Tomamos café da manhã na cozinha da casa da senhora, e pudemos ver melhor o marido, que nos recebeu depois do jantar ontem à noite. Parece um pingüinzinho, mas é MUITO simpático e bonzinho. O café da manhã é aquele sofrimento pra mim, que normalmente como coisas salgadas: aqui, assim como na Itália, o menu do desayuno é doce, e inclui as malditas medialunas, que nada mais são do que croissants doces e sem recheio, e café com leite. Pelo menos a senhora descolou um leite frio com chocolate pra mim, e comi as medialunas com manteiga e com queijo e presunto que sobraram de Calafate, fingindo pra mim mesma que eram deliciosos croissants salgados.
O tempo tava uma bosta: o vento tinha parado de soprar desde a noite anterior, mas o céu tava nublado e com pinta de chuva. Decidimos visitar o Parque Nacional Tierra del Fuego pela manhã, e, se o tempo melhorasse, iríamos à tarde visitar a Pinguinera, a ilha do canal de Beagle onde os pingüins se reúnem pra botar ovos, cuidar dos pimpolhos antes de migrar pra climas mais amenos, pra bater papo, essas coisas. Chamamos um remis e fomos direto pro porto, reservar lugar na excursão pra Pinguinera, e depois pro centro de informação turística, na rua San Martin, onde tínhamos uma missão muito importante a cumprir: carimbar o passaporte com o carimbo da cidade mais ao sul do mundo. Também ganhamos certificados, provando que estivemos aqui nesse buraco. Nem sabíamos dessa história do carimbo; fui eu que, com meus olhos de lince, vi dois carimbos lindos no passaporte da senhora de Valencia que visitou Torres del Paine com a gente, e deduzi que teria algum centro de informação pra turista que nos dava as carimbadas. O melhor é que é tudo de grátis.
Dali fomos pro parque. O passeio de três horas com um remis custa cerca de 90 pesos, se não me engano, valor que dividido por quatro pessoas e novamente por quatro pra quem ganha em euro fica ridículo. Como é bom fazer turismo em país em crise! Mas enfim, não sei se era porque o tempo tava realmente muito feio e começou a chover, ou se é o parque que é meio assim-assim mesmo, sei que não achamos nada de oooooh. Fora uma lebre aqui e ali, uma ave de rapina imensa pousada num galho numa clareira e uns bichos esquisitos, a única coisa que vimos de diferente foi a castorera, um dique construído pelos castores. Aí vocês me perguntam: ma che cazzo fazem CASTORES nesse fim de mundo?
O negócio é o seguinte: lá pros idos dos anos 50, o exército argentino teve a feliz idéia de importar 25 casais de castores do Canadá, que deveriam ter dado início a uma próspera criação de animais pra exploração da pele, pra fazer casacos e jaquetas que protegessem contra os ventos patagônicos. Só que obviamente a dieta patagônica não é igual à dieta canadense, e alguma coisa na alimentação transformou o pêlo dos castores, antes longo e macio, em uma coisa dura e áspera e corta que não serve pra coisa nenhuma. Os militares, então, com sua mitológica presença de espírito e criatividade e visão do futuro, o que fizeram? Largaram os castores pra lá. Só que no Canadá quem mantém as populações de castores sob controle são os ursos, que certamente têm mais o que fazer do que procurar sarna pra se coçar nesse fim de mundo que é a Patagônia. E então aconteceu o óbvio: sem predadores, os castores começaram a se reproduzir loucamente, e a população aumentou demais. Virou praga, pior que baratinha francesinha. Pra piorar as coisas, o castor patagônico não tem predador, mas ele não sabe disso, e continua construindo seus diques, que nada mais são do que um modo eficaz de afastar quem gosta de castor no menu, como se nada tivesse mudado. Os diques, porém, inundam áreas antes secas, e secam áreas antes irrigadas pelo rio. As árvores morrem por falta de água ou por excesso de água. Tem mais: eles se alimentam da casca das árvores, que acabam morrendo se muita casca for retirada. Tem mais ainda: como os dentes dos castores não páram nunca de crescer, eles têm que roer madeira o tempo todo pra gastá-los, mesmo madeira que não serve pra comer. Mais árvores destruídas. Resultado: pra tentar acabar com a praga, o governo paga 5 pesos pra cada castor abatido. Só que 5 pesos não compensam os gastos com armas e munição, e muito menos o tempo e o esforço necessários pra caçar um castor, que não é bobo e só dá as caras fora do dique à noite. Legal, né?
