Parque Nacional Iguazu – Argentina

Em teoria eu deveria acordar os meninos, mas antes da hora combinada a Chiara ligou. Também tinham dormido mal e acabaram descendo pra dar uma volta no hotel e tomar café. Desci, e enquanto esperava os meninos fui bater papo com um motorista de táxi pra dar uma checada nos preços. Achei o Hernán meio caro em alguns aspectos mas mais barato em outros, e ainda por cima com a van todas as nossas malas cabiam sem problemas, então acabei dispensando o taxista. Fui tomar meu café da manhã, maravilhoso, com tudo o que tem direito, inclusive pão de queijo, queijo Minas, sucos frescos, mil tipos de pão, iogurtes gostosos. Fiz a festa, e depois de escovar os dentinhos fomos lá pra recepção esperar o Hernán. Ele é paraculo mas é legal, podem perguntar por ele ali no aeroporto de Puerto Iguazu (quem nos mandou pra ele foi o Davi, que fica ali naquelas escrivaninhas de que falei, na saída do aeroporto).

Do hotel fomos direto à parte argentina das cataratas. Na entrada pedi informações pro hominho da recepção, e ele nos deu mapinhas e sugestões de percursos. Fizemos como ele disse, e na parte da manhã fizemos os percursos inferior e superior, que somados dão horas e horas de caminhada e de vistas deslumbrantes. As passarelas são muitas, as possibilidades fotográficas são infinitas, os turistas chatinhos são excessivos, e lá embaixo víamos umas lanchas que zuniam pelo rio e chegavam pertinho das cataratas. A Chiara não sabe nadar e tem horror a barco, mas eu e Gianni resolvemos arriscar: pagamos os 30 pesos por pessoa, botamos os coletes salva-vida e lá fomos nós, sentados bem nos primeiros lugares. Dão umas sacolas de plástico pra proteger máquinas fotográficas e sapatos; no início dá pra fotografar, mas quando você vai se aproximando da cascatona, melhor enrolar bem a máquina no plástico e agarrar o embrulho com força pra ele não sair voando e cair no rio. Vou-lhes dizer: É MUITO MANEIROOOOO! Eu, toda inocente, achando que o barco chegava no máximo até a nuvem de vapor que se forma quando a água cai, mas que nada! Chega-se muito, mas muito perto da cascata de San Martín, que não é a Garganta del Diablo mas é bem impressionante. A água cai forte na sua cabeça, entra no nariz e na boca, aquela água cheirosa de rio e de floresta e de sol, sem cloro, sem flúor, sem o maldito calcário europeu, só água, forte, pesada, limpa, fresca, absolutamente deliciosa e depuradora. MUITO, MUITO BOM. E necessário. Desembarcamos absolutamente ensopados, eu feliz da vida e, pelo menos momentaneamente, desdeprimida; Gianni meio confuso, porque nunca tinha tomado banho de água de rio na vida, ainda mais assim, com essa intensidade toda. Dali pegamos o trenzinho e voltamos à entrada do parque pra almoçar.

O restaurante se chamava La Selva, e fomos comer lá porque na entrada um dos funcionários do parque estava distribuindo vales-desconto pro almoço. A comida não tava lá essas coisas: a clássica parrillada, ou o bom e velho churrasco, que não era nenhuma Brastemp; meia dúzia de acompanhamentos meio macambúzios e uma caipirinha grátis por cabeça. Pelo menos gastamos pouco, muito pouco. Como é bom viajar a países em crise.

