XV
O rapaz acordou muito bem disposto no outro dia, estava, ou pelo menos parecia, restabelecido completamente. Os ares tonificantes de Santa Teresa produziram-lhe efeitos miraculosos.
– Até que enfim podia mandar ao diabo os xaropes e as tisanas que, de tempos a essa parte, lhe melancolizavam a vida e relaxavam o estômago. E, ainda metido entre os lençóis, na matinal preguiça das sete e meia, dispunha-se a filosofar sobre o ridículo episódio da véspera, quando um leve rumor na porta do quarto lhe desviou o curso das idéias. Era a menina que trazia o café.
Viu-lhe a pálida mãozinha medrosamente sordir por entre a fisga da porta mal cerrada, para depôr no chão, como era de costume, a chávena de porcelana. Amâncio, porém, desta vez saltou da cama e, correndo de gatinhas, a empolgou nas suas.
A mãozinha quis fugir, ele não consentiu, e com ela veio um braço que as folhas da porta arremangavam.
Começou a beijá-lo sofregamente, desde a ponta dos dedos até os biceps; enquanto Amélia, sempre escondida ia consentindo, toda ela arrepiada em cócegas.
– Um beijinho… pediu ele, mostrando o rosto.
– Logo!
– Com certeza?…
– Com certeza!
E a pequena desapareceu muito ligeira, – tique, tique, tique, pela escada.
Pouco depois combinaram a primeira entrevista. Ela subiria ao sótão, logo que a casa estivesse completamente recolhida. Amâncio que a esperasse no escuro e com a porta do quarto apenas cerrada.
O rapaz não pôde ficar tranqüilo nem mais um instante.
As horas nunca lhe pareceram tão longas e as conversas tão intermináveis. Um sobressalto feliz perturbava-o todo, tirava-lhe o apetite e não lhe permitia um pensamento que não fosse cair aos pés de Amélia.
Por maior caiporismo, o Dr. Tavares tinha essa noite uma visita que parecia disposta a não largá-lo. Era um velho de sua província, muito falador de política, apaixonado pelas eleições, pelos conservadores, mas que, nem à mão de Deus Padre, pronunciava os rr e os ss e dizia: “Os partido liberá, os senadô”, e outras barbaridades.
– Quando se irá este cacete?… pensava Amâncio, trêmulo de impaciência.
E o Tavares a puxar pelo demônio do homem, a fazer-lhe perguntas sobre perguntas e a despejar contra ele a sua retórica inexaurível.
Até o guarda-livros que às vezes passava dias e dias sem dar uma palavra, estava essa noite disposto a falar pelos cotovelos. Ainda pilhara o chá e, repimpado na cadeira, com um brilhante a luzir num dedo, o ar satisfeito, os punhos bem engomados, taramelava a respeito dos seus projetos de casamento. “Sim, que ele, havia coisa de ano e meio, estava para desposar uma linda menina e de educação esmeradíssima. Já há que tempos a pedira!… Só esperava que a casa, onde trabalhava desde os seus quinze anos, lhe desse sociedade, como aliás, havia já prometido. Ah! Toda a sua ambição era fazer família! Que vidinha melhor que a do casado?… o matrimônio era um complemento do homem… A gente enquanto moça não sentia a falta da esposa, mas depois?… quando chegasse a velhice?… Aí é que seriam elas! Não! não podia admitir um eterno celibato!… A vida do solteiro tinha seus encantos, tinha, para que negar?… os espinhos, porém, eram em maior número; se eram!…”
E citava os casos.
Amâncio retirou-se da varanda, sufocado de raiva. Preferia esperar no quarto.
Deram onze horas. Amelinha pediu licença e também se recolheu. Mme. Brizard, à cabeceira da mesa, já bocejava, entretendo os dedos a fazer pílulas das migalhas de pão que ficaram do chá; o marido, ao lado dela, estudava mecânica racional.
Veio finalmente o copeiro levantar a mesa e buscar o César para a cama. O guarda-livros apertou as mãos de todos e sumiu-se; o sujeito dos partido liberá, a despeito das insistências do amigo, despediu-se igualmente e, quando o advogado, que o fora acompanhar até o portão da chácara voltou à varanda, já não encontrou ninguém.
Em pouco a casa era toda silêncio e trevas. Então, Amelinha, deixou o quarto sorrateiramente, tirou as botinas, apanhou as saias e galgou a escada do sótão.
Amâncio, que a esperava na porta, logo que a teve ao alcance da mão, puxou-a para dentro, e deu uma volta à fechadura.
Casa de Pensão, Aluísio Azevedo
Editora Ática, 2a edição