Pitigliano

A região onde estamos se chama Maremma. Um dia já foi uma área pantanosa, praticamente inabitável, insalubre, cheia de mosquitos e com grande incidência de malária (lembram que eu escrevi antes que Caravaggio morreu em Porto Ercole, e provavelmente de malária?). A coisa só foi melhorar lá pra 1700 e bolinha, com a família Lorena da Áustria, que depois da morte de Gian Gastone Medici, em 1734, começou a ajeitar essa vasta região. A terra se revelou fértil e generosa, como certamente tinha sido um dia, na época dos etruscos (sempre eles).

Pitigliano fica em cima de um bloco de pedra chamada tuffo, um tipo de magma vulcânico. Vêem-se cavernas e túneis escavados no tuffo, pelos etruscos. Provavelmente eram usados como tumbas ou com outras finalidades funerárias, já que as únicas estruturas sólidas e duradouras deixadas por eles eram tumbas, urnas funerárias e coisas do gênero. Eles se preocupavam muito mais com a vida após a morte do que com a vida antes da morte, e por isso não há sequer uma casinha etrusca pro pessoal estudar. Provavelmente as casas eram construídas com materiais perecíveis como madeira, palha, etc. Hoje esses túneis e cavernas são usados como cantinas e despensas.

Um dos aspectos mais interessantes de Pitigliano é a sua mistura com a história dos judeus na Itália. Por um longo período, a comunidade judaica de Pitigliano foi bem importante. Em épocas de perseguição de judeus, a cidade serviu de refúgio pros perseguidos. A comunidade judaica chegou a representar 20% da população da cidade, em 1850 – um caso único na Itália. Depois da unificação italiana, em 1871, os judeus foram emancipados e, livres pra ir aonde quisessem, foram deixando a cidade, mudando-se pra outras áreas mais prósperas. Nos anos 30, na época da propaganda anti-semita, os judeus de Pitigliano sobreviveram muito bem, obrigada.

Hoje não há mais uma comunidade judaica em Pitigliano (vou falar disso mais adiante), mas a herança cultural permaneceu. A sinagoga foi restaurada, e a padaria kosher já pode ser visitada novamente. Também há um grande cemitério judeu.

A cidade de Pitigliano é famosa pelo vinho branco, o Bianco di Pitigliano, do qual comprei duas garrafas. Já abrimos uma e o vinho é realmente delicioso. Também fazem vinho kosher, que dizem que é uma porcaria mas o pessoal compra por curiosidade mesmo.

28 de junho

A partida da família estava prevista pras onze da manhã. Acordei cedo e fiquei enrolando, lendo, vendo TV, falando com o Mirco no telefone. Paolo ligou me chamando pra tomar café no bar; fui. Passamos nos correios pra enviar uns cartões-postais, demos umas voltas pra matar o tempo e finalmente fomos à villa pegar os Salames.

A estrada pra Pitigliano é cheia de curvas, e na última delas o Paolo parou pra gente tirar foto – e pra retomar o fôlego, porque a cidade é LINDA. Vista assim, de uma colina oposta, é de arregalar os olhos mesmo. Linda, e super diferente. Ficamos lá babando e fotografando e depois entramos na cidade. Já era hora do almoço e enfiamos os Salames numa pizzaria.

Os Salames queriam ir ao museu judaico, mas naquele dia estava fechado, sabe-se lá por quê. Leo conseguiu falar com a diretora e convencê-la a abri-lo por algumas horas, só pra nós. Enquanto ele ia lá buscar a velhinha, eu e os Salames fomos dar umas voltas.

Achei a cidade bem parecida com Perugia, cheia de becos, arcos, ladeiras. O mais estranho é olhar por cima das muralhas e perceber que você está plantado numa plataforma de pedra. Muito verde ao redor, uma cascata ao longe, linda paisagem, e um calor de matar. Voltamos à praça principal e as crianças foram tomar sorvete. Logo chega a mala do Leo com a velhinha curadora do museu, uma senhora judia de 350 anos e óculos fundo de garrafa. Entramos no bairro judaico e, passando por um arco, descemos até o tal museu, que nada mais é do que a parte funcional do bairro judaico – onde ficavam a padaria, a cantina, etc. Mas vamos com calma.

Ela foi explicando tudo com muita tranquilidade, falando sem parar, mal dando tempo pra eu traduzir pros Salames. Vimos a sala dos banhos rituais, praticados principalmente pelas mulheres menstruadas, antes do casamento, ou nos 45 dias depois de um parto. Segundo ela, tudo isso está escrito na Bíblia (abstenho-me de comentar). A água que sobrava dos banhos descia através de um buraco no chão e ia parar lá nos tanques onde se curtia couro. Também vimos o forno da padaria, fotos daquele pão furadinho judeu cujo nome eu esqueci e que tem cara de ser bom pra caramba, os tanques de tingimento de couro e tecidos, a cantina onde até hoje se armazenam barris de vinho kosher.