Ainda molhados, pegamos de novo o trenzinho até a última estação, a Garganta del Diablo. Fomos andando pelas passarelas, que têm pouco mais de um quilômetro no total. Passamos por cima de pilares de uma antiga passarela derrubada pela enchente de 92, e mesmo sabendo que a quantidade de água que passa por ali é impressionante, fica difícil de imaginar a cena, porque o rio é manso, manso. Há vários pontos de água estagnada, os únicos lugares onde vimos peixinhos. Plantas estranhas, pedras esverdeadas de lodo exibindo-se no meio do rio, um bem-te-vi que cantava de cá enquanto outro respondia de lá. O sol forte batendo na moleira, japoneses de luvinhas brancas e guarda-chuvas abertos contra o sol, americanos ripongas com dreadlocks parafinados, o céu azul acima de nós. Ficamos imaginando quando é que a maldita cascatona iria aparecer, e se realmente era tão impressionante quanto parece nas fotos e cartões-postais e documentários televisivos.

E então eu vos digo, amiguinhos: é MUITO mais impressionante. Nada no mundo, nada, nenhuma foto, nenhuma filmagem, nenhum Globo Repórter é capaz de preparar a gente praquilo. Não consigo nem explicar direito o que eu senti quando dei de cara com aquele monstro. Você vem vindo pela passarela, batendo papo e admirando a fauna humana ao seu redor, apontando pra uma flor esquisita lá naquele canto ali, ó, ih, alá, uma tartaruga pegando sol na pedra, e coisa e tal, e de repente começa a ouvir um barulho, mas um barulho, e a taquicardia chega, e você inicialmente vê só a parte mais alta e externa, um ralo gigante, aquela quantidade absurda, intergaláctica de água caindo não se sabe onde, até que a passarela faz uma dobra à esquerda e você finalmente dá de frente com a Garganta, e olha lá pra baixo e não consegue mesmo ver pra onde a água vai porque é tudo vapor, e o coração parece que vai sair pela boca, que por sinal está aberta e babando, e as lágrimas são absolutamente inevitáveis, e parece que o mundo parou e a única coisa que se move é aquela massa ridiculamente exagerada de água que cai em movimentos hipnotizantes de verde e branco e espuma, e então não importa se tem uma horda de fotógrafos profissionais (cof cof) que sobem em escadas como aquelas que a Maria usa pra limpar as janelas do seu apartamento, pra tirar fotos dos turistas do alto, tendo a Garganta no fundo; não importa se a língua mais ouvida ao seu redor é aquela josta de espanhol; não importa se ao seu lado há uma velhinha americana de cabelos lilás e camiseta cafona com uma arara e escrito “Maceió” em letras vermelhas, nada disso importa, não importa nada, porque a única coisa em que você consegue pensar é CARALHOS ESTRELADOS, como é possível que exista tanta água junta, não é possível, PRA QUE ISSO? Fiquei séculos lá parada, hipnotizada, paralisada, petrificada, olhando praquela coisa monstruosa que cai sempre no mesmo ritmo, sempre igual mas sempre diferente, mais espumoso à esquerda de quem olha, mais esverdeado à direita, e ali no meio ela dá um pulo antes de cair porque tem uma pedra protuberante, e bem no seu lado direito há uma plataforminha de pedra que é tão protuberante que a água não cai exatamente em cima, e então uma moita de alguma planta guerreira se instalou ali, no meio do campo de batalha, e aquele barulho enlouquecedor, e há tantas outras micro-cascatas ao redor que a gente não sabe pra onde olhar, mas os olhos sempre voltam pra Garganta, porque é ela que a gente não consegue entender nem mensurar nem aceitar nem nada, e não consigo evitar de imaginar como seria bonito morrer ali, stravolta dalle acque possenti. Então ficou estabelecido na minha cabeça que não existe coisa mais bonita no mundo inteiro. Não existe, por mais que o Mirco encha a casa e o meu saco com fotos de Ayers Rock. Não existe, porque eu gosto de movimento e não de monumento; gosto de dinâmica e cinemática e da conseqüente potência, e uma cascata é viva e forte e pode tudo, entorpece TODOS os seus sentidos ao mesmo tempo, desliga o seu cérebro que por longos minutos absorve só ela, seu barulho, o cheiro da água, a sensação de umidade na pele, o frescor do vapor d’água no rosto, o gosto de água fresca e natural na língua, e sobretudo aquela visão infinita e absurda de toda aquela água que a gente não entende o que raios está fazendo ali, pra que que serve tanta água junta assim?

