patente italiana, capitolo secondo

Mais legal ainda é que isso tudo foi depois do Capítulo II da Epopéia da Carteira de Motorista Italiana (o Capítulo I foi aquele exame de 15 segundos, na terça-feira). O lance é o seguinte: na terça, na auto-escola, a secretária me deu um formulário pra preencher e completar com duas fotos 3×4 em fundo claro (eu só tinha com fundo escuro e tive que refazer as fotos) e três bollettini, que seriam três carnês de 10,33 € pra pagar – seria algo equivalente ao DUDA, acho. E com tudo isso na mão, mais duas fotocópias do certificado médico, do permesso di soggiorno e da carteira de identidade, eu tinha que ir à Motorizzazione di Perugia – o DETRAN deles. Os horários, como sempre, são ótimos: segundas, quartas e sextas, das 8:30 às 12:00 (abre bem na hora do rush, quando o trânsito pra Perugia fica impraticável) e das 15:00 às 18:30 (fecha bem na hora do rush, quando o trânsito vindo de Perugia fica impraticável), sendo que às sextas só abrem de manhã. Não deu pra ir na quarta, então ficou pra hoje. Já tendo sido avisada da bagunça que é aquilo lá, saí de casa às sete da manhã, pra evitar o trânsito maldito e chegar cedo. Cheguei às sete e vinte, e já havia 9 pessoas na minha frente, sendo que quatro eram auto-escolas, ou seja, com um MONTE de pedidos pra entregar, e uma dessas era uma senhora de maquiagem absurda que tinha chegado às quatro da manhã. E já tinha um antes dela.

A entrada pra Motorizzazione é uma ladeira que faz uma longa curva à direita e termina nos largos portões do departamento. Os carros fazem fila encostados na pista da direita, mas quando a fila chega lá na rua o pessoal, obviamente, não tem mais onde ficar esperando sem atrapalhar o trânsito, e acaba indo lá pra frente, pra perto do portão. Quando eu cheguei não entendi a fila de carros, porque vi os carros das auto-escolas e tive, juro, a vã esperança de que houvesse uma fila pra elas e uma pra nós, particulares. Passei direto pela fila de carros e parei em frente ao portão, onde todos aqueles motoristas estavam em pé, conversando. Perguntei como funcionava a fila, eles disseram que infelizmente não tinha essa de uma fila pra cada tipo de cliente, e que era melhor eu pegar um número, que um senhor baixinho (o terceiro a chegar) de óculos escrevia num bloquinho de comandas e distribuía informalmente aos que chegavam, e voltar correndo pra fila de carros pra não perder o lugar. O tempo foi passando e fui vendo mais e mais carros passando por mim e parando lá na frente, no portão. Às oito e dez abriram os portões do estacionamento, e todo mundo que estava parado em pé batendo papo saiu CORRENDOOOO, correndo mesmo, pros carros pra levá-los ao estacionamento, descer correndo do carro e se aglomerar na porta ainda fechada do departamento, no tradicional coágulo humano não-fila que os italianos são craques em fazer.

Aí começou a bagunça, porque um barrigudo arrogante que tinha acabado de chegar tava plantado logo na cara da porta. Todo mundo que tinha seu papelzinho não-oficial na mão e tinha chegado super cedo obviamente reclamou, e a discussão tava formada. Porque um sistema de fila deve existir pra todo mundo, e não só pros 15 primeiros que chegam! Porque organizar a fila é dever da Motorizzazione e não dos clientes! Sim, mas já que eles não fazem nada, os clientes pelo menos tentam organizar! Eu dei meu pitaco dizendo que em tudo que é lugar civilizado do mundo, quando a fila é uma bagunça as pessoas educadas simplesmente perguntam quem foi o último a chegar, e se enfiam depois dela. O povo continou discutindo, brigando, gesticulando, todo mundo se espremendo em frente à porta com medo do vizinho passar à frente, uma coisa horrorosa. Pelo menos o tempo tava fechado e soprava uma brisa fresca, senão os ânimos teriam esquentado ainda mais.

