Festa dei Ceri – Gubbio

Sábado à noite, durante a pizza, Roberta veio com a idéia de ir a Gubbio no dia seguinte. O namorado dela vai pescar todos os domingos, e Gianni e Chiara iam a Lucca visitar parentes, de modo que resolvemos ir eu, Mirco e Robertinha. Todos nós já tínhamos estado em Gubbio, mas nunca no dia 15 de maio, dia de festa na cidade.

Mas vamos por partes. Gubbio é uma cidade pequena (30 e poucos mil habitantes), que repousa no monte Ingino, e fica a uns 45 km daqui. Dela diz-se que é terra de doidos, e que pra provar que é maluco o visitante deve correr três vezes em volta da fonte mais famosa da cidade. As lojas de souvenir vendem certificados de maluco em meio aos tradicionais balangandãs cafonas que japonês e alemão adora. Estive lá pela primeira vez em 2002, com duas colegas de turma da Università per Stranieri, Susanne, suíça, e Lihn, vietnamita. Até rolou uma excursão com a faculdade no 15 de maio daquele ano, e não me lembro por que não fomos. Mas enfim, a cidade é lindíssima e há muito pra ver, mesmo fora da festa. Mas a Festa dei Ceri é, diz-se, a mais antiga manifestação deste tipo na Itália, e é uma tradição tão… singular, que os três “ceri”, que já já explico, são o símbolo da região Umbria.

Mas então. O santo padroeiro da cidade é Santo Ubaldo, que morreu no dia 16 de maio de 1160. Desde então faz-se a festa no dia 15. A coisa consiste no seguinte, e depois vejam se neguinho não tem razão quando diz que todo eugubino (quem nasce em Gubbio) é maluco: há esses três “ceri” (pronúncia tchêri), que são uns negócios altos, de madeira, pesando 400 quilos cada um. Cada cero é formado por dois prismas octogonais encaixados um sobre o outro. No alto do cero empoleira-se a estátua de um dos santos que participam da corrida: Santo Ubaldo, vestido de dourado, São Jorge, de vermelho, e Santo Antônio Abade, de preto, nessa ordem. A corrida não é competitiva, ou seja, os santos chegam sempre na mesma ordem. O objetivo é simplesmente chegar o mais rápido possível na basílica de Santo Ubaldo, que fica lá em cima do monte – mas lá em cima MESMO. Cada cero fica apoiado verticalmente em uma plataforma, que é carregada nos ombros pelos ceraioli, que usam camisas de cetim com a cor do seu santo.

Os sites oficiais da festa dão duas explicações possíveis pra sua origem: uma é menos documentada e menos provável, e teria origens pagãs, em homenagem à deusa romana Cereres ou à deusa umbra (leia-se mais ou menos etrusca) Cerfus. A hipótese mais aceita é a de que a festa nasceu como homenagem ao bispo de Gubbio, o tal Santo Ubaldo, que parece que era muito querido. “Cero” é um jeito antigo de dizer “vela”, o que torna possível que a origem dessa maluquice toda tenha sido simplesmente o fato de que o pessoal saiu em procissão, carregando velas, quando o bispo morreu. Eu ouvi outra versão uma vez, mas que não achei em nenhum outro lugar: que os ceri são “corridos” pela cidade porque historicamente alguém teve que correr pra levar uma mensagem ao santo, que estava em fim de vida, sei lá. Acho que me enganaram.

