felliniano

Com todas essa coisa da universidade, acabei nem contando o jantar bizarro de sábado passado.

Tínhamos ido, com Marco e Michela e a irmã do Marco, Cristina, com o marido, Natale (dovarante conhecido como O Homem Dos Dentes Mais Feios Do Mundo), a Foligno. Estava rolando o festival Primi d’Italia, uma festa dos primi piatti que parecia muito interessante do ponto de vista gustativo.

Só que era tudo TÃO confuso que não conseguimos comer LA-DA. Os stands estavam todos entupidos de gente e tinham como objetivo vender macarrão, muito mais do que fazer neguinho comer macarrão. Estávamos dispostíssimos a pagar dois euros por degustação, mas se não encontramos nada pra degustar! Pacotes e mais pacotes de macarrão, de todas as formas, cores e tipos, handmade, fatti in casa, artesanais, sei lá o que mais, mas tudo pra vender. Então nos enchemos e começamos a parar gente na rua pedindo sugestões de onde ir comer – nenhum de nós conhece Foligno direito, e a cidade, apesar de rica, é famosa pela falta do que fazer. Acabamos entrando num mix de loja de especiarias e chocolateria e drogaria, e a senhora nos disse pra procurar uma tal de L’Osteria, deu as indicações e coisa e tal, e ainda comentou que deveríamos dizer que era ela que nos tinha mandado lá.

Não era longe, não estava muito frio, a caminhada foi gostosa e abriu mais ainda os apetites – depois de tanto rodar pra tentar entender alguma coisa, já eram nove horas passadas. Encontramos o tal lugar; tinha muita gente do lado de dentro, esperando em pé, e alguns retardados fora da porta de vidro, fumando. Na nossa frente havia um grupo de três senhores bigodudos e uma senhora que esperava uma mesa pra sete. Um corre-corre danado; um menino novinho bonitinho, filho do dono, um careca tranqüilo mas com cara de mandão, e uma loura esperta que volta e meia botava o nariz pra fora da cozinha pra trazer o prato de alguém. Nada de menu, mas havia uns folhetos espalhados sobre um barril logo na entrada descrevendo alguns pratos. Achamos que eles estavam trabalhando no esquema degustação, pegando o gancho da festa dos primi piatti; paramos o careca-dono pra perguntar se era isso mesmo, ele disse que não, que o folheto estava errado. Então tá. A senhora que esperava a mesa pra sete pessoas queria era degustar, então foi embora e nós herdamos o seu lugar na fila. Demorou séculos mas finalmente os senhores bigodudos sentaram. Logo depois chegou um grupo de senhores MUITO distintos dizendo que tinham passado lá antes e lhes tinham dito de voltar mais tarde. Pra mim, honestamente, isso não pode ser considerado reserva – nada de nomes, nem horário, nem ninguém que se lembrasse da cara deles – mas como aqui também se dá um jeitinho pra tudo, rearrumando os comensais já sentados conseguiram liberar duas mesas grandes. Dissemos ao careca que a senhora da drogaria tinha nos mandado lá, e ele respondeu “não tenho a menor idéia de quem vocês estão falando”. Então tá.

A nossa ficava bem em frente ao balcão de frios. Explicando: osteria não é um restaurante; é um lugar onde belisca-se e come-se o que tem naquele dia, incluindo pão, frios, queijos, e os dois ou três tipos de prato (primo e secondo) que a cozinheira preparou com produtos locais e da estação. Então atrás do balcão tinha um fulano lerdíssimo que não faz nada da vida a não ser cortar queijos e fatiar frios e pão. Uma raposa, como disse o Natale de sacanagem, porque o cara estava realmente muito fora do esquema estressante do resto da osteria. Todo mundo na maior correria (e gritaria, lógico), e ele todo zen, fatiando presunto e salame de cervo.

Sentamos à mesa, mas ninguém tinha tempo de tirar a mesa. Então começamos nós mesmos a tirar e amassar os place mats de papel, os pratos, copos, talheres, garrafas de água mineral. O careca passou, rindo, e pegou tudo pra levar pra cozinha. O tempo passava e ninguém tinha tempo de botar a mesa pra gente. Descobrimos o estoque dos place mats e dos talheres e nós mesmos começamos a botar a mesa. O careca veio rindo e pedi uma água mineral pra tomar o comprimido pra enxotar a enxaqueca que já estava se instalando na maior. Ninguém tinha tempo pra me trazer a água mineral. De tanto ouvir neguinho chamando um ao outro aos berros, aprendemos os nomes da galera, principalmente do Leonardo, o filho do careca, mais perdido que cego em tiroteio. Leonaaaaaaardo, traz a água mineral, traz o pão que tem mulher grávida com fome! (a Michela ainda não pariu.) E nada do Leonardo aparecer. Natale levantou e foi pedir umas fatias de pão pro Raposa, que logo lhe deu uma cestinha cheia. A loura apareceu e perguntou se já tínhamos pedido. Mas se nem sabemos o que tem pra comer!!! Leonaaaaardo, vai explicar o menu pros senhores. Raposa, enquanto isso dá uma fatiada aí e prepara uns pratinhos pros senhores.

