sobre como educar crianças e sobre quem somos enquanto adultos

Amores, tava ouvindo isso aqui agora (link no final do post) enquanto malhava bracinhos e acho que vou ter que inclusive ouvir novamente, porque é cheio de insights interessantes. Todo mundo que tem filhos ou pretende ter deveria ouvir. Na verdade todo mundo deveria ouvir, porque rola uma autoanálise maneira também. Fiquei fazendo vários paralelos sobre como eu educo a minha filha, e fiquei com dúvidas sobre como fui educada. Vou ter que perguntar pra minha mãe se eu era medrosa quando era criança, porque eu não lembro de ter ouvido muitas coisas do tipo “cuidado, não vai cair, não se suja, não sue (tá, essa é coisa de italiano, não acho que exista outro povo no mundo que mande o filho parar de suar), você é menina e não pode fazer isso ou aquilo”, mas também é verdade que eu cresci nos anos 80, onde as crianças eram praticamente abandonadas à própria sorte e o conceito de perigo ainda não tinha sido inventado.

Eu pessoalmente só fui entender que mulheres tinham mais medos do que homens quando comecei a viajar sozinha e TODAS as minhas amigas e conhecidas, tanto no Brasil quanto fora, me perguntavam se eu não tinha medo – de pegar avião, trem, ônibus sozinha, de ter que pedir informações pra desconhecidos, de ficar sozinha, de pegar estrada, de dirigir sozinha pra um lugar que não conheço, de uma cacetada de coisas que simplesmente jamais passaram pela minha cabeça como difíceis ou perigosas ou assustadoras. Mais especificamente, a ficha caiu quando a irmã de uma amiga disse que, embora morasse numa cidade micro na Toscana, o marido ia levá-la e buscá-la no trabalho todo santo dia, pois ela, que, pasmem, era de Ribeirão Preto, tinha medo de dirigir na cidadezinha. Lembro de ficar parada olhando pra cara dela sem nem entender direito do que ela tava falando. Como assim ter medo de dirigir? Como assim ter medo de dirigir numa cidade onde a velocidade máxima oficial não passa de 50, e, a julgar pela quantidade de velhos dirigindo Api (googlem Ape Piaggio), na maior parte do tempo não deve passar de 20? Onde nem sinal de trânsito tem, porque não precisa? Comecei a notar que muitas, MUITAS mulheres têm medo de dirigir, o que pra mim é uma coisa do outro mundo, embora hoje eu veja a coisa com outros olhos. Muitas tiveram acidentes e ficaram traumatizadas, de modo que entendo perfeitamente o medo, embora eu mesma tenha batido num poste na Itália (tive uma queda de pressão por causa dos remédios pra prevenção da enxaqueca – ou talvez eu estivesse tentando pegar um brigadeiro na bolsa, jamais saberemos) e minha primeira reação foi simplesmente ligar o carro novamente e voltar pra casa, até que um cara na calçada olhou pra mim e fez “não vai rolar, amore, acho que cê não tem ideia da dimensão da batida”. Quando eu caí de lambreta, depois que consegui expulsar todo mundo que tinha assistido à cena e veio socorrer, montei de novo e voltei pra casa sozinha – claramente uma reação idiota, já que eu não lembrava direito do acontecido, o que significa que bati a cabeçorra e sendo assim precisava de um hospital. O fato é que eu conheço homens que não dirigem, mas não conheço nenhum que não dirija por medo. Significa? Claro que significa. O problema não é o medo em si, é de onde ele vem. E basta você parar pra observar crianças brincando no parquinho por 3 minutos pra entender que ele vem da infância. Colocamos medo nas meninas e deixamos que os meninos se arrisquem mais. Ponto. A tal fragilidade feminina não é genética; é ambiental. Não é culpa nossa, não é um defeito nosso, não temos que nos sentir mal por isso. O que temos que fazer é mudar o nosso modo de agir, pra que isso não se perpetue, pra que nossas filhas não percam oportunidades só porque têm medo.