Ao redor, tudo é lindo: o capim das rochas brilha com as gotículas de água, as folhas se agitam ao vento causado pelo simples deslocamento daquela água toda, flores pequenininhas crescem em moitas em ilhotas que parecem ikebanas no meio das partes mais calmas do rio. Não há peixes, logicamente; a vista é ótima mas a vizinhança é barulhenta e movimentada demais. Borboletas passeiam sobre as nossas cabeças e quando voltamos, muito a contragosto, a tartaruga ainda está lá na pedra, lagartando ao sol, perto dos pilares destruídos. Continuei abobalhada e muda por todo o percurso de volta à estação, e durante a volta no trenzinho, com os pés estendidos no banco à minha frente pra secar as meias. Comprei uns colares de contas de um índio perto da saída do parque (eles são cadastrados pra poder trabalhar no parque e vendem uns bichos artesanais horrendos – ou tudo que é artesanal é horrendo, a não ser o gelato italiano? – mas os colares de contas são bonitos), dei um tchau mental pra Garganta pensando que um dia ainda vamos nos encontrar novamente, tia, e fomos embora.

Hernán nos esperava na saída, e a primeira coisa que perguntou foi se tínhamos pego a lancha pra nos batizar nas águas de San Martín, como diz o panfleto do parque. Os meninos queriam comprar uma rede, então paramos pra escolher uns exemplares que um paraibano sorridente e com bafo de cachaça vendia à beira da estrada. Puxa de cá, conversa de lá, acabamos levando duas com um pequeno desconto. Fiquei com pena dele porque praticamente há só um fornecedor pra todo mundo que vende rede ali na área, e os vendedores não podem dar muito desconto porque afinal de contas eles também precisam comer. Nós fomos o primeiro cliente do dia e ele agradeceu com sinceridade, e sorriu sem dentes pra foto com o Gianni.

Resolvemos jantar no restaurante do hotel. Os meninos comeram saladas, omelete e arroz branco, e acharam tudo ótimo, coisa maravilhosa porque italiano é chato pra cacete pra comer, ainda mais quem foi acostumado com tomate da horta, frango do galinheiro da avó, vinho feito pelo tio. Eu ainda tava abobalhada demais pra sentir fome, e pedi pro garçom encomendar uma vitamina caprichada na cozinha, de mamão, banana e laranja, minha preferida.

Subi cedo pro quarto e fiquei estatelada na cama esperando o ar condicionado refrescar o quarto, antes de cair no sono. Revi os acontecimentos do dia, me preparando pra escrever, e cheguei à conclusão de que o parque argentino é mais tosco do que o brasileiro, mas como área natural é mais bonito, porque maior. Só que a nossa vegetação tropical é aquela exuberância deselegante que a gente conhece bem, conseqüência inevitável do calor e da umidade. Nada de bosques europeus arrumadinhos, não. No hemisfério pobre há muito undergrowth, sottobosco, uma confusão danada de parasitas, de bambus caídos, de plantas que trocam de casca, de cipós pendurados em ângulos aparentemente impossíveis, uma variedade confusa de verdes. Um excesso, uma bagunça, uma indisciplina, uma improvisação, enfim, um samba do crioulo doido que é, ao mesmo tempo, o nosso tesouro e a nossa inevitável ruína. É tudo tão vulgar, tão exagerado, tão desnecessário. Penso nas combinações bizarras e despudoradas de cores das roupas de muitas meninas sul-americanas que vimos no parque, e vejo que tem tudo a ver, não poderia mesmo ser de outro jeito. Tudo faz sentido. Ou talvez sou eu que sou self-conscious demais, não sei.