui um dos homens da minha casa, e adoro consertar coisas, abrir pra ver como funciona e por aí vai (interesses que herdei do meu pai), nos damos muito bem.

Ontem decidimos que, porque somos acumuladores de coisas, o espaço aqui no nosso escritório é pouco, e precisamos de prateleiras. IKEA? Não, do-it-yourself, que é muito mais divertido, e personalizado!

Primeiro vou explicar mais ou menos como é o escritório, que era o quarto do filho mais velho do casal dono do apartamento. Mirco inventou escrivaninhas cujas pernas são latões de solvente e cujo tampo é uma tábua super larga que ele pintou com tinta pra carro, cor verde-bandeira. Ele usou uma pintura tipo bucciata (buccia = casca, nesse caso casca de laranja), que não deixa a superfície lisinha mas coberta de “respingos” de tinta. Encostado na parede atrás da escrivaninha, uma outra tábua bucciata laranja, na qual ele fixou uma prateleirinha de mesmo material e cor, onde ficam os porta-lápis, porta-correspondência e uma foto nossa feita num restaurante em Catania no ano passado. À esquerda do computador, dois gaveteiros de madeira crua da IKEA, cheias de material de escritório – é o almoxarifado. Nós dois adoramos coisas de papelaria e escritório, e não deixamos faltar nada porque refazemos nossos estoques antes que qualquer coisa acabe ;) E empilhados no alto desses dois gaveteiros, 200.000 raccoglitori (fichários) com documentação de banco, contas da casa, fotocópias de documentos pessoais, faturas de cartão de crédito, etc. O Mirco é muito organizado com essas coisas, e aprendi muito com ele. Hoje não perco mais um documento sequer, tá tudo devidamente ordenado e fotocopiado.

No meu lado do escritório, usamos uma velha escrivaninha da Arianna, que tem gavetas mas é baixa e muito feia. O Mirco pintou um tampo de madeira em azul bucciato, um azul meio cinza que eu adoro. No canto à direita, perto da janela (que tem cortinas em renda com golfinhos, muito adequado), fica o meu computador velho. À esquerda, perto da porta, o meu gaveteiro de madeira e o porta-correspondência idem. Na parede do lado da janela, duas placas de metal bucciato prateado com fotos e coisas fofas presas com ímãs. Na parede da escrivaninha do Mirco, um poster da mostra do fotógrafo sem mão, que o Mirco comprou e quase desistiu de botar na parede quando soube que o fotógrafo tava crente que eu ia pra Austrália pra dar pra ele (mas comé que esse cavalinho foi parar na chuva? Tira ele daí, meu querido!). No canto direito da parede do Mirco, ou melhor, na parede mais estreita desse escritório pentagonal, mais duas placas de metal bucciato verde meio turquesa, com as fotos da Austrália que o Mirco ama. Na parede perto da porta, outra placa, cinza-claro, com mais fotos de viagens e contas pra pagar. Colados na porta do escritório, do lado de fora, uma placa de trânsito avisando que há koalas na área, e logo embaixo, o cartaz do Fashion Rio, desenhado pela Newlands. Do lado de dentro, um calendário horrível com fotografias de caminhões e tratores, e um folheto que veio com a nossa multi-função HP, com coisas escritas nas línguas mais estranhas da Europa.

Foram os malditos raccoglitori, que são horrorosos mas duram muito e custam una cavolata (mixaria), que nos despertaram essa vontade de ter prateleiras. Eu só tenho 2 fichários, um com meus documentos pessoais e do banco, e outro, precocemente aposentado, com os documentos e as contas do apartamento de Bastia, mas tenho uma infinidade de tralha pra organizar: MUITO material pra correspondência, muita correspondência, milhões de bloquinhos, trilhões de canetas coloridas e não, alguns dicionários, zilhões de caderninhos de endereços, agendas, diários, fotografias, letras de música, cadernos de receita, traduções feitas. Tá tudo espalhado pela casa, dentro de pastas e arquivos distribuídos pelos armários hediondos da sala. Precisam de ordem – então inventamos umas prateleiras.

