juruna

O programa de índio hoje foi o seguinte: acordamos às quatro da manhã, Moreno passou pra nos pegar e lá fomos nós rumo a Castellammare di Stabia, perto de Nápolis (Julie, se eu tivesse ficado sabendo disso antes teria te avisado, mas só combinamos tudo tarde da noite no sábado!), levar o cachorro do Moreno pra uma exposição.

O Moreno é um amor, mas tem umas infantilidades que realmente me irritam. Gastou uma grana comprando um filhote de Dobermann, ridiculamente chamado Akyn, gasta mais uma grana preta pra adestrar o bicho, comprando ração top de linha, acessórios desnecessários, e toda aquela parafernália da qual só cachorro com pedigree, frágil e geneticamente esquisito, precisa. E ainda por cima resolveu entrar no mundo das exposições caninas. Valha-me!!!

Curiosos, eu e Mirco aceitamos o convite e resolvemos fazer companhia pro coitado do Moreno, que nunca participou dessas coisas e não queria chegar lá sozinho, sem saber o que fazer.

A viagem foi light, o cachorro, que é um amor, dormiu numa boa o tempo todo, fedendo terrivelmente dentro da sua gaiolona de plástico. Chegamos no tal lugar da exposição e já tinha um povo chegando. Moreno parou um senhor de Messina, com um dobermann insuportavelmente chato, agitado, forte e latidor, pra perguntar como funcionava e coisa e tal, porque era a primeira vez dele e blah blah. O cara foi superantipático – não existe gente legal com cachorro chato, é uma lei universal – e só faltou rosnar pro Moreno. Então deixamos tudo pra lá e entramos na cara dura mesmo.

A coisa rolou no que eu presumo que seja um local pra atividade física de alguma escola ou instituição. Enquanto os organizadores, atrasadíssimos, ajeitavam os cartazes da Purina e formavam o ringue onde os cachorros desfilam, nós ficamos observando o pessoal que chegava.

Eu não gosto de dobermanns. São bonitos, mas não gosto da personalidade deles, muito menos da dos donos. Era um preconceito que revelou ser absolutamente fundado, porque o que vimos de gente maluca, esquisita, chata, mal educada, prepotente, ridícula, não tá no gibi. A mulherada de óculos escuros gigantes, os homens com camisetas de criadores, botas, jeans Dolce & Gabbana, enfim, os sólitos ridículos. Crianças mimadas chorando o tempo todo, muita gente fumando o tempo todo, gente discutindo coisas idiotas tipo o ângulo da perna posterior do cachorro, o tipo de corte da orelha, e outros assuntos de vital importância pra ordem mundial.

Uma gordinha simpática pára o Moreno e pergunta o nome do cachorro. Quando o Moreno responde “Akyn”, ela solta um gritinho de alegria. É meu filho! É filho da minha Brisal! (pra quem não sabe, quando falamos de pedigree todos os cachorros da mesma ninhada ganham nomes ridículos que começam necessariamente com a mesma letra. A ninhada do Akyn foi a primeira da Brisal, e todos os filhotes têm nomes que começam com A.) Pronto! Encontramos alguém amigável e que conhecia os bastidores da coisa, pra nos explicar como funcionava o esquema. Moreno foi pagar a inscrição no container que funcionava como secretaria, pegou o livrinho de competições novinho em folha do Akyn, e começamos a estudar o panfleto com a programação do dia, com os nomes de todos os participantes por categoria, e espaço pra anotar as notas.

O Akyn foi o primeiro a desfilar, na categoria baby macho preto. Em teoria o início da exposição estava marcado pras dez, mas, faz-me rir, além de estarmos na Bota estamos em Nápolis, claro que começou quase na hora do almoço. Enquanto isso, a gordinha, que se chama Valentina e é de Gênova (sotaque maravilhoso), nos disse pra arrumar uma bola e cansar o Akyn pra ele abrir a boca pro juiz. Como assim, Bial? O cachorro tem que abrir a boca pra mostrar a mandíbula pro juiz. Ah, tá. Pra isso basta deixar o bicho irritado de tanto tentar pegar a bola e não conseguir, jamais – até porque está preso à coleira.

Quando o Akyn já estava com meio metro de língua de fora, a Valentina pendurou o número 1 no pescoço e levou o cachorro pro meio do ringue, porque o juiz já estava chamando. A coisa funciona assim, de acordo com o que ela me explicou: alguém leva o cachorro pro ringue, o juiz olha o cachorro parado, examina as medidas, anota aquelas coisas idiotas todas, depois a pessoa dá uma corridinha besta com o cachorro, o juiz examina o cachorro correndo e anota mais umas coisas idiotas, depois outra pessoa que o cachorro conhece fica do lado de fora do ringue tentando chamar a atenção do bicho, pra ele ficar naquela posição de desenho animado, todo esticadinho, alerta. O juiz examina o ângulo das pernas do cachorro, as orelhas, coisa e tal. O cachorro então ganha um pouco mais de coleira e pula na direção da bola – o juiz anota o cachorro em situação de ataque, anota outras baboseiras e depois dá a nota.

Detalhe: o juiz, um siciliano com uma cara de mafioso que dá até medo, é o bambambã de dobermanns no país, e um dos maiores criadores. O cara é supermetido em política, e foi ele quem conseguiu tirar o dobermann da lista das raças consideradas agressivas, aquelas que têm que andar com mordaça à noite. Então tá.

O resultado do Akyn (que ganhou o último lugar entre os 3 competidores, mas era também o mais jovem e mais agitado de todos, tadinho) era tão ridículo que meu cérebro se recusou a decorar tudo, mas lembro muito bem que no papelzinho tinha escrito “olhos redondos demais”, “bom pescoço” (pra mim bom pescoço é todo aquele que segura direito a cabeça, mas enfim), “move-se bem”, “coluna inclinada demais”. É mole? Depois ainda tive que me controlar pra não rir enquanto a Valentina checava a dieta do Akyn: você dá carne moída crua misturada à ração? E o miolo de pão? Ele tem que engordar, Moreno, esfarela umas torradas na comida dele, umas seis por refeição. E o parmesão (obs.: parmesão de verdade custa em torno de DOZE EUROS por quilo.)? E o fio de azeite, você dá?

SOCORRO!

Saímos de lá quase às duas da tarde. Por sorte não nos perdemos, porque achamos tudo horroroso e muito suspeito. TODOS OS CARROS SÃO AMASSADOS. Todos. TO-DOS. Ninguém usa capacete quando anda de lambreta. NINGUÉM. Vimos mil lambretas pequenas, pra uma pessoa só, carregando duas, mais bolsas e caixas. O trânsito é uma loucura, os sinais de trânsito estão ali só pra enfeitar, buzina-se o tempo todo, grita-se em dialeto incompreensível pra nós pobres mortais – eu adoro a língua napolitana, acho uma delícia, mas não entendo bissolutamente nada. Fiquei passada por não ter conseguido falar com a Julie, que certamente teria nos mostrado a parte legal da cidade. Eu consegui até dormir na viagem de volta, apesar do fedor do Akyn, e ainda fomos jantar na Arianna depois.

Vou te dizer: cachorro nota 10 é o meu. É o dela, são os dela, os dele. Essa palhaçada de pedigree, de ração mais cara que camarão, de queijo ralado, de azeite de oliva, de toalhinhas umedecidas com lustra-pêlo, todo esse circo mi sta sui coglioni. O que a falta do que fazer não faz com as pessoas, viu.