Nocera de novo

E aí hoje fiz uma boa ação.

Somos quatro tradutores fixos agora: eu, José, de Barcelona, Jayne, inglesa, e Marco, austríaco que veio de moto de Viena. O Marco é superbonzinho, calado, quietinho, educado, mas por algum motivo misterioso a Jayne, que comanda o batatal dos tradutores, o detesta, e passou essa detestação pra Danila, a chefa. Informo que a detestação começou uma semana depois que o garoto veio trabalhar aqui, o que significa que se trata simplesmente de antipatia imediata. Não critico porque também tenho episódios semelhantes, mas tento não tratar ninguém mal antes de entender se a pessoa merece mesmo a minha antipatia. Mas o coitado do garoto sofre com as indiretas diretíssimas que a chefa, a mulher mais grossa e vulgar do mundo, manda na direção dele.

Hoje ele veio perguntar pra mim se eu achava possível ele pegar o carro da escola pra levar a mala, que está no albergue da juventude de Foligno, até a nova casa dele, em Nocera Umbra (sim, lá onde mamãe e Margareth foram parar voltando de Paris). Já prevendo a resposta e a reação negativas, resolvi me oferecer pra ajudá-lo. Engraçado que não foi por pena, nem porque ele me está simpático; ele simplesmente estava precisando de ajuda e quando alguém precisa de ajuda a gente ajuda, não fica só olhando. O mais engraçado ainda é que ele também aceitou com uma naturalidade incomum hoje, quando tudo o que a gente dá ou recebe vai imediatamente pro livro contábil (existe essa palavra? Não lembro e estou sem dicionário) mental/emocional, na coluna do crédito ou do débito. Antecipei a última aula pra sair no horário deles, às seis, e fui seguindo a moto até o centro. Pegamos a mala e fomos catar a estrada pra Nocera. Achei que ele já tivesse se enturmando com as ruas da cidade e conhecesse um caminho mais simples pra estrada, mas qual o quê! Demos mil giros pra lá e pra cá, passamos por cada buraco que vocês nem imaginem, e ele na maior calma austríaca parava do meu lado, eu abria o vidro, abaixava o volume dos Cranberries e ouvia a sua voz abafada vindo das profundezas do capacete: não sei onde estamos. Nada de “caramba, foi mal mesmo, desculpa estar te incomodando tanto, desculpa por te criar problemas, desculpa por existir”, mas “não sei onde estamos”. Caí na risada e continuamos. No final das contas conseguimos chegar ao fim do mundo onde ele está morando. Um velhinho local, daqueles que não têm nada pra fazer mas só saem na rua de paletó e chapéu, me ajudou a manobrar sem arranhar (muito) o fundo do carro na ladeira absurda, e fui embora apreciando a paisagem linda daquela parte da Umbria e ruminando que deveria ser assim sempre, a gente ajuda quem precisa de ajuda e nem a gente fica se achando o máximo por isso, nem o ajudado fica se sentindo devedor. Não seria tão melhor se fosse sempre assim?