Hoje chegou pelo correio um estojinho japonês lindo mandado pela minha amiga Hanae, de Osaka. Como de modo geral toda a Europa, a Itália está eternamente infestada de japoneses. A Università per Stranieri di Perugia, onde estudei em 2002 (que saudade! Que saudade da polacca pazza!), não é exceção. Na nossa turma havia duas que fizeram o curso completo de seis meses, Hanae e Ayako. Moravam juntas mas não conviviam harmoniosamente, coisa que eu obviamente só fiquei sabendo agora porque nenhuma das duas jamais deixou transparecer nada. Dois doces de meninas. Eu normalmente não gosto de gente docinha, e confesso que particularmente da Ayako (depois explico) tinha um pouco de pena, um sentimento que eu desprezo. Mas realmente gostava da companhia delas, de verdade. Meninas calmas, risonhas, esforçadas.
Além do Silvio, que é um santo, só eu tinha paciência com as meninas. Sei que pode parecer estranho, mas eu adoro ensinar, explicar, elucidar, esclarecer. ADORO. E tenho paciência com gente burrinha, afinal de contas a culpa não é deles. Só não tenho paciência com médico que escreve tuberculose à esclarecer, com engenheiro que vai almoçar no restaurante à kilo, com advogado que dá uma telefonema, com arquiteto que escreve se você quizer, com professor que estuda a calda do girino (essa eu vi, ninguém me contou. E adivinha como se chamava? Suely.), com tradutor que escreve encima. Com gente geneticamente burrinha, ou que simplesmente tem talentos diferentes dos meus, eu tenho paciência sim. E adorava explicar gramática italiana pras japinhas. Adorava estudar com elas.
São meninas completamente diferentes uma da outra. Ayako tem vitiligo e usa maquiagem pesada; é claramente envergonhada da sua aparência e é a típica japonesa de excursão na Europa, com cabelos tingidos e permanentados, roupas caras e bonitas quando analisadas separadamente mas um desastre quando combinadas, pernas tortas e passinhos de gueixa. É bobinha, não entende piadas, é infantil e sonhadora, tem bolsinha da Hello Kitty não porque é cool mas porque adora a Hello Kitty, os pais não querem que ela se case, nunca, pra ter alguém que cuide deles na velhice. Hanae é beeeeem mais inteligente e beeeeem mais esperta; menina safa, que mesmo não conseguindo sacar, de ouvido, a diferença entre R e L, é capaz de dar gargalhadas verdadeiras com uma piada engraçada ainda que leve um tempinho pra registrar a informação em língua estrangeira. Eu adorava as duas. Hanae foi embora assim que terminou o curso mas me escreve sempre, às vezes me manda presentinhos. Trabalhou numa padaria em Osaka e me escrevia reclamando que era muito chato. Agora voltou a estudar italiano. Ayako ainda ficou mais um tempo, refazendo pela terceira vez o curso de italiano no qual sempre levou bomba; trabalhou um tempinho numa agência de turismo em Perugia, namorou um croata que morava na Grécia mas só queria o dinheiro dela, sofreu com a desilusão, culpou o vitiligo, seu visto acabou e ela voltou pra casa. Agora dá aulas de italiano pra crianças. O e-mail que ela me mandou antes da primeira aula dizia que ela estava muito neruvosa mas confiante de que tudo daria certo. Torço muito por ela, de verdade.
As imagens mais significativas que tenho delas ocorreram no jantar brasileiro que fizemos na casa do Silvio. A Hanae raspou até o último grãozinho de farofa da panela. E a Ayako bebeu meio copo de vinho branco e entrou na sala dizendo: mi sento rivera! (mi sento libera), ou seja, me sinto livre coitada, se embebedou com meio copo de vinho branco vagabundo e já se sentia poderosíssima.
Adoro as duas, e essa semana pensei muito nelas, depois que chegou o cartão de Natal da Ayako. Mais ainda depois que o estojinho lindo da Hanae aterrissou aqui em casa.
Fui correndo enchê-lo de canetas coloridas. Eu tava mesmo precisando de um estojo! Fico que nem criança quando consigo organizar essas coisas: agenda nova, estojo novo, canetas coloridas, borracha nova, branquiiiiinha! Fico toda hora tirando tudo da bolsa, olhando, namorando, depois boto tudo de novo na bolsa.