Há muito tempo eu vejo rituais com olhos distantes, antropológicos. Vejo velhas tradições com um interesse curioso, e não sem uma certa compaixão. Entendo a necessidade de marcar a importância de certas coisas com rituais, festinhas, símbolos, palavras especiais. Mas não consigo fazer parte disso, não consigo me imaginar participando ativamente de uma coisa dessas. Consigo entender a importância de uma coisa, de um ato, de uma data, sem necessidade desses bookmarks culturais. Não preciso de um padre fingindo que bebe o sangue de Cristo pra me lembrar que a gente tem que tentar ser legal com os vizinhos. Nem de usar calcinha vermelha no Ano-Novo, como se faz aqui na Itália, pra atrair boa sorte. Vejam que não tô falando só dos rituais religiosos. E olha que pra mim religião é uma das coisas mais idiotas que existem no mundo, embora eu entenda seu valor como educador, no passado (hoje virou manipulador de massas, mas deixemos pra lá). Não sei, talvez eu esteja ficando mentalmente velha, mas cada vez mais acho esse tipo de coisa típico de gente ignorante e portadora daquele célebre problema já citado aqui no paca: olhar e não ver.
Isso tudo como preâmbulo pro Natal na Sérvia. Eles são ortodoxos, religião da qual eu nunca soube nada (e continuo sabendo muito pouco, e honestamente querendo saber menos ainda).
O Natal deles é comemorado no dia 7 de janeiro. Na véspera os homens vão ao bosque cortar galhos de carvalho. Diz-se que quem acha o galho mais folhudo terá mais riqueza, abundância e filhos em casa. Curioso, interessante, né? Mas não dá pra deixar de ter pena desses homens que vão pro bosque coberto de neve, num frio do cacete, armados (porque eles derrubam os galhos com tiros de espingarda), bêbados, e voltam pra casa exaustos, comem carne de porco até morrer e vão dormir. No final das contas acaba sendo somente uma tradição besta, patética e sem sentido.
Esses da foto ai em cima são o Mika, irmão do garoto que trabalha na oficina do Mirco, e o Ivan, cunhado dele.
Estão vendo s lápide preta à esquerda do Mika? Há um cemitério muito antigo no meio do bosque. Segundo o Mika, é completamente abandonado, e volta e meia um cachorro de caça ou um javali esfomeado desenterra a mão ou o pé de um cadáver. Não há cercas nem muros, nem ninguém tomando conta, assim como o pequeno cemitério de Majilovac. As lápides negras são bonitas, mas dão um ar incrivelmente lúgubre ao lugar, ainda mais assim, brotando do meio da neve. Na manhã de Natal fomos levar velinhas ao cemitério.
Mika e Jelena, antes de acendê-las, beijam as fotos dos antepassados enterrados ali. As fotos são todas iguais: as mulheres de lenço na cabeça e os homens de bigodão. Todos sérios, austeros. Jelena beija inclusive as fotos dos antepassados do Mika, gente que ela não chegou a conhecer (aliás, nem ele), mas que através do matrimônio passou a ser sua família também.
Outra tradição deles é fazer a ceia de Natal sobre uma camada de palha no chão, pra relembrar a origem humilde de Jesus. À parte o fato de que eu não acredito em Jesus, qual é o sentido disso? Você relembra a Sua origem humilde, e depois? Se no resto do ano você não come em cima da palha, isso significa que nos outros 364 dias do ano você nem pensa nele e não se comporta como cristão? O fato de você comer sobre a palha no Natal te transforma numa pessoa melhor? Eu acho que não. Acho que comer sobre a palha dá só coceira na bunda, e basta.
Na casa onde nos hospedamos eles não comem sobre a palha, mas o homem da família sai pra buscar sacos de palha que depois serão depositados sob a mesa de jantar. Antes de entrar em casa com a palha ele bate na porta três vezes. A esposa abre, ele entra, recita umas coisas às quais a mulher responde:
– Jesus nasceu.
– Sim, Jesus nasceu.
– Todo o mundo está sereno, e chove. [não esquecer o simbolismo camponês dessa frase: se não chove, não há colheita.]
Pronto: palha debaixo da mesa, a mulher-escrava bota a mesa e começa o jantar.