A velhinha falou que hoje só vivem mais 3 judeus em Pitigliano, além dela, mas como a sinagoga deles é uma das únicas 5 da Toscana, muitas festas religiosas são celebradas nela – aliás, no dia seguinte iria rolar um casamento básico.

A sinagoga já sofreu muito, coitada. É pequena mas charmosinha, e chega-se até ela através de um terraço onde, um dia, ficava uma biblioteca. Hoje não há mais teto e o terraço é a céu aberto mesmo. Um grande pedaço do teto da sinagoga caiu nos anos 60. Aparentemente o tuffo não é o tipo de terreno mais estável do mundo, e quando resolve se acomodar balança tudo o que está em cima, e foi numa dessas que o teto desabou. Hoje as pinturas no teto são claramente modernas demais, o azul das escritas é cafona, o dourado é excessivamente artificial. Ainda há uma parte do templo reservada pras mulheres, que em teoria não podem assistir aos rituais junto com os homens (não vou comentar, é melhor). Uma cortina numa das paredes cobre a mini-sala que guarda o livro sagrado deles. Bem no meio do templo, uma estrutura de madeira avermelhada, de onde são conduzidas as cerimônias. Tudo muito bem cuidado, limpo e sobretudo interessante. Pena que a velhinha tinha uma reunião na prefeitura e tinha que ir embora.

Poderíamos ter saído pelo portão da sinagoga, que dá pra rua, mas não queríamos que nenhum outro turista nos visse, já que em teoria não deveríamos estar ali. Por isso descemos tudo de novo e saímos por onde entramos. Os Salames nos despacharam, como sempre, e eu voltei pra onde tínhamos marcado com o Paolo de nos esperar. Leo se mandou pra Porto Ercole, pra procurar uma praia decente pra eles, que queriam um lugar de areia e não rochas, e sem topless. Como ainda estava cedo, entrei numa loja pra comprar um vinho e fiquei batendo papo com o proprietário, um grisalho bonitão e simpático que reclamou da falta de vocação pra self-marketing da Maremma, ao contrário do resto da Toscana. Logo depois que saí da loja os Salames voltaram do passeio e tocamos de volta a Porto Ercole.

A viagem não foi fácil. Paramos 3 vezes pra várias das crianças fazerem várias necessidades fisiológicas: duas vezes no mato, e uma num bar. Deixamos o pessoal em casa, Leo se mandou pra Todi e eu fui dormir.

Pitigliano

A região onde estamos se chama Maremma. Um dia já foi uma área pantanosa, praticamente inabitável, insalubre, cheia de mosquitos e com grande incidência de malária (lembram que eu escrevi antes que Caravaggio morreu em Porto Ercole, e provavelmente de malária?). A coisa só foi melhorar lá pra 1700 e bolinha, com a família Lorena da Áustria, que depois da morte de Gian Gastone Medici, em 1734, começou a ajeitar essa vasta região. A terra se revelou fértil e generosa, como certamente tinha sido um dia, na época dos etruscos (sempre eles).

Pitigliano fica em cima de um bloco de pedra chamada tuffo, um tipo de magma vulcânico. Vêem-se cavernas e túneis escavados no tuffo, pelos etruscos. Provavelmente eram usados como tumbas ou com outras finalidades funerárias, já que as únicas estruturas sólidas e duradouras deixadas por eles eram tumbas, urnas funerárias e coisas do gênero. Eles se preocupavam muito mais com a vida após a morte do que com a vida antes da morte, e por isso não há sequer uma casinha etrusca pro pessoal estudar. Provavelmente as casas eram construídas com materiais perecíveis como madeira, palha, etc. Hoje esses túneis e cavernas são usados como cantinas e despensas.

Um dos aspectos mais interessantes de Pitigliano é a sua mistura com a história dos judeus na Itália. Por um longo período, a comunidade judaica de Pitigliano foi bem importante. Em épocas de perseguição de judeus, a cidade serviu de refúgio pros perseguidos. A comunidade judaica chegou a representar 20% da população da cidade, em 1850 – um caso único na Itália. Depois da unificação italiana, em 1871, os judeus foram emancipados e, livres pra ir aonde quisessem, foram deixando a cidade, mudando-se pra outras áreas mais prósperas. Nos anos 30, na época da propaganda anti-semita, os judeus de Pitigliano sobreviveram muito bem, obrigada.

Hoje não há mais uma comunidade judaica em Pitigliano (vou falar disso mais adiante), mas a herança cultural permaneceu. A sinagoga foi restaurada, e a padaria kosher já pode ser visitada novamente. Também há um grande cemitério judeu.

A cidade de Pitigliano é famosa pelo vinho branco, o Bianco di Pitigliano, do qual comprei duas garrafas. Já abrimos uma e o vinho é realmente delicioso. Também fazem vinho kosher, que dizem que é uma porcaria mas o pessoal compra por curiosidade mesmo.

