matrimonio

Hoje fui ao meu primeiro casamento em terras botais. Todo mundo já tinha me avisado há séculos que era melhor mesmo que eu nunca tivesse ido a nenhum porque é uma coisa muito chata, e principalmente cara, já que os presentes das listas custam todos os olhos da cara e é considerado feio dar algo de menos de € 150. Nesse de hoje tivemos sorte, porque o Mirco pintou a cama antiga de ferro do casal, e esse trabalho foi o nosso presente de casamento – na verdade o trabalho vale muito mais que € 300, mas tudo bem.

A coisa toda é muito diferente por aqui. Pra começar, normalmente a cerimônia é de dia, seguida não de uma festa, mas de um almoço. Muitas vezes, além da igreja e do almoço (normalmente em um restaurante), há também o chamado rinfresco, que costuma ser na casa da noiva, à noite. São comes e bebes estilo festa americana, uma coisa mais light. Às vezes rola também uma apresentação da casa onde os recém-casados irão morar: parentes e amigos íntimos fazem uma espécie de tour da casa antes da cerimônia. Hoje o pessoal anda mudando de costume e oferecendo jantares aos amigos em casa, depois do casamento.

Os noivos de hoje eram Peppe e Stefania. Peppe é amigo de infância do Mirco. O pai era finanziere (trabalhava na Guardia di Finanza), ganhava muito bem, conhecia todo mundo, era influente na cidade, e comprou muitas propriedades ali na zona. Morreu quando Peppe ainda era jovem, mas deixou um hotel na avenida principal da cidade, que hoje é administrado em conjunto pelo Peppe, a irmã mais velha, Teresa, e a mãe, Cleofe (don’t ask). A irmã do meio (Peppe é temporão) é casada com o Moreno, dono do restaurante que fica ao lado da loja do Fabrizio, o Louco – cansei de ir lá buscar o almoço do Fabrizio e também cansei de recusar propostas de trabalho do Moreno, porque garçonete realmente não dá. O hotel ficou bonito depois da reestruturação de 95, é um 3 estrelas todo novinho, com restaurante em dois andares e um jardinzinho na frente. Peppe vai morar com a esposa num edifício pequeno que pertence à família e fica logo atrás do hotel.

Stefania é de Costa di Trex, um pedaço de Assis que fica no alto da colina, inacessível em dias de chuva ou de neve (ontem mesmo a estrada principal estava fechada por causa de deslizamentos de terra e tivemos que passar por uma estradinha de terra batida cheia de pedregulhos, estreita e perigosa, pra ir ao rinfresco). O pai trabalhou como motorista de ônibus por muitos anos. A mãe não sei o que faz, mas Stefania é filha única e sempre estudou ballet, o que hoje se reflete nas veionas saltadas dos braços musculosos. Formada em Engenharia, hoje trabalha na faculdade onde estudou. A família tem dinheiro; os montanari (a gente da montanha) por aqui têm fama de espertos, no bom sentido; de gente que sabe ganhar dinheiro e trabalha duro.

Tanto Peppe quanto Stefania, que namoram há duzentos anos, são muito envolvidos com a igreja. Mas muito mesmo, do tipo não posso jantar fora esse fim de semana porque estamos em retiro espiritual lá não sei onde com a paróquia de Santa Maria. Ressalto que por aqui ser amigo dos frades é muito conveniente, principalmente pra quem trabalha com hotelaria. A maior parte dos hotéis é deles, que mandam clientes a outros hotéis amigos, como o do Peppe, quando os deles ficam lotados. Hoje o Peppe é diretor da Caritas local, e nem vou me pronunciar quanto a esse assunto porque gosto muito dele, mas acho que vocês já entenderam mais ou menos.

Bom. O casamento foi no altare maggiore da Basílica de Santa Maria degli Angeli. Ninguém nunca tinha se casado ali. Não é permitido; a igreja é importante demais pra se dar ao luxo de aceitar esses caprichos, e só quem freqüenta o altar principal são os funerais. Em um grande exemplo de humildade e voto de pobreza, o casamento foi realizado no altar onde nunca ninguém se casara antes, na igreja mais importante da cidade, quinto maior templo católico do mundo. Vozes já correm na cidade há algumas semanas, gente revoltada, gente reclamando, gente gesticulando. A justificativa oficial da paróquia local é que foi introduzido um rito novo, e o casamento do Peppe foi uma espécie de teste, pra ver que bicho que dá. Então tá.