Durante o dia as mulheres-escravas, nesse caso a famosa avó que não descobrimos onde dormia, assam vários tipos de pão. Na verdade é uma massa única, mas os pães têm formatos diversos: de bichos, de plantas, de coração, etc. Antes de começar a comer beija-se e acende-se uma vela, que fica num castiçal cafona no meio da mesa. O patriarca da família, nesse caso o pai do Momo, diz uma prece, corta um pedaço de cada pão e o molha no vinho. Cada um da mesa come um pedaço de pão com vinho (horrível). O patriarca acente uma velha lanterna com umas pedrinhas de incenso, reza de novo, benediz a família, estende o braço, sua mulher-escrava vem correndo recolher o queimador de incenso, e antes mesmo que ela volte à mesa ele dá ordem de começar a comer.
Assim como na tradição clássica cristã (eu acho), não se come carne no Natal, mas peixe. O jantar começa com uma deliciosa sopa de frutos do mar muito bem temperada. Depois vem o arroz com aipo (unidos venceremos mas gostoso), salada de feijão branco com cebola e salsinha, peixe frito (horrívellllllllll… peixe de lago, todo escamoso e ossudo parecendo um fóssil) e os famosos e odiosos pepinos/pimentões/cenouras em conserva.
Depois do jantar, os pratos devem ficar na mesa até o dia seguinte, esperando o nascimento de Cristo. Resisti à tentaçao de perguntar como assim, Bial?.
Dorme-se cedo porque no dia seguinte o almoço tem que ser antes do meio-dia, sabe-se lá por quê. Antes do almoço rola o mesmo ritual da ceia, com o incenso, as preces, etc.
Tem um detalhe a mais: assa-se (leia-se a mulher-escrava assa) uma polenta redonda, já marcada em pedaços pra cortar, como uma pizza. Os pedaços são distribuidos a partir do mais jovem sentado à mesa, e cada pedaço tem uma coisa dentro, simbolizando coisas diferentes: o Mirco e o Mika acharam moedas, simbolizando dinheiro, é claro; eu, um pedacinho de madeira, simbolizando casa; Jelena um raminho de planta, simbolizando uma boa colheita; Zorika uma semente de abóbora, que segundo ela não significa nada.
Vem a sopa de legumes, sempre deliciosa. Depois o patriarca pega um pãozão com formato de panetone, com um raminho de flores secas espetado no alto.
Ele corta o pão pela metade, mas sem separar as partes. Rega o pão com vinho.
Depois ele e o outro homem da casa, o Momo, separam as metades; diz-se que comandará a família durante o ano aquele cuja metade ficar com as folhas secas. Unem-se as metades de novo e gira-se o pão três vezes; a cada giro faz-se o sinal da cruz e cada um dos homems beija as duas metades.
Continua a comilança: trouxinhas de repolho com carne moída defumada e arroz (de-li-ci-o-sas, comi até morrer), carne de porco e carneiro (claro), peru defumado com molho de cogumelos (delícia!), pickles, beterraba (eca eca eca eca), a salada de feijão da noite anterior. Milhões de brindes, um a cada cinco minutos e meio, em média. E o tempo todo aquela maldita música de festa junina tocando no rádio.
Mas então: eu acho tudo isso incrivelmente primitivo. Não tive vontade de rir, e mesmo que tivesse não teria rido porque seria falta de respeito, e apesar de achar tudo muito ridículo, respeito a seriedade com a qual eles participam de tudo isso. Mas acho primitivo mesmo, coisa de homem das cavernas que pinta o boi na parede achando que isso vai ajudá-lo a caçar o boi na pradaria. Sei lá, acho muito mais válido ficar quieto, não ficar girando e beijando pão, e tentar se comportar bem durante o ano inteiro do que fazer toda essa papagaiada só nas ocasiões especiais e ser desonesto ou chato de galochas, como foi nosso anfitrião-empurrador-de-comidas nessa viagem.
Claro que o fato de alguém participar de rituais ou ser religioso não significa automaticamente que ele não é boa pessoa no resto do ano. Mas sabe aquela história do cão que ladra e não morde? Sempre achei que quem anuncia demais, prega demais, catequisa demais, no final das contas fica cego pras próprias chatices. Fora o tempo que se perde com esses simbolismos, tempo esse que poderia ser melhor empregado em coisas mais úteis. Repito que não há um só livro nessa casa, e nem no apartamento deles aqui na Itália. A meu ver, isso é MUITO assustador.