boas novas

Vanessinha, que trabalhava lá na agência mas saiu porque não é boba, me arranjou um trabalho de intérprete lá pros lados de Spello. Um grupo de americanos que queria visitar um frantoio, o lugar onde fazem azeite. A zona de Spello, Trevi, Foligno faz o melhor azeite do país, porque o terreno é rochoso e as condições de temperatura e umidade são ideais, então melhor que isso, só dois isso. Lá fui eu, depois do almoço, encarar a estrada vazia, pegar a mesma saída da superstrada que pego todo dia pra ir trabalhar, e virar na outra direção, pra ir subindo a colina coberta de oliveiras. Cada casona maravilhosa no caminho, e quando finalmente cheguei no tal lugar, caramba! Anta, não levei a máquina fotográfica. Um bosque delicioso, um casarão antigo lindo, e dois cachorros fofos, Ton Ton, velha e manca, e Teodoro, meio labrador e meio golden feito o leguinho, mas amarelo bem clarinho, e com a mesma cara de mongo. A proprietária é uma mulher simpática mas não muito, e o irmão é o clássico escrotão com voz rouca de fumador e unhas sujas. Estavam cortando fatias de pão pra botar na brasa pra tostar, e me explicaram a história: era um grupo de americanos, velhos, da Filadélfia, que deveriam ter parado pra comer alguma coisa na estrada ou no hotel, mas como o vôo atrasou saindo dos EUA, vieram diretamente do aeroporto de Roma até Spello. Estavam todos morrendo de fome, lógico, e o motorista ligou do meio do caminho avisando pro pessoal botar mais água no feijão (no caso, lentilha) porque senão a velharia cairia dura de fome. Então quando cheguei estavam todos meio ensandecidos cortando ensacados e queijo e pão e abrindo garrafas de vinho (Sagrantino).

Finalmente o ônibus chegou, e desce a velhacaria. Eu me dou bem com velhos, desde os tempos do hospital. Gosto de ouvi-los e troco altas idéias. Não foi diferente dessa vez: enquanto eles almoçavam bruschetta aglio e olio, capocollo e prosciutto crudo fatti in casa, queijo de leite de ovelha feito em casa, ensopadinho de javali, lentilhas e depois torta de maçã com geléia de amora, me faziam mil perguntas. Quem me conhece sabe que quando eu ligo o explicador, sai de baixo, ainda mais se o interlocutor dá sinais de interesse, então já viu: lá fui eu explicar como é feito o presunto e o que é o capocollo (eu sei porque já cansei de ver o tio do Mirco fazendo), de onde vêm essas lentilhas tão pequeninhas daqui (de Castelluccio di Norcia), que tem javali no bosque no cucuruto do monte Subasio, que são bichos danados e que se você encontrar com um enquanto estiver fazendo jogging no parque é melhor botar o rabo entre as pernas e sair correndo, que o Sagrantino só pode ser plantado na região em torno de Montefalco, porque é uma variedade de uva estreitamente ligada ao território geográfico (isso eu lembro porque explicava pros clientes do Fabrizio o Louco na loja, e porque toda hora falam disso na televisão), e por aí vai. Acabaram se tocando que tinha alguma coisa errada, que eu não podia ser italiana porque italiano não fala inglês, e ao mesmo tempo era muito estranho eu conhecer o processo de fabricação do capocollo com tantos detalhes, e quando falei que era brasileira, os velhinhos todos com as mãos nas bochechas, ooooooooooh! Que coisa! Você fala que nem eu! (e eu pensando, sai pra lá, porque não gosto do sotaque da Filadélfia). Pronto, começaram a chover mais perguntas, dessa vez pessoais, como você veio parar aqui?, eles são meio mafiosos mesmo?, é verdade que só pensam em comer?, é verdade que a religiosidade dos italianos é da boca pra fora?, você viu Under the Tuscan Sun?, seu namorado é parecido com o motorista? e coisa e tal.

Acabou que o que era uma hora de trabalho virou duas, porque depois do longo almoço ainda fomos ver os tanques de vinho (ainda não está na época da colheita das azeitonas, que começa no fim de outubro, e o frantoio estava fechado). Aprendi um monte de coisas sobre azeite que eu não sabia, os velhinhos faziam aaaaaaah, oooooooh, e no final ainda dei uma mão pro pessoal comprar azeite e vinho na lojinha. Não perdi a prática que ganhei com o Fabrizio, porque os velhinhos se entupiram de vinho e azeite. A dona do lugar acabou me dando de presente uma garrafinha do azeite, que é uma delícia, e uma garrafa de Sagrantino, que pra mim dá de mil a zero no Brunello di Montalcino. Quando subi no ônibus pra me despedir da galera e dar meu cartão pro guia, que me pediu, foi aquele auê: Ciau, Letitzia! Aren’t you coming with us to Sportoletti? No, darlings, I’m not, but have fun anyway and careful with all that wine!

Eu não sou tímida. Já fui, não sou mais. De qualquer forma nunca tive problemas pra falar em público, desde que eu saiba do que estou falando, lógico. Mesmo assim às vezes me espanto com a facilidade com que me transformo da chata de galochas reclamona e irritável que sou normalmente em um ser performático digno do significado do meu nome. Quando um dos velhos, que era um pouco menos velho, veio me dizer que eu era realmente uma letícia (muitos deles tinham estudado um pouco de italiano, e pelo menos sabiam perguntar onde era o banheiro), fiquei pensando, filhinho, vê-se que você não me conhece… A vida é uma coisa engraçada mesmo.

De qualquer maneira, 60 paus, uma garrafa de azeite e uma de ótimo vinho por 2 horas de trabalho divertido não é nada desagradável, sabe. E se vierem outras coisas assim e eu vir que consigo criar um certo nível constante de trabalho, adiós maluca sem pré-molares! Simona está se empenhando em encontrar um bom trabalho pra mim antes do fim de novembro, quando termina o período de prova do meu contrato, e durante o qual posso ser mandada embora ou ir-me embora eu, sem dar motivo nem aviso prévio. Imaginem o susto da criança se eu me despeço numa sexta dizendo olha só, segunda não volto, estou pedindo demissão… 12 turmas ficariam sem professor, e a agência sem tradutora The Flash. Que sonho…