Enfim, depois da tal volta no parque pedimos pro motorista nos deixar no restaurante Opíparo, quase de frente pro porto (Av. Maipú, 1255 peçam pra ser atendidos pela Vanessa, que é boazinha e muito esperta e inclusive foi devidamente convidada pra conhecer a Itália), que tínhamos visto na noite anterior e nos parecera simpático. Acertamos em cheio: depois das devidas instruções, conseguimos comer massa al dente e pizza sem muito queijo, sem muito orégano e com um pouco de tomate extra. Felizes da vida com a barriga cheia, fomos a pé até o porto e pegamos o microônibus que nos levaria até a Estancia Harberton, uma espécie de fazenda, de onde pegaríamos a lancha até a Pinguinera. Pra chegar à Pinguinera, pode-se pegar um catamarã, que leva 4 horas e chega praticamente em cima da ilha, mas não deixa você desembarcar. Escolhemos a combinação microônibus + lancha porque assim poderíamos descer na ilha e caminhar entre os pingüins.
Além de nós, no microônibus, tinha um casal (ele mexicano e ela francesa), um outro casal de americanos, uma holandesa solitária muito boazinha, um casal de argentinos com uma bebezinha de colo, a Giuliana, LINDA e educadíssima, e a guia, Ana, com um caso grave de hemangioma no rosto, mas simpática. No caminho, paramos pra fotografar uma raposa que fazia cocô na beira da estrada, depois as árvores-bandeira, que ficaram tortas por causa do vento, umas vacas que passeavam por ali. Depois de muito sofrer com a estrada esburacada, finalmente chegamos à tal Estancia, que é absolutamente decepcionante.
Um pequeno aparte pra explicar a história da Estancia: um Thomas Bridge, órfão encontrado sob uma ponte e com um T bordado nas roupas e adotado por um pastor da igreja protestante inglesa, foi parar nas Malvinas pra catequisar a galera. Aprendeu a língua dos indígenas locais, gostou do clima e se mudou pro sul da Patagônia, onde fundou a primeira missão religiosa da região. Depois de alguns anos enchendo o saco dos índios de lá, voltou pra Inglaterra pra dar palestras nas universidades, conheceu a futura esposa, nascida na cidade de Harberton, e voltou com a coitada pra Ushuaia, onde fundou a tal da Estancia. Sei que até hoje a Estancia é administrada pela família Bridge, cujas últimas duas gerações agora vivem na cidade de Ushuaia e não querem saber muito da vida no campo.
Findo o aparte, voltemos ao nosso relato: montamos todos na lancha, que chamaremos de gommone porque o motor é montado numa base de fibra de vidro e borracha (gomma = borracha em italiano), e tocamos pra Pinguinera. Mesmo quando o tempo tá feio no mar, no canal de Beagle, que além de ser um canal é protegido por diversas ilhas, a coisa não é tão complicada. Mas pra uma lancha pequena como a nossa, sem motor de reserva, a viagem de dez minutos virou um pesadelo, porque o tempo virou em dois minutos. O céu nublado e chuvoso mas sem vento virou tempestoso, as ondas começaram a aumentar, a cobertura de plástico da lancha começou a voar com o vento, molhando todo mundo, e a Ana foi lá pra frente, onde eu tava, pra ficar segurando o flap que tinha se desamarrado. Meninos e meninas, não vos digo a altura dos saltos que dávamos a cada onda que a lancha enfrentava. Eu dei tanta porrada com as costas contra a armação de metal atrás de mim, a cada vez que descia de um desses pulos, que à noite eu me sentia como se tivesse apanhado. Chiara tava tão nervosa que nem chorava, agarrada no Gianni. O Mirco tava sentado à minha frente, e eu estava agarrada na manga esquerda do casaco; com a mão direita ele tentava segurar a Ana, que a cada salto da lancha perdia o equilíbrio, chegando a cair de joelhos no chão uma vez. A única que estava calma era a neném, por incrível que pareça, e o piloto, André, que se manteve tranqüilo o tempo todo, apesar da surra que levou das ondas, da chuva e do vento. Fiquei apavorada pela Chiara, que não sabe nadar. Dificilmente teríamos morrido afogados, porque as ondas ali no canal protegido nunca chegam a ser realmente altas, mas com certeza a água devia estar gelada, e se você bater com a cabeça em algum lugar e desmaiar, babau. Novamente não tive nenhuma reação adrenérgica, mas tive os pensamentos mais estranhos, coisas completamente nada a ver com a situação, a não ser por uma vaga lembrança dos tempos de curso de Botinho, na praia, no Rio. Pedimos pra voltar, mas já estávamos tão perto da ilha que não tinha sentido. Então seguimos adiante, e quando chegamos demos de cara com o tal do catamarã. Desembarcamos o pessoal mais highlander e nós quatro demos a volta com o gommone até a lateral do catamarã, pra ver se o capitão aceitava nos pegar. Ele logo disse pra gente que era a maior roubada, porque ele teria que encarar o mar aberto, e tinha uma tempestade chegando! Pelo menos no canal a tempestade fica muito limitada, e pior do que o que enfrentáramos não podia ficar. Ele chamou a Estancia pelo rádio (o rádio do gommone molhou e não funcionava) e pediu um barco maior pra vir nos pegar. Como iria demorar 20 minutos, eu e Mirco, mais calmos, descemos na ilha.