De qualquer maneira, a coisa toda é interessantíssima. O dia começa muito cedo: os capitães dos ceri são acordados às 5:30 ao som de tambores; esses dois são os responsáveis pela parte organizativa da festa. Às oito e meia, na igreja dos Muratori (pedreiros), os ceraioli participam da missa, e logo depois os santos saem em procissão, que atravessa as principais ruas da cidade, e termina no Palazzo dei Consoli, na Piazza Grande, onde os ceri, que ficam o ano todo enfurnados na basílica, já estão esperando. Às nove e meia toma-se o lanchinho da manhã, à base de peixe. Às onze, da Porta Castello (lembrem-se de que é uma cidade velha pra cacete e ainda há muros, portas, fortalezas, essas coisas), parte o desfile dos ceraioli, com bandas de música e coisa e tal. Aos quinze pro meio-dia os chefes da cidade, em roupas medievais, entregam as chaves da cidade ao Primeiro Capitão, um gesto simbólico pra lembrar a todos que por um dia o poder está nas mãos do povo. Dali os ceri descem as escadarias do Palazzo até a praça. Os sinos do Campanone, a torre campanária, começam a tocar, sinalizando o início da Alzata (“levantada”): a um sinal dos chefes dos ceraioli, esses últimos levantam os ceri, que ficam em posição vertical. E dali passeiam pela cidade, exibindo-se, e homenageando as antigas e tradicionais famílias de ceraioli. Antigamente quem participava da festa não escolhia o santo, mas era meio que forçado a carregar o cero do santo que apadroava a sua profissão: Santo Ubaldo é o padroeiro dos pedreiros, São Jorge, dos comerciantes, e Santo Antônio Abade, dos camponeses e estudantes. Com o passar do tempo e com novas profissões na parada, a coisa foi meio que passando de pai pra filho, como é até hoje: famílias tradicionalmente santubaldenses dão origem a ceraioli santubaldenses, e por aí vai.

Às duas da tarde os ceri são deixados perto de uma das portas da cidade, enquanto o pessoal vai almoçar. A farofada toda dura até as quatro e meia, cinco da tarde, quando novamente parte a procissão de Santo Ubaldo, percorrendo todo o itinerário da corrida e terminando na via Dante. Ali o bispo abençoa os ceri, que então, às seis da tarde em ponto, começam a corrida.

Nós chegamos às três da tarde, e deu tempo só de tomar um sorvete, dar umas voltinhas e tirar umas fotos, porque depois tivemos que sentar a bunda no muro da Piazza Grande pra pegar lugar. Essa piazza é uma das minhas preferidas entre todas as italianas que já visitei. Porque o Palazzo dei Consoli é lindíssimo, e porque a praça fica no alto da cidade, dando uma vista deliciosa dos telhados das casas antiqüíssimas, com suas chaminés, o musgo que cobre as telhas, as antenas de TV, ninhos de passarinhos. Lá no fundo, o vale, pouco habitado – perto de Gubbio não há nenhuma cidade maiorzinha, é uma desolação só. Mas então: sentamos no murinho e ficamos observando o pessoal passando lá embaixo na rua, todo mundo com a camisa da cor do seu santo e com o obrigatório lenço vermelho no pescoço. Estávamos bem embaixo da torre campanária, e quando os sinos começaram a tocar todo mundo esticou o pescoço pra olhar lá pra cima e ver os meninos, todos de calça branca e camisa colorida, tocando o sino gigantesco. É muito maneiro, mas depois de meia hora começa a encher o saco. A praça começa a encher, mas esperávamos mais gente. É porque, marinheiros de primeira viagem, não sabíamos nada sobre a história da festa. Gente tinha, até demais, só que a galera participa da festa o dia inteiro, e vai atrás dos ceri, enquanto nós ficamos plantados ali no murinho pra não perder o lugar e a visão privilegiada. Muita gente deixa escadas, daquelas que usamos pra trocar lâmpada e limpar janela, acorrentadas nas grades dos prédios da praça. Na hora da bagunça, sobem nelas pra ver melhor. Vai ser criativo assim na China, putz.

Às seis em ponto ouvimos um roaaaaaaaaaaaaaaaaaar, um barulho de Maracanã lotado, de público de show do U2 ao ouvir os primeiros acordes, uma coisa assustadora – mais ainda porque vinha láaaaaaaaaaaaa de baixo, porque a corrida começa numa rua paralela à que passa logo abaixo da praça. Lá longe, na Piazza 40 Martiri, vemos aqueles negócios estranhíssimos, com os santos coloridos aboletados em cima, passando numa velocidade impressionante, e aquele murundu de gente colorida seguindo atrás, correndo feito doidos. É coisa de maluco mesmo, porque não tem o menor sentido, mas vou dizer um negócio pra vocês: foi uma das coisas mais emocionantes que já vi aqui na Itália. Fiquei comovidíssima, a empolgação das pessoas é contagiante, e o fato de que não é uma competição, mas só uma maluquice mesmo, só torna as coisas mais interessantes. O percurso inteiro da corrida dura duas horas, e inclui umas pausas pra neguinho não cair duro de tanto correr carregando peso. Não sei como funciona direito, mas é um mega trabalho em equipe, porque quando o ceraiolo (é sempre homem, mulher só fica na torcida e olhe lá) sente que não agüenta mais, ele simplesmente larga o negócio e sai de baixo da plataforma, sem nenhum sinal, sem avisar, sem pedir, porque sabe que alguém imediatamente o substitui. A expressão de cansaço e sofrimento físico no rosto dos ceraioli é impressionante. O grande lance da coisa é não deixar o cero cair, até porque levantar um tarugo daqueles não é brincadeira de criança. Se cair, os outros santos têm que esperar.

