Domingo, antes daquela cachorração toda, resolvi aproveitar a temperatura agradável pra dar uma guaribada na minha mini-micro-horta de varanda. Além da jardineira comprida que a Arianna me deu meses atrás, na qual plantamos salsinha, alho, hortelã e aipo, eu comprei um vasinho de tomilho, um de tulipas, um de uma planta meio cactus mas com florzinhas bonitinhas, e sementes de manjericão e de cravos. Arianna me deu um vasinho de alecrim. Na sexta-feira eu tinha comprado mais uns vasos maiores e mais bonitos e um pacote de 20 quilos de terra, e no domingo transplantei o alecrim e o tomilho pra esses vasos grandes e fiz uma coisa que eu nunca tinha feito na vida: plantei sementes. Adorei a experiência. Queria tanto morar numa casa pra ter um jardim e poder me dedicar a essas coisas! Claro, ainda tenho que ver se os raios das plantas vão nascer. Não duvido nada que eu tenha plantado tudo errado e as bichinhas resolvam não sair da casca. Vamos ver.
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Então segunda-feira começou o tal treinamento pra vendedor de seguros. Na verdade eles trabalham muito mais com investimento e planos de previdência do que com seguros, coisa que eu não sabia. No primeiro dia achei tudo um saco, fora a parte da tarde, dedicada ao sistema previdenciário italiano muito esclarecedor. As pessoas que participam são meio estranhas:
Giacomo, de Fabriano, da mortíssima região Marche, onde nada acontece. É um sujeito alto, jogador de basquete, com voz profunda mas faz muitas pausas quando fala. É bonzinho e razoavelmente esperto e ontem implorou pra eu falar português na mesa do almoço. Acabei ligando pra FeRnanda e ele achou interessantíssimo.
Adele, que é de Abruzzo mas mora em Fabriano também. Uma lourinha baixinha e atarracada muito esperta, agitada e sorridente. Gostei dela.
Fabrizio, perugino (começamos mal) com o cabelo entupido de gel todo penteado pra frente (continuamos mal), cuja auto-apresentação na segunda consistiu em a única coisa interessante e característica da minha vida é que sou fanático por futebol (nem preciso dizer que a partir dessa palavra fanático essa criatura passou a ser ignorada pela minha pessoa).
Sabina, de só 19 anos, moradora do Lazio, uma chata de galocha, capa e guarda-chuva. Hiper arrogante porque é magra e tem um brilhante no nariz e outro no dente, e porque já trabalha na agência de seguros há um mês. Volta e meia solta comentários do tipo aaaah, realmente, isso acontece muito. Acontece muito o quê, cara-pálida? Um mês de experiência enfurnada numa agência te ensinou o quê? Maquiadíssima, fuma e tem orgulho disso, usa sapatos com ponta fina estilo mata-barata-no-canto-da-parede. Também digna do meu desprezo.
Silvia, perugina (começamos mal), advogada recém-formada, com dentes tortos E cinza (pronto, já não existe mais pra mim. Quem é Silvia?). Repete tudo o que o instrutor fala como se fosse uma conclusão brilhante dela mesma, diz coisas sem sentido só pra dizer alguma coisa. Mais ou menos como Ah, é, mas então… Sabe? Pois é.
Michela, perugina sem sotaque (começamos bem), formada em Ciências Políticas, suuuper calada mas muito clara e sintética quando abre a boca. Parece muito tímida, mas é inteligente. Se veste MUITO mal.
Antonio, napolitano barbudo que mora em Perugia há 9 anos. Muito calado mas simpático e não-burro.
Riccardo, de Foligno (começamos mal), clássico italiano Cepacol, magro, alto, de camisa social justa com colarinho altíssimo e punhos grossíssimos, gravata com nó gigante, calça justa e blazer de grife. Super calado. Fuma e tem cara de bobo.
O instrutor se chama Massimo e tem bem cara de vendedor de seguros mesmo. Muito esperto, engraçado, simpático, diplomático, também é jornalista esportivo e tem vários clientes jogadores de futebol. Gostei dele.
