Os Lemmings Atacam Novamente

Onze e meia da manhã de ontem. O telefone celular interrompe meu aprazível momento de limpar carne pro Ensopadinho Show de Bola. Mirco me diz só pra descer em 5 minutos que vamos dar uma voltinha em Sellano pra fazer um preventivo (orçamento). Onde fica Sellano? Não sei, ele responde. Lavo minhas mãos e desço, ainda cheirando a alho e carne. Ele começa a repetir as instruções que o tal cliente deu: pegar a estrada na direção de Foligno (que fica no caminho pra Roma), tem uma bifurcação, a direita leva a Spoleto, a esquerda a Fano, eu perguntei a ele se era pra pegar a direção de Spoleto e ele disse que não, que era pra ir na direção de Macerata, então é pra virar à esquerda. Claro que uma orientação dada assim com tão poucos detalhes e envolvendo dois lemmings desorientados como eu e Mirco, a coisa não tinha nenhuma probabilidade de ser fácil. Dito e feito.

Chegamos à tal bifurcação e pegamos a esquerda, que levava a Nocera Umbra, Fano, Macerata. Rodamos, rodamos, e nada de placa indicando Sellano. Aliás, nenhuma placa indicando nada conhecido; essa parte da Umbria é completamente desconhecida pra nós, e até a paisagem é um pouco diferente, mais toscana, embora na verdade esteja na direção oposta à Toscana. Passamos por trás do Subasio, por trás de Spello; ville belissimas entre as colinas, tudo já meio verdejante ma non troppo. O tempo muito estranho, céu nublado, carregadíssimo. Eu só pensando nas minhas calcinhas e lençóis que deixei pendurados no varal na varanda… Se a chuva que cai hoje é a mesma de dois dias atrás, aquela que veio com o Scirocco, vento do Marrocos, e trouxe a areia do Saara com ela e deixou meia Itália debaixo dessa poeira avermelhada (na Liguria, região onde fica Genova, nevou e ventou Scirocco no mesmo dia. Resultado: neve rosa nas ruas!), eu tô ferrada!

Rodamos, rodamos, e nada. Passamos por Nocera, cidadezinha de poucas belas e velhas casas de pedra acocoradas sobre as colinas. Foi um dos epicentros do grande terremoto de 97. Dá pra ver que quase tudo caiu, foi destruído, e quase nada foi reconstruído ainda, porque, obviamente, as porcarias das igrejas têm prioridade. Enquanto isso, MUITAS famílias continuam morando em containers precários. No frio que faz ali nas montanhas, não deve ser muito agradável. Pra vocês terem uma idéia das temperaturas invernais ali, a partir de um certo ponto da subida o Mirco aponta pra uns paus muito altos, pintados de amarelo e preto, fincados a pouca distância um do outro, ao longo da estrada. Estão ali pra marcar os limites da estrada, diz ele, porque no inverno a neve cai com tanta intensidade que não dá tempo de limpar a estrada, que assim fica com um nível de neve igual ao dos campos que a rodeiam. Sem uma indicação colorida como esses paus listrados, você simplesmente não vê a estrada. Delícia, hein? Imaginou você morando num container mal aquecido, numa cidadezinha com mais ou menos cem famílias, a estrada bloqueada pela neve por dias e dias… Enquanto isso, a igreja da cidade, e as das cidades turí$tica$ em torno, estão todas sendo reformadas desde 97, comendo dinheiro público com uma vontade impressionante. Mas deixa eu mudar de assunto, senão me vem aquela vontade que eu tenho de vez em quando, de sair chutando frades na rua.

No final das contas demos a volta na colina onde fica Nocera. Chegamos ao miolo de uma minicidade (paesino, em italiano). Hora do almoço, ninguém na rua. Vimos um carteiro parado num stop (cruzamento), olhando pra fora da janela do carro pra ver se vinha alguém da outra direção. Encostamos e perguntamos onde fica Sellano. Iiiiiih! Vocês erraram MUITO a estrada! Sellano fica logo atrás de Foligno, agora o jeito é voltar (tinha sido mais de meia hora de estrada desde a primeira saída pra Foligno) ou então continuar e terminar de dar a volta, mas vai levar mais de meia hora… Vocês pegam a estrada branca (hein?), depois vão ver as placas pra Colfiorito (encurtamento de Colle Fiorito, ou Colina Florida, região famosa pela boa qualidade de seus produtos laticínios), a estrada vira asfaltada, depois vem Casenove, logo depois vem Sellano.

