de gentileza e picaretagem na bota

Corroborando o assunto que a Lu comentou, conto um causo parecido: hoje dois funcionários do Comune de Torgiano deram um pulo na oficina pra deixar uma garrafa de vinho pro Ettore. É que volta e meia eles precisam de uma empilhadeira, e emprestamos uma das nossas. Agradecidos, trouxeram uma garrafa de Colli Perugini rosso. Gentileza gera gentileza, mesmo.

Por outro lado… A Dri me mandou um e-mail dizendo quanto é difícil trabalhar com italianos, benza deus, porque eles erram tudo, se enganam, esquecem coisas, atrasam, se enrolam, não falam inglês, fazem de tudo pra não pagar impostos. Dri, aqui é assim mesmo, a picaretagem rola solta de norte ao sul da bota – mais no sul do que no norte, mas ainda assim… Eu particularmente acho que os motivos principais são três: primeiro, os impostos são altíssimos e o retorno não é absolutamente proporcional, já que a qualidade dos serviços –TODOS – é sofrível. Segundo, lembre-se de que até meia hora atrás a Itália ainda capinava batatas na dureza do pós-guerra, ninguém tinha dinheiro e o escambo comia solto, ou seja, imposto é uma coisa relativamente recente por aqui. Terceiro, é que eles são indisciplinados mesmo, revoltados contra toda e qualquer autoridade, e sendo assim driblar o Fisco tem um gostinho particular de vitória e rebelião contra o sistema. Ainda mais quando quem comanda o sistema é o tricoimplantado Berlusca, que só não rouba e mente mais por falta de espaço. Então é assim mesmo, tudo é complicado, pro cliente pagar você só falta ter que chorar aos pés dele, os bancos fazem o que querem e aumentam as tarifas na surdina o tempo todo, manter uma empresa totalmente regular é um objetivo absolutamente inatingível tal a quantidade de burocracia (e de desinformação dos burocratas envolvidos) com a qual temos que lidar. Manter um funcionário com carteira assinada custa uma fortuna, e tomamos na bunda o tempo todo. Essa semana temos QUATRO operários doentes. Quatro. O galpão cheio de caminhões desesperados pra ir embora, porque só têm até sexta-feira pra rodar (o trânsito fica proibido pra caminhões nos fins de semana, a não ser os que carregam perecíveis), e quatro pimpolhos em casa. O pior é que sabemos que não estão doentes. Funciona assim: eu só preciso ir ao meu médico de família e pedir um atestado pra vinte dias que ele me dá – basta eu pagar uns 30 euros, dependendo da região. Eu cansei de pegar atestado pro Mirco quando ele tinha acabado de fazer a operação no joelho e não podia dirigir. Ficava lá no escritório botando as contas em ordem, doido pra levantar e ir pintar alguma coisa mas sem poder caminhar direito, e enquanto isso eu ia ao médico dele pra pegar mais um atestado de doença. O cara nem via a cara do Mirco; perguntava pra mim como ele estava, eu era sincera (ele já nos conhece, é o médico de toda a família do Mirco há uns quinze anos), ele tchum, canetava um atestado de 15 dias de repouso. Mas e se eu estivesse mentindo? Afinal, dor no joelho depois de um intervento cirúrgico é uma coisa subjetiva. Posso ficar reclamando de uma dor inventada até o fim dos dias; quem é que vai provar o contrário? Então, nessa palhaçada toda, o empregador toma na bunda, toma na bunda, toma na bunda. Quando aparece a oportunidade de fazer algum serviço sem fatura, ninguém pensa duas vezes. Ninguém. Conhecemos diretores de empresas grandes, mas grandes MESMO, com fábricas em várias regiões da Itália, que sempre tentam trabalhar sem fatura. A mentalidade geral é, com o governo que temos aqui, quanto mais a gente passar a perna nele, melhor. Não é exatamente o modo em que eu vejo as coisas, mas enfim, em Roma como os romanos. Mesmo.

Hoje aconteceu um exemplo maravilhoso de picaretagem. Chegou pelo correio uma fatura de uma empresa de Ascoli Piceno (leia-se litoral do Zaire), cujos cornos nunca vimos, no valor de dois mil e tantos euros. Chegou com o nome da empresa parcialmente correto, mas o CGC antigo, quando era no nome do Ettore. Os produtos descritos são indecifráveis – Kimberly Diamond seguido de um longo código em números e cifras, por exemplo. Não temos a menor idéia do que se trate. Eles se deram mal porque a oficina é pequena, os fornecedores são todos os mesmos há anos, e todo mundo ali dentro, até os bananas dos marroquinos, seriam capazes de dizer que não temos nenhum tipo de contato com a tal empresa. E também porque o Mirco é osso duro de roer. Ligou logo pro número de telefone indicado na fatura e tascou logo um “mas quem são vocês, o que diabos vocês vendem, e quem foi o desgraçado que se propôs a passar meus dados a vocês?”. A mulher ficou toda nervosinha (eu ouvi pelo viva-voz) e jurou que tudo seria resolvido, depois de inventar uma história pra boi dormir. Coitada, não conhece o lanterneiro. Já escrevemos uma carta registrada, a arma mais poderosa do Mirco, avisando que se eles não mandarem uma comunicação igualmente registrada declarando que a fatura era tão real quanto uma nota de um euro, vamos entrar com ação na justiça e acionar a imprensa também. Uhuuuuuuuuu olha o barraco!!!

Mas cês entenderam o mecanismo? Imagina que essa fatura chega em uma empresa grande, com zilhões de funcionários, que lida com centenas de fornecedores diferentes de categorias diferentes de produtos. A secretária da contabilidade vai estranhar o preço do Kimberly Diamond? Vai estranhar o nome da empresa de Ascoli Piceno? Provavelmente não. Vai mandar um cheque pelo correio, saldando a tal fatura. E assim o picaretão vai fazendo seu pé-de-meia. Legal, né.