Enfim. Quando chegamos a noiva já tinha entrado. A igreja estava cheia, inclusive de turistas, que vinham visitar a Porziuncola (a basílica foi construída por fora da Porziuncola, pra protegê-la), davam de cara com aquela noiva microscópica no altar, e paravam pra ver. Ficamos em pé o tempo todo, coisa terrível pra quem está de salto alto.

A missa foi LONGUÍSSIMA. Nunca vi tantos frades juntos na mesma cerimônia, mas gente influente é assim mesmo, sabe, junta multidões. Muitos paramentos que eu nunca tinha visto, mas eu não entendo dessas coisas, então pode ser que tudo fosse muito normal em meio a sacerdotes de ordem franciscana. Um coral de vozes clericais e laicas cantava entre uma liturgia e outra. Hoje a igreja conta com várias caixas de som espalhadas pelos quatro cantos, mas sei que o edifício foi construído levando em conta certas capacidades acústicas cujo efeito sobrenatural é fácil de constatar. Quando o padre fala, sua voz ribomba, como acredito que os crentes imaginem que seja a voz de deus. Quando o coral canta, me vem em mente que se eu acreditasse em anjos, seria assim que eu pensaria que eles cantam. Adoro música de igreja. É hipnotizante, atemorizante, mas realmente te transporta pra outra dimensão. Só faço questão de ignorar as palavras, pra não me irritar, mas o som é realmente divino, única palavra que na minha opinião descreve o que ouvimos.

Já jurei a mim mesma não falar mais de igreja aqui, mas não resisto.

O padre falou, falou, falou. E falou mais um pouco. Leu o que os noivos escreveram um pro outro – Stefania 6 páginas, Peppe 1, o que fez todo mundo da platéia rir. Peppe é o típico gordinho bonachão, que não se irrita nem se preocupa com nada, não é dado a discursos nem firulas, conhece todo mundo e nunca brigou com ninguém. Na escola ele era assim mesmo, dizem: enquanto a Stefania se esforçava pra escrever redações e trabalhos magníficos, ele se contentava com meia dúzia de linhas e já tava muito bom. O padre continuava falando, intercalando seus discursos com o belíssimo coral ou com o canto a cappella de uma freira muito jovem, vestida de cinza. Falou da onda de divórcios, esquecendo de mencionar que na época em que a bíblia foi escrita neguinho vivia até 40 anos, se tivesse sorte, e é muito fácil aturar alguém até que a morte os separe quando dura-se tão pouco. Também esqueceu de mencionar o fato de que basta pagar quantias escandalosas à Sacra Ruota no Vaticano pra ter seu casamento anulado, não importa o quão ridícula seja a situação, só pra ter o privilégio de casar novamente na igreja – só aqui no vale os casos são numerosos demais pra contar; todas as famílias “bem” têm gente divorciada e re-casada na igreja. Falou da onda de relacionamentos homossexuais, como se fosse coisa nova na espécie humana e inexistente entre os celibatários frades e padres. Falou de tudo isso só pra depois dizer que não, eles são pecadores tradicionais, de valores tradicionais, e preferem continuar acreditando que essas coisas não se fazem, é feio se divorciar, é feio acabar o amor, é feio casar de novo (a não ser que você pague à Sacra Ruota, claro, mas isso ele não mencionou), é feio ser viado ou sapatão, é feio ter dinheiro, é feio esbanjar (mas da anormalidade do casamento no Altare Maggiore também não se falou), essas coisas legais e principalmente MUITO sinceras que a igreja prega sempre. No terço final da cerimônia, o tal rito novo, que consistia em quatro dos padrinhos segurando os cantos de um véu branco e muito longo, por cima dos noivos. O padre explicou que aquele não era um simples véu, mas representava a nuvem que camuflou os judeus na fuga pelo deserto ou coisa do gênero.

Enquanto o padre falava aquelas coisas irritantemente hipócritas, eu e Mirco nos ocupávamos da análise estética dos convidados, já que a basílica não é nenhuma Brastemp e não oferece horas e horas de entretenimento arquitetônico como a de São Francisco, em Assis. Vimos:

. Scarpins rosa-choque
. Calça jeans e sandálias de salto agulha com gigantescas flores azuis de plástico no peito do pé
. Calça de seda marfim com elástico na barra, cobrindo o sapato
. Bundas imensas espremidas em calças brancas de seda, com direito a fio dental e celulites se manifestando sob o tecido
. Bundas imensas pertencentes a senhoras de uma certa idade, espremidas em calças azul-marinho transparentes
. Costas mais gordas do que as minhas derramando tecido adiposo por entre as fitas de um corpete apertado demais
. Rapazes com camiseta amarelo-ovo escrito Brasil nas costas
. Frade com gel no cabelo
. Muitos frades jovens, alguns lindos, infelizmente
. Cabelos estilo poodle, permanentados na frente e lisos atrás. E vice-versa
. Muita, mas muita boca contornada com lápis e sem batom
. Saia jeans e camiseta e tênis
. Uma jaqueta preta muito bem cortada e com belos botões na frente, mas com uma cobra IMENSA bordada atrás
. Sapatos masculinos de couro de crocodilo e ponta fina
. Machos de sobrancelhas feitas
. A melhor amiga da Stefania, uma garota muito esquisita, de vestido longo cor de cocô e um chapéu imenso, totalmente nada a ver
. Muita, mas muita alça de sutiã colorido aparecendo por baixo de vestidos tomara-que-caia, ou de um ombro só, ou de alcinhas finas
. Uma calça maravilhosa, branca com listras pretas na vertical, irregulares. O tecido era maravilhoso, babei
. Xales horrendos daqueles 150% poliéster
. Uma sandália baixa, prateada, linda de morrer
. Bizarras combinações de camisa xadrez e terno listrado
. Perucas masculinas
. Narizes alcoólatras, inchados, vermelhos, cobertos de telangectasias
. Bebês fofinhos adormecidos
. Crianças entediadas

entre outras coisas.

Enquanto eu sofria no meu salto alto desconfortável e morria de calor na minha calça de xantungue roxo da Animale e blusa de palha de seda creme da Mariazinha, o Mirco suava no seu terno cinza-escuro com sapatos da Mr Cat. De vez em quando um monstro do pântano passava na nossa frente, dando-nos uma bolsada ou uma cabelada, e ele repetia: mamae-so-fórtchi, sua última aquisição lexical, que ele adorou tanto que usa em qualquer situação ridícula, relacionada ou não ao uso de camisetas sem manga para exibir os bíceps.

O raio da missa estava demorando uma eternidade, e como depois da cerimônia os noivos tradicionalmente vão pra sessão de fotos, fomos lá pra fora pegar um arzinho e descansar os pés, porque não dava mais pra agüentar. Ficamos sentados num banco de pedra em frente à Libreria Internazionale Francescana, o que quer que isso seja, batendo papo com o Stefano. Stefano é amigo deles há anos, trabalha no Ipercoop e é um pedaço de mau caminho. Alto, físico de atleta, olhos penetrantes e sorriso perfeito, coisa MUITO rara por aqui, mesmo em se tratando de gente que tem dinheiro. Ao meio-dia e meia os noivos finalmente saíram da sessão top model; fomos cumprimentá-los, pegamos o carro estacionado em frente à peixaria e fomos pegar o Moreno em casa. Ele tinha trabalhado até meio-dia e vinte e não pôde ir à missa, sorte dele.

O almoço foi no hotel da família, lógico. Quer dizer, lógico seria se o lugar fosse suficientemente grande. Mas não é, e foi preciso dividir a galera: parentes no restaurante do térreo, amigos no restaurante da sobreloja, digamos. Gente demais, ar condicionado que não dava conta do recado, e todo mundo com dor de cabeça por causa do ar consumido, como se diz aqui. O antipasto foi servido em pé, no jardinzinho da frente, entre a cerca-viva de louro e oleandros brancos: espetinhos de tomate-cereja, mozzarella e manjericão, salada de trigo (deliciosa), enroladinho de massa folhada com recheio de espinafre e lingüiça despedaçadinha, enroladinho de massa folhada e recheio de salsicha (würstel), salada de rúcula, pinoli, uva-passa e parmesão, rolinhos de bresaola (um tipo de ensacado típico do norte, eu não gosto) com recheio de rúcula e molho branco, salame fatiado, lascas de parmesão (adoro), pedaços de queijos variados – queijo de leite de ovelha, queijo duro, queijo mais ou menos, queijo com tartufo, queijo com peperoncino. Água mineral, prosecco e uma coisa não alcoólica cor-de-laranja que não tinha gosto de nada. Terminado o antipasto, todo mundo pra dentro do hotel.

Demos sorte: não havia lugar marcado e dividimos a mesa para dez com Moreno e mais três casais de amigos do Peppe que o Mirco não via há muitos anos. Gente simpática mas meio paracula demais pro meu gosto; levaram uma hora e meia pra descobrir que eu não era italiana, mas a partir daí ficaram me encarando o tempo todo, como se eu fosse um bicho no zoológico.