Fazendo todas essas conexões mentais eu entendi que desse ponto de vista, e de alguns outros também, eu sou muito mais próxima do que se espera de um homem do que de uma mulher. Além dos medos normais de que algo de ruim aconteça com meus entes queridos e de insetos que voam pra cima de mim (eles quietinhos não me dão nervoso algum; meu problema é quando eles levam pro lado pessoal), eu acho que não tenho medo de nada não. Ou então tenho, mas ignoro solenemente e vou e faço assim mesmo, o que no final das contas tem o mesmo resultado final.

Isso tudo, obviamente, explica MUITA coisa. Eu cresci num mundo que não estava ainda preparado pra mulheres que não são frágeis, fofinhas, delicadas, medrosas, desprotegidas, dependentes, lindas – possivelmente tudo isso junto. Eu não sou nenhuma dessas coisas, ou seja, me fodi lindamente. Mas tamos aí. A geração da Carol vai ser diferente. Ela pode ser o que ela quiser e provavelmente não vai ser julgada por isso, não vai carregar isso como um peso, isso não vai ter repercussões gigantes e irreversíveis sobre a saúde mental dela, que é o que aconteceu comigo e com outras mulheres que conheço que tiveram percursos parecidos com o meu. Estou trabalhando arduamente pra que ela seja feliz e faça do mundo um lugar melhor, sendo que lugar melhor significa, entre outras coisas, um lugar onde beleza não é juízo de valor, onde mulher não precisa ser fofinha, mas pode ser, se quiser e puder, onde HOMENS PARAM DE FUCKING INTERROMPER MULHERES, PORQUE EU ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO HOMEM QUE FAZ ISSO E TENHO VONTADE DE SOCAR. Homens, não sejam essa pessoa. Mulheres, não deixem que interrompam vocês nem outras mulheres na sua frente. Reclamem, façam-se ouvir, levantem a voz – LEVANTEM A FUCKING VOZ. “Não terminei ainda”, “não me interrompe”, “eu ainda não acabei de falar”, “para de interromper que é feio” – você pode imprimir em cartões e esfregar na cara da mala sem alça quando for interrompida, se ainda não tiver coragem pra reclamar vocalmente. Não vão faltar oportunidades pra praticar, e com a prática vem a perfeição, o medo vai se esvaindo. Logo logo você vai simplesmente levantar o tom de voz um tiquinho quando for interrompida, continuando a falar sem perder o fio da meada, e enfiar a mão aberta em PARE na cara do interrompedor pra ele ver o que é bom.

Então assim, eu canso de repetir pra Carol, canso mesmo, que não é vergonha nenhuma ter medo, que medos são saudáveis, são mecanismos de sobrevivência importantes, mas não podem nos impedir de fazer coisas que queremos muito fazer ou que são importantes pra nós. Finge que não tem medo, vai lá e faz. Fake it til you make it. E precisamos deixar que nossos filhos e filhas se aventurem mais, suem mais, se sujem mais, experimentem mais, façam mais, enfrentem mais seus medos. Precisamos encorajá-los a serem corajosos, não importa se são Enzos ou Valentinas.

E, como diz a moça no TED Talk, precisamos parar de fazer o dever de casa no lugar deles (a mão de marcar chega a tremer ;)

Quem souber inglês o suficiente pra entender, OUÇA, mesmo que não tiver filhos. E comente, por favor, porque eu preciso trocar umas ideias sobre isso tudo.

TED Radio Hour

9 ideias sobre “sobre como educar crianças e sobre quem somos enquanto adultos

  1. Oi, Letícia!
    Ótimo post!
    Acho que cresci sem medo e sem noção. Essas coisas só apareceram com a idade – vale mais para o medo do que para a noção. ;-)
    Olhando pra trás, sempre fui independente demais. Tem a ver, certamente, com a criação que recebi. De modo geral, meus pais tendiam a minimizar qualquer sofrimento. Certamente não fizeram por maldade, mas rezavam pela cartilha do “não foi nada, já passou”. Na escola, os professores também procediam assim.
    The consequences linger. Já em idade adulta, quase fui atropelada em duas ocasiões. Minha reação foi levantar, sacodir a poeira (literalmente) e seguir para o trabalho, com pulso inchado, joelho sangrando e calça rasgada. Hoje, quando lembro disso, choro. Porque hoje sei que posso chorar e me descabelar, se quiser.
    Não tenho muita experiência com interrupções ou “mansplaining”, mas já passei por situações em que colegas de trabalho (homens) levaram crédito por ideias minhas. Quando eu falei, ninguém deu bola; o amiguinho repete e o chefe ouve. Parece ser um fenômeno de alcance intergaláctico, inclusive.
    Abraço,
    L.

