Partimos pra Florença depois da dormidinha pós-prandial. Miraculosamente a co-pilota aqui conseguiu guiar o Mirco sem erros até o lungarno (a avenida ao longo do rio Arno) onde paramos o carro com Margareth e mamãe, e novamente conseguimos parar o carro de grátis. Florença tem isso de bom, é uma cidade de dimensões humanas e, não sendo gigantesca, não se leva horas pra atravessá-la. Fomos caminhando pelo lungarno, vendo os africanos que recolhiam suas bolsas Fendi falsas depois de um dia de trabalho, observando os turistas que procuravam seus ônibus coloridos depois de um dia de passeio, invejando os estudantes e velhinhos pedalantes, e viramos na Biblioteca Nazionale. Atravessamos a Piazza Santa Croce e pegamos a Via Verdi. O teatro fica logo ali, na via Ghibellina, e como ainda estava cedo resolvemos comer alguma coisa antes do show. Escolhemos uma micropizzeria de onde víamos o teatro, e nos colocaram em uma micromesa pra dois, espremida entre duas outras micromesas pra dois. À mesa da direita, o clássico casalzinho Mulatinha Brasileira de Cabelinho Esticado e Italiano Branquinho que Fala Português porque o Italiano Dela É Uma Bosta. Ela, grávida, toda boazinha e fofinha, e ele com cara de refinado. Não precisavam ter aberto a boca pra sacar que era brasileira, e ainda adivinhei que era baiana. O aparelho de som tocava uma música lenta, cantada em português por uma voz que não conheço. E até aí tudo bem, estávamos indo pro show da Marisa Monte, normal encontrar brasileiras pelas redondezas. O que eu não esperava era ouvir menções ao português e a outras línguas vindas da mesa à minha esquerda. E antes que encham meu saco me chamando de enxerida, a distância entre as mesas era puramente formal, algo em torno a um dedo, ou seja, eavesdropping era inevitável.
O casal à esquerda era italiano, completamente fora da norma. Ela, acqua e sapone, sem maquiagem, sem cabelo chapinhado tingido de preto graúna, sem cinto com fivelão Dolce e Gabbana, sem salto agulha totalmente inadequado à pavimentação antiga de Florença, sem perfume em concentrações tóxicas – NORMAL. Ele, alto e careca, charmoso, sem sapato pontudo de pele de cobra, sem jeans com a escrita Rich(mond) bordada na bunda, sem camisa rosa justinha com aplique de cristais Swarovski – NORMAL. Ambos com aquele sotaque bolonhês que eu adoro, com aquele S do Billy Idol.
Ouvindo todo esse portuguesismo ao meu redor, começou a me dar aquela comichão puxadora de papo. Mas me comportei e esperei até todo mundo acabar de comer pra começar a bater papo, primeiro com a baianinha calada, que, como eu já imaginava, não tinha absolutamente nada em comum comigo além da cor do passaporte, e depois com a italiana, chamada Marzia, formada em línguas (português, of all things), apaixonada por música brasileira, filha de mãe argentina, simpática, esperta e interessante. O namorado, Marco, não descobrimos o que faz da vida, mas também é simpático. São de Ravenna. A baianinha foi-se embora com o marido pra evitar a muvuca da entrada, mas nós ainda ficamos batendo papo até praticamente a hora do show. No bar ao lado da micropizzeria, um grupo de Piranhas Caça-Gringo daquelas profissionais, de cabelo oxigenado e calça da Gang, falava e ria muito alto, dando uma idéia do que eu estava pra encontrar dentro do teatro. Fomos direto trocar os e-tickets, rigorosamente impressos no lado em branco de fotocópias de exercícios de inglês, e entramos. Tivemos que nos despedir dos meninos (eu implorando pra Marzia não sumir porque preciso de gente normal, por favorrrrrr) porque eles estavam lá atrás e nós mais ou menos na frente, e sentamos.
Eu já conhecia o teatro porque fui ver Momix lá com Riccardo, Valeria e Mikako em 2001, e lembrava que era desconfortável, velho e com uma acústica estranha. Não importa. Sentamos na poltrona apertadíssima e ficamos observando a fauna. Sabe o Congresso Internacional das Empregadinhas? Veja bem, o problema não é ser empregada, que é um trabalho como todos os outros, somente um pouco mais servil e tedioso, mas um trabalho digno e absolutamente normal. O problema é comportar-se como tal. Então tinha um festival de barrigas de fora, grandes e pequenas; camisetas do Brasil, com a bandeira torta ou em cores estranhas; váaaaaaaaarios exemplares de cabelo com Creme para Pentear Sem Enxágüe; muito, muito tecido sintético; muita unha do pé pintada de rosa metálico; muito batom rosa-paquita; e sobretudo muita gente gritando. Também não tenho problemas com homossexuais, mas detesto gente escandalosa, não importa se homem, mulher ou inbetween, e por sorte de bichas desvairadas só vi umas duas. Então fiquei quietinha lá, encolhida na poltrona, meio envergonhada de compartilhar nacionalidade com aqueles selvagens, me abanando com meu livrinho enquanto o Mirco só apontava olha aquela, olha isso, olhaaaaaaaaa.
O show começou com leve atraso, quando as selvagens já estavam gritando Co-me-ça, co-me-ça. Apagam-se as luzes, vemos os músicos que se posicionam, e ela começa a cantar Infinito Particular. Só aquela voz vindo do nada, porque estava tudo escuro ainda; algumas cordas, e aquela voz. A medula espinhal fez brrrrrrrrrrrr. Só quando terminou a música o facho de luz caiu sobre Ela. Sentada na sua plataforma elevada, de saia comprida e botas, tocando violão.
Eu não tenho palavras pro que é essa mulher. Que voz é essaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa?
O violoncelista eu reconheci do concerto que vimos no Municipal ano passado, com a orquestra da Petrobras. Um mulatão com uma cara danada de simpática. Também tinha fagote, violino e outras coisas. Dos CDs novos teve muito pouco, e ela cantou muito dos CDs antigos (só chorei em Dança da Solidão, tá). Conversou com o público em um italiano desnecessário, já que a fauna na platéia era praticamente toda tupiniquim, cantei junto o show inteiro, e fui embora me perguntando por que diabos um povo que é capaz de produzir música assim se veste assim, se comporta assim e vota assim. Caralho (exclamou a princesinha).
A viagem de volta pra casa passou rapidinho.