O catering ficou por conta da empresa Il Quadrifoglio. As garçonetes eram muito simpáticas e eficientes. Na mesa, um cardápio pra cada um; fiz como manda a tradição e trouxe o meu pra casa, pra lembrar o menu da festa – normalmente o menu é a única memória que fica do casamento, e todas as conversas sobre festas de casamento giram em torno da refeição. Além do cardápio, um saquinho de algodão cru bordado em estilo inglês contendo, como manda a tradição, um número ímpar e superior a um de amêndoas confeitadas. Felizmente as de hoje eram cobertas de chocolate e não só de açúcar :) Como Peppe e Stefania são muito caridosos, os saquinhos foram comprados de uma empresa que dá trabalho a gente pobre em países pobres. Nossos saquinhos foram bordados à mão por mulheres de uma cidade indiana cujo nome esqueci. Muito bonitinho, e as amêndoas são deliciosas.

Comemos muito bem. Foram três primi piatti e dois secondi, na ordem: risotto di caciotta dolce (a caciotta é um queijo macio que não tem gosto de nada, e eu AMO) e fiori di zucca (flores de abobrinha), crespelle di asparagi (crêpes de aspargos) e ravioli di melanzane (berinjela), pomodorini Pachino e ricotta salata (Pachino é uma cidade siciliana que produz esses tomates pequenos, mas maiores que os cereja, famosos pelo sabor, dizem, maravilhoso. Eu não sou fã de tomate e pra mim é tudo a mesma coisa.), depois agnello farcito al tartufo nero di Norcia (carne de carneiro recheada com trufas negras da região. Normalmente acho carneiro pesado e gorduroso demais, mas esse tava uma delícia) con mazzolino di fagiolini al fumé (um maço de meia dúzia de vagens enroladas em uma fatia de bacon) e por último carrè di vitello agli aromi naturali (carne de vitela com ervinhas), patate fondenti (batatas deliciosamente gratinadas) e misticanza (salada mista). Pra beber, um Bianco di Torgiano pros primi, e um Rubesco pros secondi, tudo Lungarotti. Parece uma quantidade absurda de comida, mas não é, creiam-me: duas colheres de risoto, um mini-crêpe, seis ravioli pequenos por pessoa. Uma fatia de carneiro, uma fatia fina de carne de vitela, meia dúzia de fatias de batata.

Quando todo mundo já tava a ponto de desmaiar de calor, as garçonetes mandaram a gente ir lá pra fora, pro bolo e pra sobremesa. O bolo, simples, de três andares redondos e enfeitado com rosas verdadeiras, era imenso e quase caiu quando duas crianças passaram correndo na frente das três pobres coitadas que o carregavam. Um amigo fez um discurso engraçado, em versos, antes dos noivos cortarem o bolo. Fila pro bolo; eu ataquei os morangos, mas também tinha kiwi fatiado, abacaxi em pedacinhos, melancia em cubinhos, melão cortadinho. Pegamos nossas bomboniere, caixinhas de vime com saquinhos de chá do Sri Lanka dentro, sempre no estilo vamos dar trabalho ao pessoal dos países pobres. Uma ótima alternativa às normalmente ridículas lembrancinhas de prata que não servem pra absolutamente nada, custam os olhos da cara e só ocupam espaço. O nosso chá é de limão aromatizado com mel. Pena que eu não tomo chá.

E dali não agüentei mais e fomos embora porque já eram cinco da tarde e meus pés estavam literalmente me matando. Deixamos o Moreno em casa e nos mandamos.

Mirco chapou no sofá imediatamente, vítima da combinação calor + comida boa + vinho. Eu ainda resisti e vi um pedaço de Conduzindo Miss Daisy antes de chapar. Acordei com um toró dos diabos lá fora, tirei a roupa do varal em tempo, rezei pra chuva continuar e estragar a última noite da festa da primavera e voltei a dormir.

Reacordamos às nove da noite! Outro banho, troca de roupa e fomos pro tal rinfresco. Felizmente a chuva tinha passado, senão não teríamos conseguido chegar naquele fim de mundo. Chegamos tarde e já não tinha mais nada; as meninas do Quadrifoglio estavam desmontando as mesas. Ainda sobraram algumas bomboniere, e peguei mais uma: dessa vez era chá verde aromatizado com gengibre. Batemos um papo rápido com Roberto e Cristiana, com Carlo Belli, irmão do Mario, que casa mês que vem, com um amigo do Mirco que namora uma equatoriana, e fomos embora pra casa.

Eu custei pra burro pra dormir. Fiquei vendo Drácula de Bram Stoker na TV, que nesse momento me foi profissionalmente útil. Ainda terminei de ler o original do texto a traduzir, tomei um iogurte de banana e só fui dormir às duas e meia da manhã.