Mas então; depois da partida, entrevemos os ceri atravessando ruas e becos e desaparecendo novamente por trás de casas, e por um longuíssimo tempo não se ouve mais nada; sabemos que os ceri tão lá correndo, mas não vemos por onde, e de repente o roaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar vem vindo da rua que desemboca na Piazza Grande, onde estávamos, e lá vêm aqueles negócios esquisitos, com os santos balançando lá no alto, ensandecidos, pela praça. Aí é que entendemos onde tava todo mundo: tava era correndo atrás dos santos, porque junto com eles chegou uma cabeçada, mas uma cabeçada fenomenal. Os santos dão três voltas na bandeirona vermelha plantada no meio da praça, e seguem adiante, pra depois subir uma ladeira fenomenal, até chegar no cocoruto do Monte, onde fica a basílica.

Caramba, é MUITO maneiro. MUITO, MUITO, MUITO. Vale a pena de verdade. Se alguém aí tem intenção de vir aqui pro fim do mundo no ano que vem, faça de tudo pra conseguir estar aqui no próximo 15 de maio e ver essa maluquice.

Foi tudo perfeito: domingo, todo mundo descansado, Robertinha que é ótima companhia, o dia tava lindo, com sol mas com vento fresco, não pegamos trânsito (o que teria sido um horror porque a única estrada possível pra Gubbio é terrivelmente cheia de curvas, subidas e descidas, a ponto de ficar impraticável no inverno, se nevar demais), e na volta ainda paramos pra comer torta al testo, que em Gubbio se chama crescia (pronúncia crêsha), num quiosquinho tabajara que vende torta há quarenta anos. Negócio de família, é claro: uma velha no forno a lenha, cozinhando a torta, cuja massa é esticada em um testo, ou plataforma, de cimento e coberta com cinzas – não tenham nojo, por favor, é uma delíciaaaaaa; marido e mulher no caixa e alternando-se pra cortar fatias de queijo e de lingüiça na brasa, e um velho coroco encarregado de cortar, à mão (dizem que fica mais gostoso, eu não vejo diferença), mortadela e prosciutto crudo. Sentamos nuns banquinhos do lado de fora pra comer nossas tortas, as colinas verdejantes de trigo à nossa frente, vendo passar outra velhinha, que faz o trajeto forno-caixa duzentas mil vezes por dia carregando sempre uma torta de cada vez… Ô maravilha!

E então ficou combinado que queremos ver as outras festas umbras mais conhecidas: no fim do mês tem a Infiorata di Spello, que são aqueles tapetes de flor no chão da cidade (eu acho cafonérrimo mas diz a Roberta que a graça está em ir na noite anterior, pra ver o pessoal montando os desenhos com as pétalas), em junho tem as Gaite di Bevagna, quando a cidade inteira participa de uma encenação absolutamente realística da vida medieval, e acho que ainda tem a segunda edição anual da Quintana em Foligno, torneio medieval com cavalos, lanças etc. Perdemos o Calendimaggio, a festa tradicional de Assis, em que competem a Nobilissima Parte di Sopra (literalmente Nobilíssima Parte de Cima) e a Magnifica Parte di Sotto (Magnífica Parte de Baixo), mas a festa de Bevagna não quero perder de jeito nenhum.

Pra quem ficou curioso sobre a festa de Gubbio, mais informações aqui e aqui (ambas em italiano, sorry).