Parque Nacional Torres del Paine, Chile

Acordamos às cinco da manhã. Na noitinha anterior, a dona da pousada tinha deixado no nosso quarto uma bandejona com bolo, garrafa térmica com café com leite, geléia e torradinhas. Tomamos café às 5:40 e às 6 o microônibus passou pra nos pegar. Pensamos que seria o mesmo esquema de ontem, ou seja, depois mudaríamos pra um ônibus maior, mas que nada! Passamos em vários albergues e hotéis e pousadas na cidade, recolhendo gente. Todo mundo meio sonolento, encasacado e cheio de comida na mochila, porque o dia seria longo.

A estrada é longa e tediosa, em linha reta, ladeada de desertos, com um carneiro aqui e ali, pastando os tufos de plantas ressecadas. A van era velha e sacolejava toda, e depois de uma certa hora ninguém mais conseguia dormir. Acabamos fazendo amizade com uma galesa boazinha mas muda feito um peixe, uma russa interessante que morava em NY, e uma suíça maluca e muito simpática. Depois de não sei quantas horas de viagem, finalmente chegamos à fronteira com o Chile. Aí começa a chatice: todo mundo desce da van, faz fila na casinha da Argentina, entra, dá o passaporte, olham todos os seus carimbos, carimbam felizmente na mesma página do enorme carimbo de entrada na Argentina, devolvem o passaporte, sai, entra outro. Sobe todo mundo na van de novo. Atravessamos alguns quilômetros de terra de ninguém, chegamos à casinha do Chile. Desce todo mundo da van, faz fila na porta da casinha, não pode entrar com certas coisas no parque, tipo salames e embutidos, frutas, etc, todo mundo começa a comer desesperadamente as bananas e sanduíches que tinha trazido achando que ia conseguir passar, dá o passaporte, carimbam, devolvem o passaporte, vai ali na esteira que vão revistar a mochila, confiscam uma banana, jogam no INCINERADOR. Sai, entra outro. Sobe todo mundo numa Besta, também com o pára-brisa rachado, fazemos três metros e paramos outra vez. É uma espécie de bar-lojinha de souvenir, um cabeludo surge não se sabe de onde e nos manda entrar pra trocar dinheiro, porque pra pagar o ingresso no parque tem que usar necessariamente pesos chilenos. Desce todo mundo da van, entram no bar-lojinha, trocam dinheiro e compram balas e chicletes, sobe todo mundo na van de novo, e continuamos.

Não chegamos nunca, é o que parece. A estrada é TERRÍVEL, nem asfaltada mas nem de terra, mas de pedras. Não falo de paralelepípedos nem de cascalho, mas de PEDRAS mesmo, de modo que pulamos feito cabritos por mais ou menos uma hora, as vozes saindo tremidas por causa dos pulos, enquanto o vento uivava lá fora e o tempo fechava. O Gianni tem hérnia de disco e acho que nunca sofreu tanto na vida dele. Na entrada do parque, a russa, a suíça e mais uma galera desceram, porque iam passar uma semana inteira fazendo trekking e dormindo nos hotéis e albergues do parque. Aliás, descobri que há um vastíssimo mundo de trekking que eu não conhecia, a literatura sobre o assunto é extensa, as lojas vendem infinitos modelos de casacos, calças impermeáveis e/ou antivento, tênis de trekking caríssimos. Fiquei tentada.

Entre os doidos que tinham feito aquela viagem imensa de ida pra ficar só um dia e encarar outra viagem enorme de volta, além de nós quatro, dois casais de espanhóis e a pobre da galesa muda. Depois de uma parada pra tirar fotos coletivas, montamos na Besta de novo e tocamos pra frente.

Vimos inúmeros guanacos, esses primos do lhama. Algumas emas também, cinzentas, camufladas contra o cenário de tons de cinza e terra. Depois de uma curva, no meio do nada, vemos o cabeludo na estrada, fazendo sinal de carona. Entra na Besta e se apresenta: é Daniel, nosso guia naquele dia. Paramos num laguinho pra tirar fotos em meio àquele vento fortíssimo, e quem nos esperava? Uma raposinha, zorro, em espanhol. Demos sorte, porque apesar de não ser rara, é arisca e normalmente prefere não se deixar observar. Ela ficou lá, deitadinha, os pêlos se agitando no vento, os olhinhos piscando, olhando muito séria pra gente enquanto o pessoal tirava fotos e mais fotos. Quando alguém abusava e chegava muito perto ela botava os dentinhos pra fora, mas com o vento não dava pra ouvir o rosnado. Linda, linda, linda!

Daniel explica que paine, na linguagem indígena local, quer dizer azul. As torres mesmo nós não vimos, até porque o tempo tava horrível, mas ele nos mostrou os Cuernos del Paine, ou chifres, coitados, que eu achei, pelas fotos que vi das Torres, ainda mais bonitos e interessantes. Com aquele céu tempestoso em cima, então, pareciam uma pintura.