Com o vento que soprava, os pingüins não nos ouviam, e por isso chegamos muito perto. Mais perto inclusive do que deveríamos, porque há regras pra passear pela Pinguinera, e os limites que devemos respeitar são marcados com troncos de árvores pelo chão. Acho que a Ana, pra compensar o susto da viagem de ida, deixou que a gente abusasse um pouco. Os pingüins são foférrimos e graciosos, e a ilha é pequenininha mas toda coberta de árvores na parte interna, então deixamos a praia de cascalho e fomos seguindo a trilha subindo a ilhota. Ali a trilha é delimitada por corredores com corrimão de madeira, e há bancos de praça pro pessoal sentar e ficar observando os pingüins. Não eram muitos, porque a maior parte já tinha partido pra águas mais quentinhas, mas ainda havia alguns mudando as penas, e muitas mamães em seus ninhos-buracos, tomando conta dos filhotes que ainda não tinham crescido o suficiente pra encarar uma longa viagem. O mais estranho é ver esses pingüins saindo do meio do bosque. Pra quem sempre associa pingüim a iglu e iceberg, as imagens são lindas, mas bizarras.
A essa altura do campeonato o vento tinha levado embora as nuvens e o céu ficou limpo. O mar virou uma piscina. Um arco-íris apareceu lá do outro lado. Vimos o outro barcão chegando e descemos. Todo mundo embarcou nesse barco maior, chamado Flamingo; a Ana, completamente encharcada e morrendo de frio, montou no gommone, mais rápido, pra chegar logo à Estancia e trocar de roupa. Lá foram eles embora na lancha, e nós finalmente partimos.
Ou, tentamos. Porque nesses dez minutos de espera a maré desceu e o Flamingo encalhou. O marinheiro deu uma buzinada e o pobre do André, que já estava com o gommone quase na Estancia, teve que voltar pra tentar nos rebocar. Claro que não rolou, então desceu todo mundo do Flamingo outra vez, subiu no gommone e fomos embora. Pelo rádio, o Flamingo chamou um rebocador, que encontramos na metade do caminho. O rebocador achava que nós é que precisávamos de ajuda, então quando nos viu indo na direção da Estancia, deu meia-volta e começou a nos seguir! O capitão não entendia os sinais do André, que agitava os braços e apontava pra Pinguinera; lá fomos nós dar meia-volta outra vez, pra nos aproximar do rebocador e explicar que quem tava atolado agora era o Flamingo. Quando finalmente chegamos à Estancia, a pobre da Ana tava tremendo, e todos nós muito nervosos. Eu pelo menos desci na ilha, mas a Chiara e o Gianni, que tiveram a verdadeira crise de nervos só depois que o gommone aportou na ilha, não fizeram questão nenhuma de descer. E agora, mais calmos, fomos nos secar em frente ao aquecedor a lenha na minicafeteria precária da Estancia. Peguei a Giuliana no colo e fiquei dando voltas pela sala, lendo as legendas das fotos nas paredes, aprendendo a história da Estancia e contando pra ela, que me olhava como se estivesse prestando a maior atenção e se o assunto fosse interessantíssimo.
A viagem de volta, no microônibus, foi tranqüila. Fomos interrompidos só por dois touros que brigavam no meio da estrada, e não tinha buzina que os distraísse. Tivemos que esperar que os pimpolhos resolvessem continuar a briga em outro lugar pra poder passar. O motorista nos deixou no Opíparo, onde comemos tudo o que tínhamos direito, e dali direto pro hotel lilás. Nem comentamos o Incidente Pinguinera com a proprietária, senão teríamos que ficar contando detalhes até as cinco da manhã.