Era uma vez um artroscopia

Então o Mirco tinha um pedaço de menisco supostamente solto que tinha que ser removido. O ortopedista opera regularmente no hospital de Terni, a outra província da Umbria, a uns 70 km daqui. Então lá fomos nós sair de casa cedo na quinta-feira, pra chegar cedo a Terni. Chovia e fazia frio e o Mirco, além de estar morrendo de fome por estar em jejum, estava muito nervoso.

O hospital é grande, mas, como tudo na Itália, incrivelmente desorganizado. Pergunto na portaria qual o andar da clínica ortopédica: quarto andar. Subimos. No quarto andar, nenhum tipo de recepção, só alguns cartazes escritos à mão indicando direções opostas àquelas indicadas pelas placas oficiais, em letras brancas sobre fundo azul. Fomos parar na parte de Day Hospital Ortopédico, onde esperamos meia hora sem ver ninguém até que eu cacei uma enfermeira que passava pra perguntar se era ali mesmo que deveríamos estar. Não, querida, vocês têm que ir lá pro outro lado, no fim do corredor, na enfermaria de Ortopedia (onde não havia ninguém antes, e cujas portas estavam fechadas, e cujas luzes estavam apagadas). Lá vamos nós. Tocamos a campainha, abrem a porta, vamos lá falar com a enfermeira-chefona, que nos dá uma bronca por não termos chegado antes. Levam o Mirco pra enfermaria, onde colhem sangue pros exames pré-operatórios e rodam o ECG. Inicialmente me mandam sair, enquanto os médicos fazem o round, mas quando digo que sou médica alguém me arruma um jaleco pra eu poder ficar lá dentro. Os outros dois pacientes do quarto são um senhor que fez uma hilária cara de incredulidade quando lhe foi comunicado que sua operação, de coluna, vai ser feita na segunda-feira depois da Páscoa (aqui eles comemoram a Pasquetta, na segunda-feira, e a sexta-feira santa não é feriado como no Brasil), e um quarentão simpático com um descolamento do menisco direito.

As horas passam. O senhor almoça; Mirco e Claudio, o quarentão, são mantidos em jejum. Não vem ninguém dizer nada, perguntar nada, explicar nada. De vez em quando vou lá fora no corredor perguntar a alguma enfermeira se há alguma previsão de horário pra cirurgia. Ninguém sabe nada. Não estou nervosa porque sei que hospital é confuso mesmo, imprevistos acontecem e horários são difíceis de ser respeitados. Mas sempre achei uma profunda falta de respeito essa mania de achar que o paciente tem mais é que esperar quietinho. Poxa, neguinho nervosão, frágil, sentindo dor, preocupado, e tem que esperar HORAS sem saber o que está acontecendo, sem saber direito o que vão lhe fazer? Eu já levei a família inteira do Mirco ao médico aqui na Itália e sempre fiquei impressionada com a distância, o abismo que existe entre médico e paciente. A começar pela maluquice dos horários das consultas: não existe horário marcado, o médico atende das cinco às oito? Você vai ao consultório dentro dessa faixa horária, e vai ser atendido por ordem de chegada, o que significa zilhões de pessoas amontoadas na sala de espera. E como a maioria dos médicos atende em consultórios divididos com outros médicos ou dentistas, você nunca sabe se toda aquela gente está ali esperando o seu médico ou outra coisa. Então cada pessoa que chega, além do buongiorno ou do buonasera obrigatório, pergunta sempre “Quem é o último da fila pro Dr. Fulano?”. Uma coisa muito pouco prática. Às vezes realmente acho que estou morando em Coimbra.

Mas então, voltemos à enfermaria. As horas passavam. Mirco dormiu; eu desci pra comer uma torta al testo com presunto e queijo na cantina do primeiro subsolo. Lá pras duas da tarde vêm recolher Mirco e Claudio pra levar pra sala de cirurgia. Lá vou eu atrás; boto o pijaminha verde do centro cirúrgico, que eu não vestia há anos, a maldita touca que nunca consegue cobrir todo o meu cabelo, os sapatinhos, a máscara que um dia usei sem nem prestar atenção mas que dessa vez ficou incomodando o nariz, como na primeira vez.

Mirco está nervosíssimo. Como eu, ele fica irritado se não entende direito o que está acontecendo, principalmente se é alguma coisa que está acontecendo diretamente com ele fisicamente. Eu tenho essa vantagem de ser médica que ele não tem: pelo menos sou capaz de entender com detalhes o que está rolando e de saber mais ou menos o que esperar; ele não tem idéia e ri de nervoso o tempo todo. Pra piorar, ele é naturalmente desconfiado, o que não é ajudado nem um pouco pelas frequentes histórias de erro médico que se lêem nos jornais; então sua resposta a todo mundo que vem perguntar quem ele é (toda hora vinha uma enfermeira diferente fazer algum procedimento pré-anestésico ou pré-operatório) é Mirco Balducci, joelho esquerdo. Assim, só pra reduzir as chances de ser operado erradamente no joelho direito. Resolvem dar um tranquilizante, e ele começa a falar coisas sem sentido e a ter dificuldade de articular palavras. Fazem a anestesia, um bloqueio da perna toda através de injeções na região inguinal e no meio do glúteo, e vamos pra sala de cirurgia.

