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Salada é uma comida chata, vocês sabem, né. Bonitinha de olhar, mas chata de comer, e mais chata ainda de preparar. Porque lavar alface é uma das coisas mais chatas que há pra se fazer na cozinha, mais até do que lavar louça ou catar arroz.

Em condições normais de temperatura e pressão, um pensamento do tipo “ah, que vontade de comer uma saladinha esperta” jamais cruza a minha cabeça, e acredito que não sou a única. Salada é a clássica coisa que a gente come porque tem, ou porque é preciso comer vitaminas, mas eu não conheço ninguém lúcido que tenha dito “hm, tô com desejo de tomate cru”. No Brasil normalmente neguinho não pede salada no restaurante, pelo menos até onde eu sei; eu, em particular, não pediria salada quando como fora nem que Darwin em pessoa saísse da sua tumba e me implorasse. Vitaminas obrigatórias eu como em casa, oras, quando janto fora quero comer coisas engordativas e complexas que em casa não tenho coragem pra fazer.

Aqui não. Aqui as pessoas realmente gostam de salada. Quando trabalhava com o Fabrizio o Louco ele às vezes deixava uma cestinha com tomates-cereja em cima do balcão, no verão, pras pessoas comerem junto com os queijos e salames que ele vendia. E AS PESSOAS COMIAM VOLUNTARIAMENTE, INCLUSIVE CRIANÇAS. Duvido que algum de vocês já tenha visto uma criança pescando um tomate-cereja de uma cesta e levando-o à boca, mastigando-o, e PEGANDO OUTRO DEPOIS. Duvido.

Mas como eu tava dizendo, aqui as pessoas gostam de salada. Ficam chateadas quando viajam e não encontram a saladinha gostosinha que eles têm aqui, com radicchio e tipos diferentes de alface, os famosos tomates italianos, pepino, funcho, rúcola, aipo e outras delícias vegetais. Quando comem um belo bife na chapa eles sentem falta não das batatas ou do arroz ou da farofa, mas da salada. Eu até hoje acho isso tudo muito estranho, porque todo mundo sabe que qualquer coisa com amido é o melhor amigo da carne, mas tudo bem, cada louco com a sua mania. Eu particularmente prefiro comer minha clorofila cozida ou grelhada: abobrinha e berinjela na grelha são realmente gostosas, espinafre refogado dá bem pro gasto, brócolis com alho e óleo é passável, cebola no forno com farinha de rosca polvilhada por cima é MUITO bom. Mas não me venham com saladinha que eu saio correndo.

Só que às vezes a gente tem que fazer uma escolha racional, né. Quinta-feira, quando fui a Perugia pra uma consulta médica que me fez esperar duas horas e meia lendo Dawkins nos jardins do hospital e me deixou morrendo de fome (porque o hospital é imenso e você anda, anda, anda e não acha nunca o que está procurando – a magia das placas que desaparecem não está restrita à sinalização das estradas), passei em frente à sorveteria Augusta Perusia, perto da Stranieri. E lembrei do sorvete hediondamente perfeito que eles fazem. Aquele chocolate quase preto, o Kinder com pedaços de ovo Kinder, o de nozes, o de avelãs (notem que a palavra “fruta”, no meu dicionário, jamais está relacionada a sabores de sorvete). Então tomei uma decisão: vou almoçar salada, vou fazer esse sacrifício hercúleo, pra poder tomar o maldito sorvete da Perusia sem querer me matar de remorso depois.

Fui ao Tutto al Testo, no corso Garibaldi, a ladeira ao lado da Stranieri. Tinha comido lá há muitos anos com Silvio e Sabine, quando ainda estudava italiano, e sei que eles fazem uma torta al testo com lingüiça que é o ó, além de crepes com uma farinha escura, de trigo sarraceno. E lembrei que uma vez comi uma saladona lá que até que deu pro gasto. Então fui, sentei, pulei, quase chorando, as páginas do menu que se referiam aos crepes, e fui pras saladas. A que eu tinha comido anos antes tinha batata cozida, atum e feijão branco, mas dessa vez fui de alface e radicchio com peito de frango, queijo emmenthal e amêndoas (tinha aipo também, mas aipo não rola). Normalmente como salada sem tempero porque vinagre me faz vomitar e eu acabo não usando nem azeite ou sal, mas dessa vez achei que era o momento de inovar: um fio de azeite (porque aqui até azeite tabajara é bom), sal e pimenta-do-reino, pena que já moída. Meia fatia do maldito pão umbro sem sal, pra enganar o estômago, e pronto. Bati o pratão de salada, tomei um suco de laranja e saí correndo antes que a torta com lingüiça do casal na mesa ao lado começasse a me chamar e eu mudasse de idéia.

O sorvete de duas bolas, chocolate e vinho marsala e pedaços de chocolate ficou muito, mas muito mais gostoso depois do meu sacrifício vegetal…