Às oito e meia em ponto uma funcionária vem em ritmo de cágado abrir as portas. O pessoal cai dentro como torcedores no Maracanã, só faltava gritar êeeeeeeeeeeeeeeeeeeee u-tererê uhuuuuuuuuuuu!. Fila? Nem pensar. Consegui chegar perto da ÚNICAAAAAAA FUNCIONÁRIAAAAAAAAAAAA no balcão, mas quando vi que vários dos senhores que tinham chegado antes de mim estavam logo atrás, deixei passar todos e só depois do nono barrigudo entreguei meus documentos. Era a chamada richiesta del foglio rosa, ou pedido do papel rosa, que de rosa só tem um retângulo na parte de cima, e que permite ao portador de dirigir na presença de alguém que tenha carteira há mais de dez anos. E depois de um mês e um dia (DON’T ASK) com esse papel na mão você pode entrar com o pedido dos exames teórico e prático. Normalmente eles levam dez dias pra te dar o papel rosa, depois da entrega do pedido. Mas durante a longa permanência na fila fiquei sabendo que atualmente o período de espera é de quarenta dias. Tudo bem, minha carteira internacional vale até setembro, pra mim o foglio rosa não faz a menor diferença, é simplesmente a primeira fase da obtenção da carteira. Pacientemente e com um sorriso esperançoso esperei a mulherzinha examinar minha papelada. A mulherzinha ajeita os óculos na ponta do nariz, ajeita o vestido de velha, ajeita os cabelos repicados anos 80 totalmente nada a ver, e sentencia:

– Tá errado aqui, senhora.
– Como, tá errado? O quê que tá faltando? Foi a auto-escola quem me deu os papéis.
– Deram-lhe os bollettini errados. Eram dois com a tarja verde e um com a tarja azul, lhe deram dois azuis e um verde.
– E agora?
– E agora precisa pagar de novo.

E me deu um maldito bollettino com tarja verde pra eu pagar. De novo.

Eu quero que alguém, qualquer um, alguém, por favor, me dê uma explicação razoável pra existência de uma diferença substancial entre uma tarja verde e uma tarja azul. Alguém? Não. C.Q.D.

A essa altura já eram dez da manhã e saí desembestada à procura de uma agência dos correios pra pagar o maldito bollettino. Levei horas pra achar uma, porque o trânsito em Perugia é uma coisa louca, não tem sentido nenhum, e se você erra uma esquina leva três horas pra voltar pro ponto de onde saiu, tendo que dar mil voltas por causa das inúmeras Z.T.L. (zone traffico limitato) e ladeiras de mão única. Quando finalmente achei a agência, havia 7 pessoas na minha frente. Paguei o bollettino e fui a uma papelaria em frente fotocopiar o recibo, que eu não sou boba e bem vou lá reclamar na auto-escola por me terem feito pagar 10,33 € duas vezes. Voltei pra Motorizzazione e a fila chegava lá fora. Entrei na cara-de-pau mesmo, achando que a mulherzinha do balcão ia me fazer passar direto, já que eu tava lá desde cedo e não foi por culpa minha que eu tive que ir embora e dar lugar ao número 11 (que era uma família de Gubbio, bem longe daqui, que acompanhava o filho adolescente pra pegar o patentino, a carteirinha de motorista pras lambretas que agora é obrigatória). Que nada. Logo me enxotaram, dizendo que eu tava furando fila, que eu era desonesta, que era mentirosa porque não estava lá desde cedo coisa nenhuma. Fui embora chorando de ódio, antes que alguém viesse dizer que eu era mal-educada por ser estrangeira. Porque aí eu matava alguém. Juro.

É nesses momentos que eu entendo gente que entra no McDonald’s metralhando todo mundo. Bem momento Dia de Fúria. Faz sentido.