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Os dias têm andado corridíssimos. Ontem foi a última aula de Português pra Bicha Chata, o que significa cinco horas e meia a menos de aula por semana, até me arrumarem outros alunos. Quando não estou dando aula, estou rodando por aí, entregando faturas a clientes e levando cheques a fornecedores, pegando peças de caminhão ou latas de tinta e solvente com o meu carro, o do Mirco ou o Fiat Uno caquético da oficina, encarando a fila no banco ou nos correios. E o resto do tempo fico aqui na oficina, que por enquanto anda bem tranqüila, apesar de não faltar trabalho. Estamos numa fase interessante, de preparação pré-organizativa, por assim dizer. Oficialmente desde primeiro de janeiro a oficina está no nome do Mirco, e começamos tudo do zero. Arrumei todo o escritório, exilei lá pra cima do armário os arquivos e fichários com documentos de 99, 2000 e 2001 e trouxe os outros, mais recentes, pra dentro do armário. Tirei muita poeira e teia de aranha, botei tudo em ordem cronológica, remendei etiquetas caidas; fizemos novas etiquetas e divisores internos pros novos fichários, tudo mais simples e mais organizado. Dei uma geral no computador, que é entupido de coisas estranhas em lugares bizarros – culpa da terrível falta de intimidade do italiano com eletrodomésticos em geral. A Elisabetta, secretária que saiu daqui no começo de dezembro, era um amor mas não particularmente brilhante. Assim como o Mirco, só sabia usar Excel, até pra escrever cartas, um hábito abominável que estou custando a remover do cérebro do lanterneiro. Além disso ela tinha mania de salvar documentos, muitas vezes enormes, no desktop – não sabia criar atalhos. Há varios files chamados “fatura” – de quê? De compra? De venda? De que ano? A quantidade de post-its colados pelo computador, ao redor do monitor, por cima das páginas do calendário de parede, é assustadora. Há uma quantidade impressionante de informação espalhada por todo o escritório, e aos poucos estou tentando botar ordem nas coisas, juntar anotações que falem do mesmo assunto, criar bancos de dados, atualizar os já existentes. Criei arquivos e tabelas pra tentar facilitar na hora de fazer as faturas, que devem fazer referência aos respectivos recibos fiscais e documentos de transporte; assim, em vez de ter que enlouquecer catando toda essa papelada na hora de faturar, basta copiar e colar a informação que já inseri na tabela.

Mas a culpa do antigo caos não era só da Elisabetta, coitada. Aqui ela tinha que lutar contra uma quantidade imensa de monstruosos inimigos da calma, da paciência e da organização: a ignorância, a voz alta, o stress, o dialeto e o semi-autismo do Ettore; a ignorância, a voz alta, o stress, os dialetos e a total falta de educação dos motoristas de caminhão, que entravam aqui como se fosse a casa da mãe Joana, falando alto, pegando no telefone, fumando, apoiando coisas em cima da escrivaninha; o barulho enlouquecedor de tornos, esmeris, prensas, máquina de cortar folhas de metal, pistolas de pintura a jato de ar comprimido, marteladas, marretadas, furadeiras, máquinas de soldar; a eterna poeira que se deposita imediatamente após a mais vigorosa faxina; a sirene de alerta das duas empilhadeiras quando dão marcha a ré; o cheiro de tinta, o fedor dos marroquinos, a fumaça dos caminhões, a umidade e o frio ártico do escritório, as blasfêmias de todos aqui – outro hábito horrível que estou penando pra abolir da vida do Mirco. Difícil se concentrar e fazer alguma coisa direito com tudo isso acontecendo. Mas aparentemente agora a coisa se acalmou, porque o Ettore realmente parou de dar pitaco e só abre a boca quando lhe perguntam alguma coisa. Cliente que não paga não é mais atendido, fornecedor que erra muito nas faturas (sempre pra mais, obviamente) e/ou entrega o que lhe dá na telha, além do que foi pedido, deixa de ser fornecedor, e só isso já reduziu MOOOOITO o nível de stress. Também não se faz mais hora extra; chega-se meia hora mais cedo de manhã, tenta-se respeitar os orçamentos feitos aos clientes, vai-se embora na hora de ir embora. Mudamos de contador: deixamos pra lá o Furio, que é amigo da família mas um horror em termos de organização e pontualidade, e pegamos o Giuseppe, amigo do Moreno, um cara legal, jovem, formado em Economia e Comércio, que sabe o que está fazendo. Então começamos com o pé direito, com tudo novo, tudo organizado, todos os documentos em ordem e tirados no prazo certo, tudo devidamente carimbado, assinado, xerocado, arquivado, de modo que não vai mais ser preciso organizar uma caça ao tesouro pra achar uma xerox do documento do marroquino ou os documentos de smaltimento (como é isso em Português? Em Inglês seria algo como disposal) de tinta e outros materiais tóxicos que obviamente não podem ser simplesmente jogados no lixo. Agora sabe-se onde está tudo, criamos uma bela rotina de trabalho, o que reduz a probabilidade de erros e de esquecimentos; quem manda é só o Mirco, de verdade, nada mais de autoridade dividida; não tem mais briga com cliente chato que não paga, não tem mais aquelas loucuras de trabalhar sábado à tarde e domingo de manhã porque o cliente largou o caminhão aqui na sexta à noite e o quer pronto e pimpante na segunda de manhã cedo, não tem mais essas maluquices. Já consigo ficar aqui o dia inteiro sem querer chorar de irritação, como acontecia antes.