Passamos por vários lagos e riachos. A paisagem é lindíssima; imagino que em um dia de céu limpo seja realmente de deixar você de boca aberta. O mapa que nos deram na entrada mostra inúmeras trilhas de trekking, algumas sobre as várias geleiras. O parque tem uma superfície de 242.242 hectares e foi criado em 1959. Em 78 foi declarado Reserva da Biosfera pela UNESCO. O folhetinho também fala das coisas que poderemos ver: o guanaco, o zorro, o puma, o raro huemul, em extinção, os cisnes, o condor. No verão a temperatura alcança máximas de 15º C e mínimas de 3º; no inverno vai de 8 a 2,5 graus. Os ventos predominantes sopram de oeste pra leste, e podem chegar a 60 km/h nos meses de outubro a março. Que sorte a nossa.

Paramos pra ver uma cachoeira, que molhou todo mundo naquele vento. Vimos um pato quebra-corrente, também raro, de cabeça vermelha, que se joga na correnteza como se fosse muito simples nadar contra aquela água forte e voltar pras pedras. A vista é deslumbrante e tiramos milhões de fotos, mas não foi fácil voltar à Besta, caminhando contra aquele vento maldito.

Já era hora do almoço e fomos comer numa espécie de pensão-restaurante tabajaríiiiissima no meio do parque. Eu tava sem fome e pedi uma sopa de frango, que veio com pelotas de pó pra sopas tipo Knorr, na maior cara-de-pau. Como sentamos todos juntos porque éramos poucos, acabamos finalmente conhecendo os dois casais de espanhóis, muito simpáticos. Os mais jovens eram de Barcelona, os senhores eram de Valencia, e falou-se muito da situação econômica decadente de Itália e Espanha e das gafes dos políticos de ambos os países.

Depois de comer continuamos até o Lago Grey, que tem esse nome porque é cinzento, pelo menos mais do que os outros lagos, que são azuis como o Lago Argentino. Pra chegar nele atravessamos uma ponte de madeira e cordas, daquelas que balançam terrivelmente. Subimos uma ladeira, olhamos pro alto e vemos periquitos dando escândalo, pousados no galho de uma árvore. Continuamos, e de repente vemos um murundu de gente em silêncio tirando fotos. Daniel logo faz shhhhhhhhhhh e vamos todos ver o que era: HUEMULS!!! São cervos, lindíssimos, estatisticamente considerados extintos. Em toda a extensão do parque só existem 50 exemplares, e nós demos a cagada de ver um casal descansando amarradão entre troncos caídos e o capim alto. Confesso que fiquei emocionada e por pouco não comecei a chorar. O Daniel trabalha no parque há seis anos e só tinha visto o bicho uma vez. São lindos, lindos, lindos.

Descemos a ladeira e damos de cara com a seguinte paisagem: uma praia IMENSA, de areia cinzenta, com um arbusto esquisito aqui e ali, inclinado pelo vento; uma massa de água cinzenta, e esses pedaços de gelo azuis boiando; ao fundo, as montanhas envoltas em nuvens e, supostamente, neve; láaaaa no fundo, a geleira, prima do Perito Moreno, que deu origem a esses pedaços flutuantes de azul. Meninos, não tem como descrever. Tem até foto no flickr, mas vocês têm que ir lá ver com os zóio que a terra há de comer. É bonito demais, e mais ainda porque é completamente surreal. Na praia de cascalhos, grandes pedaços de gelo esculpido pelo vento. O vento sopra sem parar e depois de meia hora afasta um pouco as nuvens; as fotos ficam melhores. A praia é longa e não chegamos até o final, de onde se vê melhor a geleira. Já tá tarde e é hora de voltar. Paramos pra ver uma moita de calafate, experimentamos as frutinhas, que têm gosto de amora e mancham a língua. O macho do huemul ainda tava ali quietinho, a fêmea já tinha ido embora.

Montamos na Besta e tocamos de volta pra casa. No caminho Daniel explicou que o puma, que infelizmente não deu as caras, é o único predador do guanaco no parque. Quando passamos pelos bandos de guanacos, um deles, que o Daniel explicou ser o macho dono do harém, logo vinha na nossa direção, botando banca. Se fosse um puma ou algo igualmente ameaçador, bastaria o guanaco-sultão levantar o rabinho: os outros do bando entenderiam o sinal e sairiam correndo em fila, porque eles sempre fogem em fila (e isso eu vi, porque algum sultão deve ter sido apressado e deu o sinal sem esperar pra ver se era puma ou não. Todos correndo ladeira acima em fila indiana, uma gracinha). No caminho até a saída do parque ainda vimos flamingos num laguinho.

A viagem de volta foi dura e longa e chata, ao lado da Chiara veio um israelense fedorento que ouvia música altíssima no walkman mesmo depois de ter caído no sono, e quando finalmente chegamos, já era meia-noite e eu não queria mais saber de nada. Os meninos foram papear com os meninos do albergue ao lado, mas eu tomei meu banho, escrevi no meu diarinho, e dormi vendo E.R.