show de bola

Quinta-feira a enxaqueca me pegou de jeito. Já no trem pra Perugia, de manhã, comecei a sentir as primeiras pontadas. Mas o dia estava lindo, a temperatura perfeita, o vento ausente, e com isso dava até pra esquecer a cefaléia inicial. Quando saí do salão, o tempo tinha mudado completamente, e o casaquinho de crochet da minha avó não segurava mais o vento gelado e as primeiras gotas de chuva fria. Desci na estação de Bastia quase tendo que segurar a cabeça pra não explodir, ainda mais porque o trem tinha atrasado quase 20 minutos, e não sei como consegui chegar em casa sã e salva, porque mal conseguia manter os olhos abertos o suficiente pra dirigir. Nem almocei, apesar do tardar da hora; Mirco já tinha comido mas eu tinha certeza de que não teria forças nem pra mastigar. Enfiei-me no pijama e voei pra cama, de onde só saí muitas horas depois, com uma cefaléia residual mas perfeitamente suportável. Preparei dois sanduíches de pão umbro com speck e pecorino, pipoca de microondas, chá com limão em copinhos, água mineral e barrinhas de cereal. Lá pras sete o Moreno chegou lá em casa, e cinco minutos depois chegou Mirco, que ainda comeu dois mistos-quentes antes de sair (misto-quente aqui se chama toast, pronúncia tóst).

E lá fomos nós pra Perugia, pro show do Biagio Antonacci. Fomos com o carro do Moreno, que é motorista de ônibus da linha S. Maria – Assis. Sinceramente, fora o tédio total e absoluto, é o melhor emprego do planeta. O ônibus é elétrico e todo automatizado e climatizado, o banco é superhipermegaergométrico, o painel digital informa os pontos onde se deve parar, embora nem seja necessário porque o percurso é tão curto que depois de duas viagens a gente já decora todos os pontos e horários. O salário é ótimo, são só 6 horas de trabalho por dia, dificilmente consecutivas, há vales-refeição que podem ser usados pra fazer compras no supermercado se o motorista morar perto do posto de trabalho (o Moreno mora pertinho e vai de bicicleta todo dia trabalhar), entre outras coisas. Pois bem: eu adoro o Moreno, mas detesto andar de carro com ele, que é meio brusco no modo de dirigir e ainda por cima tem uma Audi A3 superesportiva que é dura pra caramba e dá cada tranco fenomenal e ainda por cima é desconfortável pra entrar e sair do banco de trás. Mas com a carteirinha da APM (Azienda Perugina della Mobilità, a empresa de transportes urbanos de toda a província de Perugia) ele pode estacionar na sede da empresa em Perugia, que fica logo atrás do estádio onde rolou o show. Normalmente ele estaciona ali e pega uma trilha no meio do mato que atravessa um pedaço de campo e vai dar no estádio Pala Evangelisti, mas dessa vez vimos que havia uma cerca fechando um canteiro de obras, onde estão construindo uma estação do minimetrô. Demos a volta e dez minutos depois estávamos em frente ao estádio, onde havia os usuais trailers vendendo sanduíches, cachorros-quentes, piadina, torta al testo, crepe com Nutella, refrigerantes, pipoca, batata frita e outros entupidores de artérias. Os meninos pararam pra comer dois hot dogs com repolho (don’t ask) e cerveja e depois entramos.

O estádio não é muito grande; abriga as partidas de basquete e vôlei que praticamente ninguém segue. As de futebol rolam no estádio maior, em San Sisto, na zona industrial, que cantores mais populares usam pros seus shows – o Vasco Rossi, por exemplo. Na entrada, três Carabinieri fardadíssimos e marrentíssimos. Bombeiros passeavam pra lá e pra cá – qualquer evento aberto ao público tem que obrigatoriamente ter a presença de não sei quantos bombeiros, por segurança. Lá de fora víamos uma nuvem de fumaça dentro do estádio – e aproveito o momento pra mandar todos os fumantes do planeta tomarem grandissimamente no cu. Bando de filhos da puta. Não tinha mais lugar nas arquibancadas de cimento; só vimos quatro lugares livres na primeira fila da arquibancada direita, de onde não se via nada por causa de uma faixa publicitária do provedor de internet Libero que cobria a nossa visão. Tem nada não: enrolamos a faixa na maior cara-de-pau e liberamos a nossa vista, sem nenhum cabeção na nossa frente.

Vocês sabem que eu detesto música italiana, por dois simples motivos: não gosto de música pop, e toda música italiana é excessivamente pop, e os músicos italianos têm uma capacidade de fazer letras ridículas, óbvias ou sem sentido e gramaticalmente de arrepiar os cabelos que nem o Jota Quest tem. Mas o único outro show ao qual eu fui por aqui foi o do Mango ano passado, em Foligno, que mais pareceu jam session do que show propriamente dito, e queria ver como era um show decente. Não me decepcionei: apesar de não saber cantar nenhuma das músicas do show, conhecia muitas de anúncios na TV ou por causa das inúmeras aparições do Biagio em vários dos inúmeros programas de auditório ou de entrevistas que rolam na televisão. Fora as baladas chatíssimas, porque praticamente toda balada é chatíssima, as músicas mais rapidinhas eram cheias de guitarras legais e percussão interessante. Gostei muito.

