Acordamos mais tarde hoje, fizemos as malas, e acabamos tomando café sozinhos com o Pasqual, o cachorro da pousada, porque o Gianni e a Chiara fizeram o contrário e tomaram café cedo pra depois fazer as malas. Deixamos tudo pronto na recepção, fizemos o check-out, passamos no albergue pra devolver o abridor de latas que o Mirco tinha pego emprestado pra abrir uma lata de um quilo de pêssego em calda (ele é viciado em pêssego em calda), e pegamos um táxi até o centro. Fizemos as últimas compras: um casaquinho pra Chiara (Nativos, Aldea de los Gnomos, 10 – não riam, apesar desse nome ridículo a Aldea de los Gnomos é uma galeria aberta, e cada loja é uma casinha de madeira muito bonitinha), brincos, um poncho pra irmã do Mirco, quadros com motivos indígenas (Pueblo Indio, Av. Libertador, 1080); deixamos os filmes do Gianni pra revelar (ele tira fotos com a digital, que não é uma Brastemp, e repete algumas com a velha, que é ótima) e fomos almoçar peixe no La Vaca Atada (sempre na Libertador), seguindo a sugestão da dona da pousada. Não sei se é porque me acostumei a comer peixe e frutos do mar preparados do modo mais simples possível, porque italiano não gosta muito de incrementar o que já é gostoso por natureza, mas não achei nada do outro mundo. Pedimos uma salada fria de frutos do mar pra dividir, depois todos fomos de risoto de lula com açafrão, que infelizmente veio cheio de pimentão, e de secondo pedimos lagostins com molho branco com champagne e cogumelos, que também não era lá essas coisas e escondia todo o sabor dos lagostins. Demos mais uma voltinha a pé pra digerir, pegamos as fotos e voltamos pro hotel. O microônibus que deveria nos levar ao aeroporto tinha acabado de chegar, então carregamos as malas e nos despedimos de El Calafate. Queria ter passado pelo centro novamente pra fotografar umas casinhas e uns hotéis deliciosos que ficavam escondidos em ruazinhas transversais à Libertador, mas o ônibus fez outro caminho e passou pela parte nova da cidade, onde tudo ainda é areia e as casas e hotéis e pousadas sobem da noite pro dia.
Chegamos cedo ao aeroporto e o vôo saiu no horário. Só que não tínhamos ligado o nome à pessoa, por assim dizer: tínhamos ouvido falar dos ventos patagônicos, visto seus efeitos sobre os pára-brisas dos carros, sentido na pele a ventania em Torres del Paine, mas não nos preparamos psicologicamente pra turbulência que obviamente resulta desse vento todo, ao descer em Ushuaia. Quase chegando à cidade, as montanhas altas e nevadas visíveis como uma pintura vistas da janelinha, lagos e deltas de rios abaixo de nós, um dia lindo com poucas nuvens, e de repente tuuuuuuuuuuuuuuum o avião deu uma descida, mas uma descida, meus queridos, do tipo que rearranja a arquitetura de todos os órgãos internos, e depois uma super-hiper-megasacudida, e só parou de sacudir quando pousou. Eu confesso que, muito estranhamente, não tive nem taquicardia; minhas supra-renais deviam estar dormindo porque fisicamente não tive reação nenhuma. Os outros três quase infartaram, principalmente o Gianni e a Chiara que detestam voar e às vezes têm que se dopar pra dormir, quando o vôo é mais longo. As comissárias de bordo nem tchum, e depois vieram nos dizer que era normalíssimo claro, só as bestas quadradas aqui não tinham feito a conexão vento patagônico + avião = turbulência arretada. Todo mundo desceu meio pálido do avião, mas fora isso, nada de mais. Lá fora, enquanto esperávamos o taxista pra nos levar ao hotel (incluído no preço da hospedagem), o vento só não nos levava embora porque somos pesados (eu e o Mirco porque somos gordos, Gianni e Chiara porque são altos). Uma coisa horrorosa. Lugar ideaaaaal pra mim, que ODEIO vento. Sapatinho que eu calço.