Claro que o ideal seria estar dando mais aulas e vir pra cá só nas horas livres, até porque agora ficou muito mais fácil e muito menos time-consuming manter tudo organizado, e não há necessidade de ter alguém aqui plantado no escritório oito horas por dia. O telefone toca menos, porque praticamente só cliente chato é que ligava pra torrar a paciência do Ettore; como agora já sabem que com o Mirco o buraco é mais embaixo, os mais chatos simplesmente deixam de vir, pra não ter que ficar chorando preço, prazo, sei lá mais o quê, ou explicando por que raios não pagou a última fatura, ou por que o cheque bateu e voltou. Depois de um certo horário já não tenho mais nada de concreto pra fazer, enquanto que em casa as coisas pra limpar, as roupas pra passar, a comida pra cozinhar, a louça pra lavar (ah, isso não, porque eu sou paranóica com louça e lavo tudo antes mesmo de terminar de mastigar a última garfada), os livros pra ler, as coisas pra escrever, o nada pra fazer, se acumulam. Não posso reclamar; gosto de me sentir útil, e menos culpada por não poder pagar exatamente a metade de todas as nossas contas, e também estou aprendendo muita coisa e tentando perder a mania de deixar tudo pra cima da hora, mas por outro lado preciso de tempo pra fazer as minhas coisinhas. Estou de dedinhos cruzados pra ver se me aparecem novos alunos e novas traduções. Já falei com a Bicha Pedagógica lá da escola pra me arrumar logo uns alunos, de preferência por ali mesmo, na sede, e não em Perugia, que eu não tenho dinheiro pra pagar toda essa gasolina. Vamos ver no que vai dar. Já apareceu uma proposta pra dar aula pra um casal “muito exigente”, o que quer que isso signifique, lá nos cafundós do Judas, sexta-feira, das sete às nove da noite. Falei pra Bicha Pedagógica, tá brincando, né, nega? A escola considera toda Perugia como sendo “in zona”, e por isso não me paga adicional, mas pra mim não é não! São trinta quilômetros da porta de casa até essa última saída de Perugia, e é melhor nem falar dos engarrafamentos. Inda mais sexta-feira à noite! Tá bom que o cinema fica ali pertinho, mas peraí, né, tudo tem seu limite. Ele ficou de me arrumar coisa melhor, mas insistiu muito pra eu pensar, porque esse casal “muito exigente” não quer qualquer um dando aula pra eles não, e eu sou ex-médica, limpinha, domino perfeitamente todas as línguas que falo, não blasfemo nem falo (muito) palavrão, sou viajada, estudada, cheirosa, tenho dentes estupendos e fisicamente tenho nacionalidade não-definida, o que, acreditem, é uma coisa ma-ra-vi-lho-sa. Bicha Pedagógica deixou bem claro que eu TENHO que ir dar aula pro Casal Exigente, porque não há mais ninguém na escola que tenhas as minhas características – só ele, que morou 8 anos em Londres, coisa que ninguém diria já que ele não é exatamente muito esperto. Mas dar aula lá onde o vento faz a curva você não quer, né, bella? Bati o pezinho e disse pra ele jogar uma conversa em cima do Chefe Catanese (ah, esses sicilianos…) pra ver se ele me paga a gasolina. Senão não tem história. Ah, fafavoaêeee….