No palco, a única coisa fora do normal era a saia longa do baixista, branca, com símbolos supostamente japoneses pintados em preto. Todos os outros músicos, incluindo o próprio Biagio Antonacci, de camiseta, jeans e mocassim ou tênis. No fundo do palco, de preto, um quarteto de cordas. Uma loura de jeans e top justo mas sem barriga de fora pilotava a percussão. Deve ser um dos melhores empregos do mundo, o de percussionista de banda pop: a garota fica lá no palco, ouvindo música legal, chacoalhando uns negocinhos, dando uns sopapos em instrumentos de nomes africanos bizarros, podendo desafinar ou errar à vontade que ninguém nota mesmo… Maravilha!

Biagio Antonacci me pareceu muito simpático e conversou com o público o tempo todo, mas nada daquelas palhaçadas de “que energia positiva vocês me passam”, mas simplesmente “vamo todo mundo voltar rouco pra casa de tanto cantar, e suado de tanto pular”, ou então “eu escrevi essa música quando levei um fora de uma pessoa muito legal, e depois disso entendi um monte de coisas sobre mim mesmo”, coisas light assim. Fãs lhe jogam um maço de rosas, ele recolhe e coloca com cuidado em cima do piano. Uma outra deixa um bilhetinho sobre o palco, ele pega e enfia no bolso traseiro da calça. Fãs lhe estendem as mãos desesperadas, ele toca todas, sorri, faz pose pro mar de máquinas digitais e câmeras de celulares apontadas pra ele. Em um certo momento, entre duas canções, enquanto ele falava sei lá o quê (eu estava ocupada distribuindo sanduiches às duas dragas), uma garota lhe estende a mão que segurava um Nokia 3310 azul marinho. Ele pega o celular e vai até o microfone. O pessoal faz silêncio e ele começa a engatar um papo com o cara que estava do outro lado do celular:

– De quem é esse celular? Lucia [pronúncia Lutchía]? Eu sei lá, cara, a garota me deu o telefone, eu peguei, não conheço ela não. E você é o quê da Lucia? Ih, rapaz… Aaaah, então você tá dizendo que a Lucia foi o grande amor da sua vida mas você nunca teve a coragem de dizer pra ela? Posso dizer a ela então? Posso? Beleza.

Ele se vira pro público e repete: eu não sei quem é o cara, mas ele tá dizendo que a Lucia foi o grande amor da vida dele… É mole ou quer mais?

Ele volta pro telefone:
– Não, eu não sei quem é Lucia, cara, eu tô no palco. É, tô no meio do show (risos). Olha, vamos fazer uma coisa: o pessoal vai ficar todo em silêncio, eu vou botar o celular no microfone e você dá um grito, faz um barulho, sei lá, qualquer coisa, tá?

O estádio emudece. Ele bota o celular no microfone e ouvimos uns gritos do coitado do cara no celular. Todo mundo cai na risada, ele pega o microfone, se despede do cara e devolve o celular à garota.

Mais tarde, no terço final do show, ele fala:
– Todo mundo aqui tem celular, né. Então, vamos apagar as luzes (escuridão total), todo mundo tira o celular do bolso ou da bolsa, liga e abaixa a mão. Quando a música começar, todo mundo levanta a mão ao mesmo tempo, vocês vão ver que efeito lindo, melhor que os isqueiros!

Não deu outra: todas aquelas janelinhas azuis, amarelas, cinzentas, todas brilhantes, acesas, iluminando a escuridão como estrelinhas. Bota qualquer isqueirinho cafona no chinelo.

No final ele ainda tirou uma garota do público pra dançar música lenta com ele. Dançou com a percussionista, sacaneou a saia do baixista, imitou o guitarrista. No final apresentou todos os músicos com muita calma e respeito, errou o nome da japa que veio saltitando lá do fundo com seu violoncelo na mão, e foi embora.

Apesar da acústica horrível e da bunda dura depois de duas horas sentada no cimento, nos divertimos bastante. A caminhada de volta ao carro foi agradável, porque a temperatura estava perfeita. O único porém foi ter que acordar cedo no dia seguinte, pra vir pra oficina…

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Quinta que vem faço a prova prática de motorista. Vai ser em Perugia mesmo, e eu odeio dirigir em Perugia, mas pelo menos vai ser na zona industrial, que eu conheço razoavelmente bem porque toda hora estou lá pegando peças em um fornecedor qualquer. Tomara só que o examinador não seja mala.