Pois então: segunda foi um dia chato, mas ontem foi mais divertido. De manhã falamos sobre comunicação. Depois de muito falar, Massimo nos fez ir lá pra frente contar alguma coisa que nos tivesse acontecido qualquer coisa, só pra testar nossos talentos de comunicação. Eu contei o dia em que eu e Valéria almoçamos em Capri na casa de uma família que não conhecíamos, cuja prima Valéria conheceu no barco que nos levou de Sorrento a Capri. Fui aplaudidíssima e muito elogiada pelo meu incrível domínio da língua italiana, pela minha mímica facial expressiva, pelas risadas que provoquei tudo coisa que eu já sabia, mas não custa nada ouvir de vez em quando. Mais tarde, conversando a sós com o Massimo, ele disse que eu não posso desperdiçar esse talento, não posso jogar fora esse emprego, que sou uma vendedora nata. Não gosto de vender, apesar de saber que o faço bem. Mas quanto a uma coisa ele tem razão: não posso jogar fora a oportunidade desse emprego. É uma empresa consolidadíssima no mercado italiano e internacional, há boas perspectivas de crescimento na carreira, o salário é ótimo, não vou ficar enfurnada numa agência mas rodando e conhecendo gente de tudo que é tipo, vou poder organizar meu próprio tempo, e ainda por cima vou aprender a mexer com dinheiro. Nunca tive grana suficiente pra investir em nada e não gosto de números, então realmente não entendo nada do assunto, mas gostaria de. Então acho que vou pegar. O treinamento vai até sexta-feira, e na segunda tenho que me apresentar na agência pra começar o estágio remunerado de 4 meses, renovável por mais 4, com possibilidade de carteira assinada no final desse período. Vamos ver. Se eu não gostar, pulo fora.
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No almoço de ontem, Fabrizio o Perugino Retardado deu mais mostras do seu retardamento. Como qualquer pessoa limitada por um só interesse na vida (futebol, no seu caso), sua visão do mundo é muito restrita e sua ignorância é impressionante. CLARO que o papo acabou caindo no Brasil, e CLARO que ele começou a soltar um monte de besteira e eu acabei me irritando seriamente. Tipo:
– Ah, só de escutar a palavra Brasil eu já sinto um clima…
– Clima de quê, Fabrizio? É um país como outro qualquer.
– Ah, não é não… Tem toda aquela alegria, as festas, as pessoas dançando na rua…
– Quem foi que disse que as pessoas dançam na rua?
– Ah, todo mundo sabe!
– Todo mundo sabe também que todo italiano é mafioso e dança tarantella.
– Não é verdade!
(olhar congelante da minha parte)
– Eu sei também que rola muito tráfico de órgão no Brasil.
– Tenho certeza de que rola, como também rola aqui, mas o campeão mundial de tráfico de órgãos é a Albânia, meu querido. Nossos problemas são outros.
– Não, tenho certeza que é assim!
– Querido… Eu sou brasileira, morei lá minha vida toda. Você NÃO vai querer discutir comigo sobre o meu próprio país, vai por mim.
– Po, mas eu sei que é um país muito atrasado…
– Em muitas coisas sim, mas em tantas outras estamos anos-luz à frente da Itália. (mencionei o nosso avançadíssimo sistema bancário e as nossas eleições automatizadas. Ele fez cara de é mentira. Sorte dele que não tenho porte de arma).
– Fabrizio, na boa… Se você não sabe nada sobre um assunto, e claramente você não sabe nada sobre muitas coisas, é melhor ficar calado. Fica quietinho, fica.
Massimo muda habilmente de assunto. Fabrizio acende um cigarro, arregaça as mangas da camisa e vemos uma originalíiiiiissima tatuagem de teia de aranha no cotovelo. Também há um tribal muito mal feito no antebraço esquerdo e mais duas tatuagens nas costas. Pronto! Esse menino, que antes gozava apenas do meu saudável desprezo, agora entrou na categoria o mundo seria melhor sem ele.
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Hoje o assunto é técnicas de venda. Acho que vou me divertir. Quero só ver Silvia, Fabrizio ou a mala da Sabina simulando vendas. Deles eu não compraria nem uma bala Juquinha. Minha religião não permite ter nenhum tipo de contato com gente da minha idade que tem dentes tortos E cinza.