28 de junho

A partida da família estava prevista pras onze da manhã. Acordei cedo e fiquei enrolando, lendo, vendo TV, falando com o Mirco no telefone. Paolo ligou me chamando pra tomar café no bar; fui. Passamos nos correios pra enviar uns cartões-postais, demos umas voltas pra matar o tempo e finalmente fomos à villa pegar os Salames.

A estrada pra Pitigliano é cheia de curvas, e na última delas o Paolo parou pra gente tirar foto – e pra retomar o fôlego, porque a cidade é LINDA. Vista assim, de uma colina oposta, é de arregalar os olhos mesmo. Linda, e super diferente. Ficamos lá babando e fotografando e depois entramos na cidade. Já era hora do almoço e enfiamos os Salames numa pizzaria.

Os Salames queriam ir ao museu judaico, mas naquele dia estava fechado, sabe-se lá por quê. Leo conseguiu falar com a diretora e convencê-la a abri-lo por algumas horas, só pra nós. Enquanto ele ia lá buscar a velhinha, eu e os Salames fomos dar umas voltas.

Achei a cidade bem parecida com Perugia, cheia de becos, arcos, ladeiras. O mais estranho é olhar por cima das muralhas e perceber que você está plantado numa plataforma de pedra. Muito verde ao redor, uma cascata ao longe, linda paisagem, e um calor de matar. Voltamos à praça principal e as crianças foram tomar sorvete. Logo chega a mala do Leo com a velhinha curadora do museu, uma senhora judia de 350 anos e óculos fundo de garrafa. Entramos no bairro judaico e, passando por um arco, descemos até o tal museu, que nada mais é do que a parte funcional do bairro judaico – onde ficavam a padaria, a cantina, etc. Mas vamos com calma.

Ela foi explicando tudo com muita tranquilidade, falando sem parar, mal dando tempo pra eu traduzir pros Salames. Vimos a sala dos banhos rituais, praticados principalmente pelas mulheres menstruadas, antes do casamento, ou nos 45 dias depois de um parto. Segundo ela, tudo isso está escrito na Bíblia (abstenho-me de comentar). A água que sobrava dos banhos descia através de um buraco no chão e ia parar lá nos tanques onde se curtia couro. Também vimos o forno da padaria, fotos daquele pão furadinho judeu cujo nome eu esqueci e que tem cara de ser bom pra caramba, os tanques de tingimento de couro e tecidos, a cantina onde até hoje se armazenam barris de vinho kosher.

A velhinha falou que hoje só vivem mais 3 judeus em Pitigliano, além dela, mas como a sinagoga deles é uma das únicas 5 da Toscana, muitas festas religiosas são celebradas nela – aliás, no dia seguinte iria rolar um casamento básico.

A sinagoga já sofreu muito, coitada. É pequena mas charmosinha, e chega-se até ela através de um terraço onde, um dia, ficava uma biblioteca. Hoje não há mais teto e o terraço é a céu aberto mesmo. Um grande pedaço do teto da sinagoga caiu nos anos 60. Aparentemente o tuffo não é o tipo de terreno mais estável do mundo, e quando resolve se acomodar balança tudo o que está em cima, e foi numa dessas que o teto desabou. Hoje as pinturas no teto são claramente modernas demais, o azul das escritas é cafona, o dourado é excessivamente artificial. Ainda há uma parte do templo reservada pras mulheres, que em teoria não podem assistir aos rituais junto com os homens (não vou comentar, é melhor). Uma cortina numa das paredes cobre a mini-sala que guarda o livro sagrado deles. Bem no meio do templo, uma estrutura de madeira avermelhada, de onde são conduzidas as cerimônias. Tudo muito bem cuidado, limpo e sobretudo interessante. Pena que a velhinha tinha uma reunião na prefeitura e tinha que ir embora.

Poderíamos ter saído pelo portão da sinagoga, que dá pra rua, mas não queríamos que nenhum outro turista nos visse, já que em teoria não deveríamos estar ali. Por isso descemos tudo de novo e saímos por onde entramos. Os Salames nos despacharam, como sempre, e eu voltei pra onde tínhamos marcado com o Paolo de nos esperar. Leo se mandou pra Porto Ercole, pra procurar uma praia decente pra eles, que queriam um lugar de areia e não rochas, e sem topless. Como ainda estava cedo, entrei numa loja pra comprar um vinho e fiquei batendo papo com o proprietário, um grisalho bonitão e simpático que reclamou da falta de vocação pra self-marketing da Maremma, ao contrário do resto da Toscana. Logo depois que saí da loja os Salames voltaram do passeio e tocamos de volta a Porto Ercole.

A viagem não foi fácil. Paramos 3 vezes pra várias das crianças fazerem várias necessidades fisiológicas: duas vezes no mato, e uma num bar. Deixamos o pessoal em casa, Leo se mandou pra Todi e eu fui dormir.