Passamos da fase da dor intensa à fase do prurido insuportável. Essa noite acordei desesperada de tanta vontade de me coçar. Não há creme Nivea que dê jeito na pele toda esticada ao redor da ferida. E a cada dez passos que eu dava ou a cada cinco minutos em pé, começava a sair sangue da ferida outra vez.
Fui levar o almoço do Mirco e de mais três operários a Cannara, onde eles estão pintando a escadaria de uma fábrica de roupas, e quando voltei vi que saía sangue diluído em linfa de um furinho bem no meio da crosta. Tive uns cinco minutos de irritação e resolvi me operar.
Me armei de tesourinha, pinça e lente de aumento e fui pra minha sala de cirurgia, ou seja, a borda da banheira. Dei umas batidinhas com a pinça na crosta e ouvi um tum tum surdo, sinal de espaço vazio por baixo. Fui cortando as bordas da crosta com a tesourinha e não sentia resistência nem dor intensa, sinal que as traves de tecido conjuntivo tinham sumido, ou melhor, tinham sido reabsorvidas. Fui cortando, cortando, cortando, até que só ficou um pedacinho pequeno da crosta, bem grudado à pele. Em torno da cratera em carne viva que sobrou, muito sangue coagulado, testemunha da porrada com o pedal da semana passada. Com a lente de aumento examinei bem a ferida: carne viva sim, sangue vivo sim, muita linfa, mas felizmente nada de pus. Olha o sistema imunológico da Leticia aí gente! Seguuuuuuura leucóooooocito! Lavei com água corrente, lavei com desinfetante e nem ardeu. Sequei bem ao redor, mas não tinha a menor possibilidade de cobrir com gaze. Qualquer coisa que encoste em qualquer ponto do pé causa muita dor, porque tá tudo sensibilizado. Então pensei num velho truque que usávamos às vezes em feridas cirúrgicas na enfermaria: açúcar. Como açúcar dá cárie, hohoho, joguei um pouquinho de mel na ferida. Teoricamente os microorganismos não seguram a onda de tanta saturação, perdem líquido e puf, morrem. O mel é um conservante natural e praticamente não estraga nunca. De qualquer maneira, mal nao faz, e como o ambiente aqui na oficina é absolutamente insalubre, com uma concentração de poeira e elementos em suspensão que chega a dar nos nervos, e como eu não quero toda essa poeira nojenta grudando na minha ferida aberta, o mel pelo menos forma uma película protetora que impede o contato direto com as coisas nojentas. Agora está doendo um pouco, mas pelo menos não coça mais, a pele não está mais toda esticada e torta ao redor da ferida, e o líquido que quiser sair sai numa boa, sem ficar empacado com aquela bosta de crosta. Tá feio pra caramba e tenho medo de assustar as pessoas quando sair de casa, mas foda-se. O alívio é impressionante, a sensação de liberdade é maravilhosa. Adeus, crosta maldita.
Agora é só tomar muito cuidado com o sol, pra não ficar com o pé marcado pra sempre. E parar de saracotear, porque quanto mais eu ficar quieta no meu canto, mais rápido acaba essa chatice.