il terzo mondo è qui…

Outro dia assistimos a um debate na TV sobre uma das maiores pragas da sociedade italiana: a raccomandazione, ou o famoso pistolão.

NADA aqui funciona sem pistolão. Desde a coisa mais simples, como uma caixa de limão verde que a verdureira só te arruma porque ficou sua amiga, até coisas sérias como conseguir emprego nas estatais. O assunto surgiu por causa do escândalo das listas de raccomandazioni pra entrar nos Correios. A coisa era organizada: descobriram um CD com um banco de dados com o nome do raccomandato, o nome do raccomandante, que tipo de cargo poderia ocupar, e coisa e tal. E o pau comeu mais ainda porque os correios italianos são mundialmente famosos pela sua incompetência, lerdeza, mania de perder coisas, gente retardada trabalhando nas agências. Já falei mal dos correios aqui um milhão de vezes, e toda vez que tenho que ir lá me irrito. E olha que eu conheço agências dos correios do país inteiro – quando viemos aqui pela primeira vez, eu e Valéria trocávamos dólares sempre nos correios e vimos muita gente na fila reclamando e mandando chamar o gerente porque a fila era enorme e ninguém lá dentro se mexia pra agilizar o serviço.

As três agências que mais freqüento são a de Santa Maria, a de Bastia, onde tenho conta, e a de Ponte San Giovanni, a dois minutos da escola. O nível de retardamento mental e despreparo das pessoas que trabalham ali dá vontade de chorar. Imaginem que uma vez fui a Bastia depositar um cheque dos correios – veja bem, nem pedi pra trocar, só pra depositar mesmo – e a energúmena atrás do vidro me disse que uma das regras dos correios é só lidar com cheques da mesma agência. Minha senhora, eu disse, a senhora compreende que se fosse assim os cheques não teriam razão de existir? Se um cliente de Bari me paga com cheque, segundo a senhora eu vou ter que ir a Bari pra depositá-lo? Tem sentido isso? Não teve jeito, a mulher cismou, bateu o pé, e não quis depositar. Então fui a Torgiano, agência minúscula mas com uma gerente espertíssima, e contei a história (só não vou mais a Torgiano, onde fica a oficina, porque eles fecham à tarde, enquanto que as outras agências funcionam em horário integral, inclusive sem fechar na hora do almoço, olha só que avanço.). A mulher ficou furibunda! Volta lá e me faz o favor de dizer praquela múmia que ela é uma imbecil e não sabe nada! Que gente retardada! Onde foi, em Bastia? Ah, eu sabia, só tem imbecil naquela agência! Tirou uma xerox do contrato entre o correntista (no caso, eu) e o banco, explicando os prazos de pagamento dos cheques, da praça, fora da praça, do BancoPosta, de outros bancos, sublinhou tudo o que interessava, e me implorou pra ir lá esfregar tudo na casa da energúmena de Bastia.

Mas enfim, o assunto era pistolão. O debate foi interessantíssimo. Havia alguns peixes grandes da política – um fascistão do Veneto, um senador vitalício filho da puta de Nápolis – e mais uns gatos pingados: uma cirurgiã espertíssima, que mesmo sendo docente de quatro universidades estrangeiras jamais conseguiu trabalhar na Itália porque não pertence a nenhuma família de tradição médica; um professor da Bocconi, famosíssima faculdade de Economia de Milão; Emilio Fede, um puxa-saco do Berlusconi que me dá nojo só de ver, e mais uns fulanos que telefonavam e faziam participações especiais ao vivo. Entre esses últimos, o prefeito de Roma, que ligou pra esclarecer uma história confusa que saiu nos jornais sobre possíveis raccomandazioni da parte sua. A sua explicação foi, na minha opinião, pior que o soneto: disse que só deu uma ajuda pra arrumar emprego pro filho de um bombeiro que morreu em serviço. Ora, faça-me o favor, eu entendo que é chato o cara morrer em serviço e que o Estado lhe deve alguma coisa, mas daí a arrumar emprego pro filho do cara, que não era absolutamente preparado pro cargo, temos léguas de distância.

A cirurgiã foi a nossa preferida da noite. As caras que ela fazia a cada comentário absurdo, a cada conversa filmada escondido, eram de matar de rir e refletiam exatamente o que estávamos pensando. Na verdade todas as pessoas entrevistadas na rua e todos os envolvidos nas tais conversas gravadas admitiam que o pistolão faz parte da cultura italiana, que sempre foi assim e sempre será, que em alguns casos nem é tão grave assim. A última coisa que eu vi antes de cair no sono foi que os únicos profissionais italianos respeitados no exterior são os que efetivamente estudaram no exterior, porque nas faculdades italianas o planeta inteiro sabe que o esquema é o pagou-passou, ou o conhece-alguém-lá-dentro, tá feito. Um outro professor de universidade contou que já recebeu listas de nomes que lhe foram passadas por baixo da porta de casa – nomes de alunos que ele deveria aprovar, porque raccomandati por gente importante.

Algo me diz que não vou conseguir voltar a estudar.