Leonardo apareceu quando já estávamos na metade dos fatiados e queijos, e tirou um pedaço de papel amassado do bolso. Começou a recitar os pratos: penne com molho picante de alcachofra, strangozzi (um tipo de espaguete típico da Itália central, mais grosso que um espaguete normal) al tartufo nero di Norcia, tagliatelle all’uovo con funghi porcini, con o senza pomodoro. Pedimos, além dos queijos e frios, duas cumbuquinhas de feijão à moda toscana – com um pouco de tomate no molhinho picante. Eu adoro feijão, aliás adoro qualquer cereal e leguminosa, e fiquei animada. Pedimos também bruschette que nunca chegaram, mas tudo bem.

O prato da Cristina, a única que pediu penne com molho de alcachofra, chegou enquanto ainda estávamos nos queijos – não por eficiência, mas porque o Leonardo tinha esquecido de entregar um pedido na cozinha e os clientes, de saco cheio de esperar horas por um prato que jamais chegaria, deram no pé. Foi aí que o Leonardo teve a idéia de passar o pedido pra cozinha, e a loura-mãe só foi lembrar de cancelar o pedido quando esse prato já tava pronto. Então a Cristina foi a primeira a comer.

Horas depois – e duas jarras de vinho branco da casa depois – ainda estávamos com fome, mesmo depois de tanto pão e queijo. O feijão chegou, decepcionante na quantidade, tipo duas colheradas por cumbuca, mas deeeeeeeeelicioso. Cristina levantou pra fechar a porta de vidro, porque tava um frio do cacete.

Horas depois – já eram quase onze e meia – começam a chegar os pratos de pasta. Àquela altura já tínhamos dado muita risada, ajudando o coitado do Leonardo a lembrar dos pedidos dos outros clientes, ajudando o Raposa a cortar mais pão e servir mais vinho, que o Natale levantava e ia lá pegar ele mesmo, sacaneando o careca que se controlava pra não rir quando um cliente pediu uma “grappa morbida” (grappa macia. Essa mania dos termos ridículos pra definir bebidas é realmente uma comédia) e ele lhe deu a única que tinha – que definitivamente não era macia, como depois comprovaram os meninos. A enxaqueca já tinha passado, estávamos todos satisfeitos, o Mirco já tinha desenhado no place mat um gráfico do nível de atenção do Leonardo com o passar das horas. A loura-mãe veio da cozinha, viu o gráfico e caiu na risada. Disse que o Leonardo foi concebido em um dia de muito cansaço e por isso saiu assim, lento. Nós ríamos, ríamos, ríamos. Vimos que as sobremesas, umas tortas com geléia de fruta (chamam-se crostate), estavam desaparecendo. A Michela, chegada num docinho, gritou pro Raposa separar um pedaço pra ela. O Mirco gritou pro Raposa separar TUDO e não vender mais doce pra ninguém. E lá vai o careca esconder a torta pros outros clientes não pedirem.

Ninguém tinha tempo de tirar a mesa, então nós mesmos começamos a reunir os pratos e copos sujos. Pegamos uns pratos de sobremesa que estavam na estante atrás de nós e fomos buscar a torta com o Raposa. Não sobrou nada. Mirco foi supervisionar a produção dos cafés, porque o Leonardo, com aquela cabeça-de-vento, era bem capaz de não lembrar mais qual era o decafeinado, e o Mirco se toma café normal não dorme por uma semana. Grappa pros meninos, superseca e nada morbida. Apesar de já ser quase meia-noite, ainda entram clientes. Mulheres estranhas, de botas brancas e longos cabelos preto-graúna, maquiagem exagerada. Leonardo se vira de repente, dá de cara com a mulher e faz uma cara de susto. Nós rimos sem parar. Michela levanta e vai pegar uma maçã da cestinha sobre o balcão. Marco pega uma banana. O Raposa sai de trás do balcão e vem conversar com a gente. Diz que trabalha na fábrica de peças de avião que tem em Foligno, mas que trabalhou durante 9 anos como salumiere e de vez em quando faz bicos em restaurantes fatiando frios.

Finalmente o movimento cai e os donos vêm conversar com a gente. São de Norcia, e têm uma osteria ali também, mas o movimento, lógico, é pouco – Norcia é mais fim do mundo ainda do que Bastia, e ainda por cima é um frio do cacete. Abriram essa em Foligno há dois meses e ainda estão tentando entender o movimento como funciona. Não estavam preparados praquela confusão toda; muito pelo contrário, achavam que, com o festival rolando, a galera ia comer na rua, nos stands, e não nos restaurantes. Mas parece que nós não fomos os únicos a não entender nada, e assim os restaurantes da cidade estavam todos lotados.

Na hora de fazer a conta, fui levar as minhas anotações pra loura-mãe, visto que conforme pegávamos novas jarras de vinho e novas cestas de pão ninguém do staff anotava nada. Ela tinha feito uma listinha daquilo que tínhamos pedido ao Leonardo. Avisei que as bruschette não tinham vindo, mas que tínhamos bebido mais vinho e coisa e tal. Ela fez umas contas malucas que não entendi, com uns rabiscos ilegíveis, fez um descontinho porque somos simpáticos e não reclamamos da demora, e no final a conta deu 20 paus pra cada um. Nada mal, porque comemos MUITO BEM, apesar do serviço completamente maluco, e consumimos nada mais do que 5 jarras de vinho da casa.

Ficamos de voltar em um dia mais normal, no meio da semana. O menu é sempre uma surpresa e o careca nos deu o número do celular pra ligar e perguntar o que rola. Disse que faz um molho de javali de comer chorando, então ficamos de ligar de vez em quando pra ver se conseguimos comer o tal javali.

Olha, sinceramente, tinha muito tempo que eu não ria tanto.