Ingredientes: latas vazias, que eles na oficina compram em quantidades industriais, pra armazenar tintas de cores não tradicionais, cores inventadas pro cliente do momento. Areia pra encher as latas e fazer peso. Profilati de alumínio, que são tipo tábuas ocas de metal que servem, entre outras coisas, pra bloquear as laterais dos caminhões, evitando assim que motociclistas ou carros baixos vão parar embaixo deles, em caso de acidente. Maastricht, uma cola super hiper mega coladora, pra colar as latas.

Ontem à tarde demos um pulo na oficina pra pegar essa tralha. Cortamos os profilati com a serra que cortou um pedaço da mão do Ettore no começo do ano, escolhemos as latas, pegamos as placas de metal que estavam secando no forno, nos munimos de fita biadesiva poderosíssima, e voltamos pra casa. Os profilati são estreitos, então cada prateleira é feita de dois deles, posicionados paralelamente e colados com biadesivo. Três latas de altura entre a escrivaninha e a primeira prateleira, e duas latas entre a primeira e a segunda prateleira. As minhas latas serão pintadas de vermelho-vivo, as do Mirco de azul. Escritório mais colorido, impossível.

As minhas duas placas de metal já estão devidamente entupidas de fotos e coisas, e em breve o estarão também as latas. Sim, é uma poluição visual danada, mas a gente gosta assim…

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E à noite fomos jantar na casa de uma família amiga dos pais do Mirco. Eles se conheceram no hospital há mais de 15 anos, quando o Ettore foi operar o septo nasal, e essa família estava acompanhando um tio pra uns exames cardíacos complicados. Pietro, o patriarca sem dentes, Silvana, a esposa, de olhos azuis lindíssimos, Settimia, a filha nariguda divorciada e sem queixo, Andrea, o filho rebelde de Settimia, com cabelo mohawk mas olhar esperto (e com narigão e sem queixo), e Giovanni, o filho mais novo de Pietro, que é ligeiramente viado, apaixonado pelo Mirco, e dá aula de cozinha na escola de hotelaria de Assis há muitos anos. Todos super gentis, mas um pouco formais demais pro meu gosto. A casa, imensa mas super mal conservada porque o pai, avarentíssimo, controla o dinheiro de todo mundo na família e não gasta nem pra botar luminárias na sala (sabe lâmpada pendurada pelo fio? É assim HÁ DEZ ANOS), fica num buraco chamado Giano dell’Umbria, lá pros lados de Foligno. A estrada cheia de curvas é absolutamente deserta. Uma casa a cada quilômetro. Ou melhor, um sítio a cada quilômetro, porque ali cada família tem grandes propriedades e seus próprios pés de azeitona, de uva, suas hortas, seus galinheiros. Aqui no interior é muito comum encontrar moinhos de aluguel: você leva suas azeitonas, paga uma taxa e eles moem as bichinhas pra você e te dão o azeite pronto. O mesmo pro vinho: há cooperativas onde você leva as suas uvas, e no final do processo de produção do vinho tem direito a uma certa quantidade do produto pronto.

Então nós jantamos bruschette de alho e azeite, de cogumelo e tartufo, de berinjela (melanzana) da horta deles. Depois panquecas recheadas de cogumelo, cobertas de molho branco e molho de tomate, gratinadas ao forno (deliciosas). Depois coelho assado (coelho deles, é claro) e linguiças feitas em casa, na grelha, com batatas ao forno. Depois salada (da horta deles, obviamente). Depois rocciata, um doce esquisito com frutas secas (blergh), e spaghetti dolci, um doce que normalmente se faz na Páscoa, se não me engano, com macarrão cozido e misturado numa massa maluca de chocolate, amêndoas trituradas, açúcar, e outras coisas, tudo isso regado com licor cor-de-rosa. Parece horroroso, mas não é. Também não é nenhuma maravilha, mas é perfeitamente aceitável. Tudo isso regado a vinho branco e tinto feito em casa (eles levam à cooperativa as uvas mais tabajara, com as uvas boas eles mesmos fazem o vinho pra consumo próprio). Espetaculo. O Ettore comeu até morrer, e ainda teve a cara-de-pau de aceitar de levar uma quentinha de panquecas pra casa hehehe

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Amanhã partimos pra Belgrado. Dejan já ligou dizendo que está frio, muito frio. Ui.