Tomamos café da manhã praticamente feito em casa: pão quentinho, torradinhas deliciosas, geléias de pêssego e cereja feitas em casa que todo mundo adorou (eu não, tenho pavor de geléia), bolo de laranja e de chocolate, café com leite, suco de laranja, eu com meu leite + achocolatado. Preparamos nossos sanduíches com as compras de ontem, e às oito um microônibus veio nos pegar na porta da pousada. Descemos até a cidade, onde mudamos pra um ônibus normal (a pousada fica na parte alta da cidade, e ônibus grandes não seguram a onda das ladeiras de areia), e fomos direto ao Parque Nacional Los Glaciares. A estrada é bem longuinha e a paisagem é estranha e muda bastante quando se entra no parque: começa-se a ver estranhas árvores peladas, de troncos cinzentos e retorcidos, aparentemente mortas, mas com alguns brotos saindo daqui e dali. Muitas árvores derrubadas os ventos patagônicos podem chegar a TREZENTOS E CINQÜENTA QUILÔMETROS PÓR HORA. Há tratores e caminhões fazendo obras na estrada estreita, e durante um período do dia, no meio da tarde, o trânsito fica proibido.
E aí acontece o seguinte: você vai vindo pela estrada, vendo aquelas árvores todas, aquelas montanhas com o topo pelado e o resto coberto de vegetação, e de repente, lá atrás de uma curva, vê uma coisa branco-azulada muito esquisita, boiando na água anil do Canal de los Témpanos, que cai no Lago Argentino, às margens do qual fica a cidade de El Calafate. O ônibus vai se aproximando, se aproximando, o negócio branco-azulado vai ficando mais visível mas ainda incompreensível, você vai ficando curioso, querendo entender, até que o ônibus pára e te deixa numa espécie de praça/estacionamento de ônibus e o motorista marca um horário pra você voltar e você sai descendo pelas passarelas e começa a babar, porque é uma coisa linda demais da conta, sô. Mas então, você tá ali tirando fotos e babando, tentando entender aquele azul de onde é que vem, quando de repente escuta um crack. Saca desenho animado, quando o coiote tá na beira de um precipício e a plataforma onde ele está se racha e começa a se separar do corpo da montanha e você ouve o barulho da rachadura se alongando? É aquele barulho, igualzinho, mas muito mais alto. E depois vem um barulho de tiro ou de trovão, e você não sabe de onde vem, e não entende o que é enquanto não vê um pedação da parte anterior da geleira se destacando e caindo na água anil do canal. Cada pedação monumental, e o barulho é assustador. A geleira é linda, e mais linda ainda porque fica no meio daquela água azul, e com montanhas verdes e árvores ao fundo. Ou seja, totalmente nada a ver. Então agora vou explicar como é que essa geleira consegue estar ali, já que não é tãaaaao frio (porque se fosse as árvores não existiriam, certo?). A explicação quem nos deu foi o guia do minitrekking, que conheceremos daqui a pouco.
El Calafate não fica tão no sul assim. Sua latitude equivalente no hemisfério norte é roughly a mesma de Londres ou Paris. Ou seja, em teoria o clima é temperado. Só que uma conjunção muito particular de fatores geográficos causa fenômenos estranhos, como essas geleiras malucas: como em todo aquele intervalo entre paralelos, ao redor da Terra, só existe a Nova Zelândia, além da Patagônia, os ventos que giram naquela faixa não só correm livres, sem obstáculos, como também carregam uma cacetada de umidade, recolhida da evaporação do mar. Quando os ventos, que normalmente correm de oeste a leste, dão de cara com os pequenos e delicados Andes, lógico que não conseguem passar direto como se nada fora. Encontrando aquelas alturas geladas, os ventos úmidos não têm outra alternativa que não nevar. Neva 300 dias por ano naquela zona, nas montanhas. Toda aquela neve que cai vai se compactando sob o seu próprio incrível peso, virando uma massa densa que, com os anos, vai virando gelo. Entenderam? NÃO É ÁGUA QUE CONGELOU, É NEVE QUE COMPACTOU. E por que é que essa massa de neve dura desce a ladeira, então? Por três motivos, segundo nosso guia: porque é muito pesada, e seguindo a máxima de que pra baixo todo santo ajuda, quanto mais pesado, maior vai ser a velocidade de descida. Porque as montanhas são altas, ou seja, o plano é inclinado, e quanto mais inclinado, maior vai ser a velocidade de descida. E porque, como não é exageradamente frio, conforme vai se afastando do cume gelado das montanhas, uma parte da geleira vai derretendo. A película de água que se forma entre a geleira e a montanha funciona como lubrificante, facilitando a descida da geleira. Disse o guia que até 1917 a geleira descia cerca de uma centena de quilômetros por ano, e que nesse ano tocou a península de Magallanes pela primeira vez, e a partir daí se estabilizou. Hoje é uma das poucas geleiras estáveis do mundo, fica mais ou menos no mesmo lugar o tempo todo. A velocidade de formação, com a neve nas montanhas, é de um metro ao dia; esse mesmo metro é mais ou menos o que se perde por dia, entre os blocos que se soltam e a neve que derrete. Então ele vai descendo muito pouco conforme o inverno chega, descendo, descendo devagarinho, paciente; no máximo do inverno toca a península de Magallanes, bloqueando a passagem da água de um lado pra outro do canal. O lado que não se comunica com o Lago Argentino continua a receber água dos riachos e rios que descem das montanhas e colinas, e o nível da água vai aumentando. O peso dessa água toda pressiona essa ponta da geleira que toca a península, formando arcos, que mais tarde caem. Ou então a quebra é mais violenta, com a pressão da água derrubando de uma vez essa ponta que toca a península e nessas vezes dizem que o espetáculo é uma coisa impressionante, como aconteceu no ano passado. Esse ano, infelizmente, a ruptura foi gradual e nada espetaculosa, e aconteceu de janeiro a fevereiro normalmente rola em março. Como essa geleira mais famosa, o Perito Moreno, existem pelo menos outras 50, menos famosas e algumas menos acessíveis.