  2. Eu fui uma dessas crianças do ‘cuidado! não mexe ai! fica quieta! senta direito! isso não é coisa de menina’ e isso refletiu muito na pessoa que eu sou hoje. Inclusive, olho pra minha mãe e enxergo nela vários dos meus traços de personalidade.
    E desde que eu percebi isso, venho me policiando pra não transmitir as minhas inseguranças pra minha filha. Embora marido diga que eu seria uma mãe helicóptero não importa o sexo da criança. Que se eu tivesse um menino, ia ficar em cima, cuidando pra que ele não se machucasse, não corresse, não se sujasse >.<
    O podcast é ótimo =D

  3. Meus medos variam de acordo com a idade. A maioria deles foi superada. Mas alguns eu ainda carrego comigo. Sou introvertido, e isso na adolescência é muito complicado. Sofri bullying, não nego. O medo de revidar e sofrer represálias mais tarde, era horrível (e muitas vezes chorava escondido na hora do recreio). Evito o conflito. Além disso ainda tem o medo da rejeição, de não se encaixar em nenhuma panelinha. Era horrível. Carreguei muitos desses medos pra vida adulta. O medo da solidão, de não achar alguém que me ame, não me encaixar em grupo nenhum que não seja na minha família. Medo de expressar meus sentimentos e não ser entendido. E aí eu ficava com raiva. E uma raiva auto-contida. Não descarregava ela. Ficava ali, ocupando um espaço que eu poderia preencher com outras coisas.

    E isso machuca. Eu não ligava. Não enfrentava. E quando percebi isso, me senti mal. Fiquei triste e chorei, e sabia o porquê.

    Muitas coisas estão mudando. Ainda tenho alguns desses medos, mas aos poucos lido com eles.

  4. Aos 13 anos eu era obsecada com o Menudo, e o Ray veio morar no Brasil. Ouvi falar que ele estaria na empresa do Manager dele na Faria Lima, e decidi que sairia de SBC pra ir vê-lo, sem falar pra ninguém, claro. Quem mora em SP vai entender a dificuldade do feito: peguei um ônibus de SBC até o Parque D. Pedro. Atravessei o centro velho a pé até a Praça da Bandeira ( minha vó sempre dizia que dali saia ônibus pra qualquer lugar de SP )fui perguntando até achar um ônibus que fosse pra Faria Lima e cheguei na agência 4 hrs depois. Estava lá esperando, ele chegou de carro, desceu, falou um pouco com todo mundo, foi a experiência mais surreal da minha vida, ainda lembro da imagem daquele meu idolo me olhando pela janela do carro. Fiz o caminho de volta. Cheguei em casa 6 da tarde, ninguém tinha notado que eu tinha feito algo extraordinário. Minha mãe estava na sala conversando com uma amiga, e lembro da frase “o Rodney ( primo ) não tem medo de nada, é super valente”. Naquela noite, cheia de orgulho e ainda emocionada em ter visto meu ídolo, contei pra minha mãe o que eu tinha feito e ouvi que “você não tem jeito, não sei onde você vai parar, você não tem medo de nada”. No mesmo dia. E ouvi de outras 10 pessoas. E continuei ouvindo a vida toda. Continuei não tendo medo, mas sempre me senti uma aberração no meio de gente normal, porque eu definitivamente não conseguia ter medo dessas bobagens todas.

  5. Como é bom te ler. Tava pensando no seu blog esses dias, acredita? :) Esse assunto é muito importante. Sou medrosa de tudo, e mesmo sabendo que o motivo é a minha socialização como menina e mulher, de vez em quando ainda me sinto muito mal por isso. Vou ouvir o TED.
    Uma beijoca. <3

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