E lá vamos nós pela tal estrada branca, que nada mais é do que uma estrada de mão única, de pedrinhas que deixaram o carro branco de poeira, serpenteando entre colinas verdes, plantadas, LINDAS, mas sem NENHUMAAAAA casa ao redor, nem uma vaca, um carneiro, uma pessoa, um cachorro, nada. Um vento forte soprando, as nuvens negras passeando lá em cima, aquela paisagem deslumbrante, o momento inoportuno – hora do almoço é sempre inoportuna pra qualquer coisa que não seja almoçar. Não resisti e desci do carro pra tirar umas fotos (que agora não tô com saco de editar). E, claro, fiquei com as botas todas brancas de lama… ;)

Circundamos um cemitério, e logo atrás dele começou o asfalto. Chegamos a um outro cruzamento, e nada de placa. Decidimos virar à direita, e fortunadamente chegamos a um outro paesino onde vimos placas indicando Colfiorito. Assim só pra constar, pedimos informação a uma camponesa maltratada pelas intempéries, que passava na rua. Iiiiiiih, não vai por Colfiorito não, é muito mais longe! Mais fácil descer tudo de novo e seguir até atrás de Foligno.

Tá.

Descemos tudo de novo, mudamos a direção no cruzamento, vamos na direção de Foligno. Continuamos nessa maluquice, estradas desertas e cheias de curvas absurdas, em meio a colinas cor de laranja. A essa altura já estávamos morrendo de fome; eu não tinha tomado café e já estava me sentindo verde. O cliente liga pro Mirco; mas onde é que vocês foram parar, meudeus? Mirco diz onde estamos (passando em frente a Ascolano, paesino com 6 casas – eu contei), ele diz que estamos na direção certa. Desconfiamos, mas seguimos em frente.

Depois de MUITO rodar, chegamos. Descemos uma ladeira atrás do açougue e damos de cara com o reboque de um caminhão, todo meio enferrujado, que é o tal negócio que o Mirco vai ter que dar jato de areia e pintar (ele não, o pai, já falei que o Mirco odeia caminhão e só pinta máquinas industriais). Vinte minutos analisando o bicho, tirando fotografias, explicando coisas. O orçamento final vai ser dado por telefone hoje à noite. E a nós resta arrumar um lugar pra comer.

Esse é um mapa meio pobrinho da Umbria que arrumei não lembro onde e já usei aqui antes. O trajeto em vermelho é o que deveríamos ter feito. O outro, em cor teal, é o que nós, bestas quadradas, fizemos.

Vinte minutos depois, estamos na altura de Foligno, e ainda de estômago vazio, porque em cidadezinhas de 6 casas não há restaurantes. Resolvemos continuar até Collestrada e parar pra comer no Autogrill do Ipercoop. A essa altura do campeonato eu já tava tonta mesmo, com as pernas tremendo de fome – pombas, já eram três da tarde! Comi um risoto de linguiça e ervilha, e depois uma bisteca de vitela e batatas no forno. Ainda ganhamos de brinde uma mini-garrafa de Valpolicella, que é um vinho do qual não gosto muito, mas de graça…

Continuamos até Perugia, pra pegar a haste de um limpador de farol de um caminhão Scania que há dias está só ocupando espaço na oficina. Voltamos tudo de novo até S. Maria pra pegar o tripé da máquina fotográfica da irmã de um amigo do Mirco; caiu um parafuso e ninguém consegue consertar. Última parada: Petrignano, pra pegar a lista de códigos de peças que o Mirco pinta pra Umbrapackaging. Estou eu sentadinha no carro, no sol, quando o Mirco bate no vidro. Dá pra você vir dar uma olhada aqui num funcionário que cortou o dedo? Lá vou eu olhar. Entro no banheiro onde ele está sem nem perceber que era o banheiro masculino (e mesmo que tivesse percebido, não teria feito a menor diferença, acho). O cara tá lá com um discreto corte em V no indicador esquerdo. Meio fundinho; se a mão estivesse limpa eu até daria um pontinho, se houvesse material de sutura na caixa de primeiros-socorros, mas num dedo cheio de graxa daquele jeito deixei quieto. Bota o dedo pro alto, meu senhor, mais alto que o coração, até parar de sangrar. Depois a gente bota um band-aid e pronto.

Depois que o Mirco me deixou em casa fiquei pensando: putz, não lembro mais NADA de medicina de emergência! Apaguei tudo da minha cabeça, não ficou nada!

Não sei se fico triste ou contente.

p.s.: Minhas calcinhas não saíram voando, apesar do vento forte, nem tomaram chuva vermelha.