Ontem fomos jantar uma pizza básica na nossa pizzaria preferida, agora melhor ainda sem gente chata fumando do seu lado. Tinha pouca gente, porque tá frio demais pra sair à noite, e os adolescentes que normalmente freqüentam o lugar chegam de lambreta queria ver vocês encarando lambreta à noite com temperaturas em torno de zero Celsius. Depois, como fazemos sempre, fomos dar um pulo na Arianna pra cumprimentar os cachorros. Encontramos a seguinte situação: na garagem, Demo dormindo sozinho, com o buraco nas costelas do lado esquerdo que um cachorro da vizinhança lhe deu com uma dentada, domingo passado. Na cozinha, lá em cima, um presépio vivente: Arianna e Lucia (a avó do Mirco; mais conhecida como Laspo’, apelido de La Sposa, que era como o falecido marido a chamava) cobertas de farinha, despejando um fio de mel e de Archemis (um licor vermelho horripilante) sobre um prato de chiacchere. Leo deitado num tapetinho na lareira, com a barriga virada pro fogo, a cabeça apoiada na pata direita, essa por sua vez apoiada na borda da grelha pra bisteca, a mo’ de travesseiro. Ao lado dele, quase caindo, Virgola, sua mãe aleijada (aqui se diz handicapped, mas pronuncia-se ândi-kappáta), com três metros de língua de fora. Ela sempre dorme ali perto da lareira, mas quando começa a esquentar demais começa a suar e logo olha pra gente desesperada pedindo água. Quando tem que dividir o espaço com o Leo, que é um folgado como eu nunca vi na vida e espaçoso como ele só, acaba sendo deslocada pro lado, a ponto de cair no chão. Legolas estava sentado embaixo da mesa, só com o focinho aparecendo por baixo da borda do tampo, encarando o prato de chiacchere com a cara mais séria do mundo e abanando a ponta do rabo.
Chiacchere* (ou frappe, o nome muda dependendo da zona) são doces típicos de Carnaval. São feitas, como a massa de macarrão, com farinha de grão duro e ovos, mais “uma gota de vinho ou de Martini pra ficar crocante, uma pitada de açúcar e raspas de limão”. A massa é cortada em fitas largas, que depois são meio que trançadas, ficando mais ou menos com a forma da fitinha vermelha da campanha anti-AIDS. Depois são fritas, escorridas, polvilhadas com açúcar de confeiteiro (zucchero a velo) e cobertas com um fio de mel ou de Archemis, o tal licor maldito. Eu detesto, porque não sou muito chegada em fritura nem em quase nenhum doce que não leve chocolate na receita, mas aparentemente o Legolas adorou, porque depois que comeu a primeira ficou com aquela cara de pastel, encarando fixamente o prato e grunhindo quando fingíamos que não estávamos entendendo. Depois foi se sentar perto do balcão, bem debaixo do prato, encostou a cara na fórmica e soltou um suspiro imeeeeenso, até despertar a compaixão do Mirco, que lhe deu duas das pequenas. E depois chega, né, hora de dormir; levamos o pimpolho lá pra baixo pra dormir com as gatas, chafurdando em meio a velhos suéteres de lã e edredons furados. Leo ficou lá na lareira, claro, porque afinal de contas quem comanda o batatal cachorral da casa é ele, e sultão que é sultão tem todo o direito de ficar no quentinho até a hora que bem entender.
* Chiaccherare (pr. kiakerare) quer dizer conversar, bater papo. Os italianos têm o hábito de dizer “due” (ou “un paio”, um par, a couple) ou “quattro” quando se fala um número indefinido de palavras, passos, conversas ou qualquer outra coisa. Então “vou ali bater um papo” se diz “vado a fare due/quattro chiacchere”, e “vou dar uma voltinha” se diz “vado a fare due/quattro passi”. Não é incomum ouvir senhoras fazendo compras na barraca de fruta e verdura da Rita, dizendo “Dammi un po’ quattro pere, o’ Ri'”, ao que a Rita responde, “Quattro di numero?” (“Me dá umas quatro pêras, Rita”; “Quatro quatro mesmo ou quatro por assim dizer?”). É ou não é uma delícia essa língua? :)