O táxi deu a volta numa baía, onde fica o aeroporto, e entramos na cidade. Uma coisa horrorosa. Favelão geral, só que na planície. A única diferença é que entre um barraco e outro, entre uma casa precária e um terreno baldio cheio de cacarecos podres, entre um container e casas inacabadas mas ocupadas assim mesmo, há uma casona enorme, ou um chalé bonitinho. Muito esquisito. E as cores? Casas lilás com telhado azul. Casas amarelas com telhado verde. Casas cor-de-rosa com telhado roxo. Casas vermelhas com telhado bege. Socorro! Vimos até umas casas revestidas com papel alumínio. Sim, aquele que a gente usa pra cobrir a lasanha no forno. Asfalto só em algumas ruas. Calçada, em nenhuma rua além da principal, praticamente. Cachorros em tudo que é lugar. Sinal de trânsito é coisa rara, ao ponto de virar ponto de referência, que nem aqui em Bastia. Poças d’água, crianças brincando nas poças, gente mijando na rua, uma coisa de louco. Os carros também são todos detonados e TODOS os pára-brisas são rachados. As pessoas são horrorosas e as lojas são feias, os restaurantes têm cara de sujos, uma coisa estranhíssima. Esclareço logo que quem deu origem à cidade foi uma penitenciária, que ainda existe e hoje é um museu. Tudo fez sentido.
O hotel é muito estranho. É uma casa amarelinha, no alto, longe do centro. Por dentro é tudo muito limpinho, perfumado, e lilás. TODAS AS PAREDES SÃO LILÁS. E as televisões dos quartos são ROXAS. E a roupa de cama e de banho é COR DE VINHO. A dona do hotel, que mora com o marido na casa logo atrás, em cuja cozinha tomamos café da manhã, é uma figuraça. Ela também é de Buenos Aires, e tem um jeito de falar muito engraçado. Logo de cara nos aconselhou a não pegar o famoso trenzinho do fim do mundo, porque segundo ela custa caro e o percurso é “mutcho cortito”, não vale a pena. A mulher parece ser boazinha (o que não a impede de ser paracula, como veremos mais adiante) e fala o tempo todo, sem parar. Queríamos provar a centolla (pronúncia: centoja), um caranguejo imenso feio pra cacete que é a iguaria típica de Ushuaia. Ela nos recomendou um restaurante, Al Grande Chef, que segundo ela não é coisa de turista, é freqüentado pela gente do lugar. Então, depois de uma rápida volta no centro, de três pares de calças jeans pro Mirco (porque ele SEMPRE arruma algum lugar pra comprar jeans baratos, onde quer que vá, e não é maluquice mas porque ele precisa, já que basta uma espirrada de tinta pra destruir uma peça de roupa) comprados numa galeria onde com certeza voltaremos antes de ir embora, de um banho no hotel, tocamos pro tal restaurante.
Nosso garçom era vesgo, com queixo de barracuda, e incrivelmente simpático e bonzinho. O mais engraçado nessa viagem até agora é definitivamente a nossa comunicação com os garçons, vendedores e afins, porque eu abomino o espanhol e só entendo se falam muuuuuuuuuito devagar, mas não consigo dizer uma palavra em espanhol sem ter vontade de rir (porque me lembro logo da Maria do Bairro, de Topázio e outras bizarrices mexicanas); Mirco namorou uma argentina por algum tempo e fez curso de espanhol e acha que fala, mas não fala nada; Gianni e Chiara estudam espanhol no curso tabajara do Comune de Bastia, mas ele é totalmente desprovido de talentos lingüísticos e ela, que aparentemente tem facilidade pra coisa, teve poucas aulas, que não são suficientes pra tornar mais fácil a comunicação. Mas de qualquer maneira conseguimos: Mirco não queria peixe e pediu uma parrilla que nem tocou porque lhe veio um episódio lancinante de cefaléia, eu pedi truta com recheio de centolla e acompanhamento de legumes (gostoso, mas não gostoooooooooso), Gianni foi corajoso e pediu centolla crua marinada no limão, e Chiara foi de centolla à milanesa, que segundo ela tinha gosto só de queijo e mais nada. Na verdade a centolla tem gosto de kani-kama, ou seja, de nada. Mas pode ter sido porque não fomos ao Tia Elvira, que tem fama de servir a melhor centolla da cidade e nos foi recomendado pelo taxista que nos pegou no aeroporto.
O vesguinho arrumou uma aspirina pro Mirco, chamou um remis pra gente, e tocamos direto pro hotel de paredes lilás.