Posicionados todos os campos cirúrgicos, pincelam a perna com aquele desinfetante marrom-amarelado que já cansamos de ver em filmes e Globo Repórter, prepara-se o equipamento de artroscopia e começa o procedimento. Não vou ficar aqui explicando tudo porque não interessa. O que interessa é que eu fiquei horrorizada, apesar de ter sido uma coisa muito simples. E pensar que um dia eu já fui capaz de ver um procedimento desses e pensar nossa, que lindo, que interessante! Pensar que um dia eu já fui capaz de futucar dentro de alguém e achar isso a coisa mais natural do mundo! Onde é que eu estava com a cabeça, alguém me diz, por favor? O ortopedista futucava, puxava, cortava, mostrava, olha lá, não é o menisco, o menisco está firme (ele puxa o menisco com a pinça, várias vezes, com força), é um ligamento mucoso congênito que inflamou e agora está retesando tudo, tá vendo?, vou cortar (e corta), e eu lá, chocadaça, sem saber se olhava pra tela ou pro joelho amarelo do Mirco, que estava tão nervoso que esquecia de respirar e chorava sem parar. Fui ficando nervosa porque ele não respondia quando perguntávamos se estava sentindo dor. Mais tarde ele contou que depois do tranquilizante tudo ficou, obviamente, muito nebuloso e ele se lembrava só de algumas palavras, do médico batendo no rosto dele perguntando se tava sentindo alguma coisa, da enfermeira que marcou os pontos de anestesia com pilot, do campo verde que impedia que ele visse a tela (se tivesse visto alguma coisa ele teria morrido de nervoso, com certeza), dos enfermeiros pincelando a perna, das luzes do corredor da sala de cirurgia enquanto ele esperava um outro enfermeiro que o levasse de volta ao quarto.

Quando acabou, a sensação de alívio que eu tive foi uma das coisas mais significativas que eu já senti na minha vida. Não pertenço mais àquele mundo. Acho que jamais pertenci; foi tudo sempre uma ilusão idiota. Sempre digo que não me arrependo de ter estudado Medicina; aprendi coisas interessantíssimas, matei toda a minha curiosidade sobre o corpo humano, conheci pessoas ótimas, dei muita risada, aprendi a ouvir as pessoas, a aprender com os outros, a entender a dor alheia. Mas não sou médica. Nunca fui. E só fui entender isso anteontem.

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Como ele teve que dormir no hospital, voltei pra casa sozinha. Chovia muito e o trânsito estava horrível. Quando consegui chegar na estrada, começou o calvário. Sou muito fotofóbica e dirigir à noite na estrada é muito desconfortável. Na cidade, que bem ou mal é bem iluminada, não tem problema, mas no escuro da estrada qualquer luz de farol, de olho-de-gato iluminado, de outdoor na beira da estrada, me dá um lampejo nos olhos e me deixa momentaneamente cega. Depois de meia hora eu não entendia mais as distâncias, a terceira dimensão; perdi a noção do ponto de freagem nas curvas; não conseguia ler as placas; não conseguia achar o timing pra ultrapassar porque olhando pelo retrovisor não conseguia entender se o carro atrás de mim estava longe ou perto. Cheguei em casa cambaleando de cansaço e com a cabeça explodindo de dor. Fiz um risoto de pacote e fui direto dormir.

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Ontem o dia estava lindo. Saí de casa cedo pra ir a Perugia pegar um cheque por um trabalho que fiz ano passado, e enquanto estava lá, perdida (eu sempre me perco em Perugia), Mirco liga dizendo que já estava pronto pra ir embora. Faço o que tenho que fazer e volto pra estrada, pegando a direção de Terni. O dia continua lindo. Boto Skank no CD e canto A Cerca a plenos pulmões. A paisagem é divina, divina; as cidadezinhas no alto das colinas vão passando, muito claras contra o céu azul; o verde obsceno dos campos chega a ofuscar; castelinhos, casarões e mosteiros abandonados me enchem de curiosidade. A Umbria é linda, linda, linda. Ali na altura de Todi a paisagem é particularmente deslumbrante. Alguém vem me visitar, por favor, que eu preciso mostrar isso pros outros!

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Semana que vem começa o curso de agente de seguros, lá em Terni mesmo. É uma cidade industrial, principalmente siderúrgica, muito, muito feia. Há muitas pedreiras também, então as colinas em torno são todas “mordidas”, a feia pedra branca exposta ao sol, em contraste com os escuros ciprestes e pinheiros. Já estou prevendo uma semana chatérrima.

E agora dá licença que meu paciente precisa de uma injeção de heparina.