Mas então, continuando: depois de um zilhão de fotos e várias babações, fizemos nosso lanchinho e voltamos pro ônibus. Andamos mais um pouco e descemos num pequeno porto do outro lado do canal, o tal lado que não se comunica diretamente com o Lago Argentino quando a geleira desce e bloqueia a passagem da água. Passamos pertinho da outra diagonal da ponta da geleira, e a vista é deslumbrante, mas rola um medinho de ver um pedação caindo e fazendo rebolar o barco. Felizmente (ou infelizmente, porque apesar do medo deve ser lindo) não vimos nada do gênero. Descemos na margem lá do outro lado, onde há um refúgio dos guias que fazem esse minitrekking. Todo mundo faz xixi, deixa as bolsas e mochilas que não servem e calça luvas que eles sempre têm de reserva repito, não porque é frio, mas porque a geleira não é de gelo mas de neve congelada, que corta feito navalha. Parece que é superfrio porque estamos muito vestidos, mas na verdade estávamos era suando debaixo daqueles casacos todos, que não queríamos deixar no Refúgio porque, bem, nunca se sabe. Caminhamos por entre pedregulhos grandes e poças d’água até chegar às margens da geleira, onde ela se encontra com a terra e as rochas. Paisagem estranhíssima. Nossos guias eram Fernando, que foi quem nos explicou a formação da geleira, usando um graveto pra desenhar na areia, a Luli e o Fabio, todos muito gentis. Sentamos nuns banquinhos e os guias começam a amarrar esses papatinhos com grampos por baixo, nos nossos sapatos. Recebemos instruções de como nos movimentar sobre a geleira, e começamos a subida. Claro que não subimos na parte que parece uma floresta de picos de gelo azul, mas nessa parte lateral, onde a neve compactada formou dunas, por causa do relevo do terreno que há por baixo. É divertido e bonito, mas MUITO cansativo porque os diabos dos “sapatos” são pesados que nem a peste, e porque subir e descer ladeira toda encasacada não é nada legal. No caminho vêem-se poças de água, buracos (“sumidouros”) às vezes do diâmetro de um braço, às vezes do tamanho de um carro, causados pelo derretimento da geleira. A água dentro desses buracos é cristalina e puríssima deliciosa, porque não tem gosto de nada. Descemos em um desses grandes buracos, e é uma coisa esquisitíssima: esse teto de gelo azul que pinga na sua cabeça sem parar, e um riacho correndo por entre a terra e as pedrinhas, por baixo. Bizarro.
Depois de cerca de uma hora de trekking, os guias nos levam até um mini-vale entre duas dunas onde fica perpetuamente armada uma mesinha com uma tigela de bombons da Arcor imitando Serenata de Amor, umas garrafas de whisky, copos e duas jarras, que se enchem com água de um sumidouro qualquer. O whisky é servido, claro, com gelo raspado diretamente da geleira. Now that’s a classy whisky on the rocks alright.
Voltamos ao Refúgio, pegamos nossas coisas, quem queria tomou café, quem precisava fez xixi, o barco chegou, voltamos ao porto, pegamos o buzum e voltamos pra cidade. Gianni e Chiara foram à missa das 8 e eu e Mirco fomos fazer compras e trocar dólares. Pegamos os meninos na igrejinha e fomos jantar no Mi Viejo de novo; dessa vez pedi um salmão grelhado, que veio imenso e delicioso, com pirê de batata. Os meninos atacaram de chinchulinas (em italiano se chamam trecciole e são consideradas uma iguaria, ainda mais depois que todas as doenças malucas de vacas e afins proibiram sua comercialização: são os intestinos da vitela, coitada. Não como nem que me paguem.) e parrilla, Chiara pegou leve e além das chinchulinas comeu só uma omelete espanhola (com batatas e cebolas). Voltando à pousada, fui direto dormir (leia-se ver E.R.), enquanto o resto do pessoal foi bater papo com o Mariano e o Matias no albergue.