lula-lá

Não, não vou nem tocar no assunto do asilo político ao ex-presidente do Equador. Tenho vergonha. Falo de lula mesmo, o animal (pun intended).

Por algum motivo misterioso que desconheço, mas que muito provavelmente tem a ver com a igreja católica, aqui as peixarias só abrem às quintas e sextas. Pra felicidade do bolso da minha mãe e pra grande prejuízo da minha vida social, só fui aprender a gostar de frutos do mar aqui na Itália. Como consequüência, não sei cozinhar frutos do mar – praticamente só sei fazer peixe frito, que aqui é coisa quase desconhecida. Por sorte, todas as peixarias oferecem coisinhas já semi-prontas, ridiculamente fáceis de preparar, como espetinhos de lula e camarão, filé de peixe já empanado em uma mistura de farinha de rosca e salsinha (pra fazer na brasa ou então na panela forrada de papel-manteiga e com pouco óleo), peixes inteiros também já marinados, prontos pra ir ao forno. Os meus preferidos são o condimento per la pasta e l’insalata di mare. O segundo é, literalmente, salada de mar, e nada mais é do que pedacinhos de frutos do mar das mais variadas espécies, cozidos, temperados com azeite, alho e salsinha, com uns pedaços de azeitona pra dar um tchan e pra aumentar o volume (eu dou todos pro Mirco porque tenho pavor de azeitona). Come-se fria, como antepasto. No supermercado há várias versões em embalagens de plástico, mas normalmente envolvem vinagre na preparação, o que, pra mim, é praticamente sinônimo de incomível. O condimento per la pasta (literalmente, tempero ou molho pra macarrão) é uma mistura de salmão, camarão, mariscos vários, pedacinhos de lula e de polipetti (polvinhos pequenininhos muito comuns aqui), mini-lagostins, enfim, um pouco de tudo. É tudo cru, então é só botar numa frigideira com um pouco de vinho branco, dar uma cozinhada rápida e misturar ao macarrão. Ao contrário do meu pai, que acha que peixe só combina com batata, eu adoro massa com frutos do mar. Linguini allo scoglio, spaghetti con le vongole, pasta con le cozze, eu topo tudo. E essa misturinha deles é realmente una diliça. Compro quase toda sexta, quando tenho que ir a S. Maria resolver outras coisas.

Eu tenho aquele vício de pobre que é aceitar tudo o que seja oferecido de graça. E nessa já recolhi uma interessante coleção de mini-livros de receitas, que dão nos supermercados, na peixaria, às vezes em lugares insólitos, como na farmácia. Pois então, ontem estava inspirada e, imaginando que encontraria alguma receita interessante nesses livrinhos, resolvi fazer lula. Uma clássica receita de lula aqui é seppie e piselli, lula com ervilhas. Nada mais é do que o bicho feito como carne de panela, com molho de tomate e ervilhas. Nunca tinha feito em casa, mas resolvi arriscar. Primeiro foi um parto comprar o bicho, porque eu não sabia se comprava seppie ou calamari. Pra mim são iguais, a seppia é maior e os calamari são pequenos, mas a cara é praticamente a mesma. Claro que nada que tenha a ver com comida aqui na Bota é tão simples quanto parece, e o velhinho safado da peixaria foi logo perguntando o que eu queria fazer com a lula. Respondi que queria fazer com ervilhas, e ele indicou as seppie, que têm mais carninha. Perguntei qual a diferença entre um bicho e outro, e ele respondeu que os calamari são mais magricelinhos e portanto ficam melhores fritos ou grelhados (de fato, anelli di calamari fritti, anéis de lula fritos à milanesa, são um antepasto clássico). Ah, tá, então tá bom. Ele separou quatro belas seppie pra mim e paguei a conta: 21 euros por quatro lulas médias, insalata di mare pra duas pessoas e condimento per la pasta pra duas pessoas.

Ontem comemos o antepasto e a massa, e deixei as lulas pra hoje. Só que eu não achava o diabo da receita em lugar nenhum. Tudo bem que não deve ser tão difícil, mas com o preço das coisas é melhor não desperdiçar fazendo cagada, e também não queria detonar logo de cara minha primeira experiência no campo dos frutos do mar. Mandei um SMS pro Mirco perguntando se ele queria lula com ervilhas ou lula no macarrão, ele responde: sim. Eu sabia que ele tava numa conversa importante com o contador e por isso não tava prestando atenção em nada do que eu escrevia, mas mesmo assim insisti e mandei outra mensagem me explicando melhor. Ele responde: lula. Ora bolas, então vou fazer macarrão e dane-se.

Aí o outro parto: limpar os bichos. Um dos meus livrinhos grátis explicava como comprar, limpar e conservar os diversos produtos do mar. Dizia pra arrancar a cabeça da seppia que ela saía inteira, com os órgãos internos. Ou então pra cortar com uma tesoura os olhos e o bico, se os órgãos internos e o “osso” já tivessem sido retirados – era o meu caso. Cortar com uma tesoura os olhos de um bicho morto? Hipótese imediatamente descartada. Então, pedindo mil desculpas às pobres lulas, optei por arrancar a cabeça inteira mesmo. Não tive coragem nem de cortar os tentaculozinhos. Desperdício, mas sei que se tivesse insistido teria vomitado ali mesmo na pia da cozinha. Não bom. Lavei bem os corpinhos que parecem feitos de plástico branco, cortei em tirinhas de aspecto borrachudo, e refoguei com alho e azeite. Normalmente na peixaria eles dão salsinha de brinde, mas dessa vez esqueceram, e eu esqueci de pedir, e não tinha em casa, então foi sem salsinha mesmo. Dei uma molhadinha com vinho branco e deixei cozinhar bem. Juntei uns tomates-cereja pra dar uma cor e no final ainda joguei umas ervilhinhas básicas. Escorri a massa pouco antes de ficar al dente, joguei na frigideirona T-fal onde estavam as lulas, e deixei terminar de cozinhar ali, no molhinho. Um toque de gengibre, um peperoncino esmigalhado pra ficar levemente picante, e voilà! Ficou ó-te-mo.

Semana que vem provavelmente vou pegar uns filés de merluzzo (que descobri, não sem uma pontinha de horror, que nada mais é do que o bacalhau fresco), pra fazer enroladinhos com talvez uma cenourinha dentro. Ou então cozze (mexilhões), pra fazer com macarrão ou como antepasto quente, com molho de tomate e pimenta-do-reino. Ou então salmão, que faço no forno como minha avó ensinou, numa caminha de batatas e cebolas em rodelas e um tiquinho de manteiga. Ou então vou de lula de novo, pra fazer com arroz, como se come no Brasil e aqui nunca se ouviu falar.

Gostei do negócio. Limpar o peixe ainda é um problema grande, mas me empolguei com a parte da cozinha. Vamos ver se as futuras experiências vão funcionar.