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Sábado aproveitei a tarde de sol pra dar banho nos cachorros. O primeiro seria o Legolas, assanhadíssimo com a bolinha nova que minha mãe tinha mandado pela Marcia e eu sempre esquecia de levar pra ele. Normalmente ele vem quando eu chamo e fica quietinho enquanto eu o lavo, com aquela cara de sofredor resignado, mas dessa vez ele só queria brincar com o raio da bola e não parou quieto um segundo. Terminado o banho, fui pro campo jogar a bolinha pra ele correr e secar. Ele insistia em ficar passeando no meio do mato, pulando feito um cabrito pra lá e pra cá. Quando me abaixei pra pegar a bolinha (coisa que eu normalmente evito de fazer porque conheço bem o meu cachorro; me abaixo pouco e mantenho o rosto levantado, pra poder saber onde o Legolas está. Técnica aprendida depois de várias cabeçadas no queixo), que eu não conseguia ver exatamente por estar no meio do mato, ele levantou de repente e deu um pulo, pronto pra sair correndo e pegar a bolinha que eu ainda nem tinha jogado. Ô cachorro bobo! E foi nesse pulo que ele me deu a cabeçada. Imaginem um cachorro cabeça-dura, de mais ou menos 40 quilos, batendo com a cabeça no seu zigomático direito. Sacaram? Vi estrelinhas e fiquei parada rodando no meio do campo feito uma bêbada até alguém perceber que não, eu não estava mais brincando com o Leguinho, que a essa altura já tinha largado a bola e tava roendo um galho, amarradão. Senti logo a maçã do rosto inchando. E toma gelo. E como doía.

Passei o jantar todo (pizza feita em casa, salame feito em casa, pão feito pelo primo padeiro, vinho feito em casa, presunto feito em casa, salame de avestruz feito em casa, tomates da horta da tia do Mirco) com o gelo no rosto, mas mesmo assim ficou inchado, e super vermelho. Resolvemos dar um pulo no hospital em Perugia pra fazer um raio-X e ver se tinha alguma fratura. A médica de plantão disse que semana passada chegou um senhor com o punho quebrado. O labrador dele foi meio efusivo demais ao cumprimentá-lo depois de um longo dia de trabalho, o cara caiu e apoiou mal a mão. Show.

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Eu nunca tinha ido ao hospital aqui, a não ser pra acompanhar diversos familiares do Mirco. E quando fui ao pronto-socorro com o Ettore foi no outro hospital, que normalmente é mais tranquilo, o Monteluce. Dessa vez fomos ao Silvestrini, que concentra todo o movimento da província de Perugia, e a fila era enorme. Velhinhas bigodudas com pernas inchadas enfiadas em velhas Birkenstock, velhinhos de boina e óculos fundo de garrafa, um africano azul de tão preto numa cadeira de rodas, aparentemente com o tornozelo torcido, uma senhora com um polegar sangrando. Mirco, completamente avesso ao ambiente hospitalar, ainda mais depois da traumática operação do joelho, tava pálido feito vela. E eu só lembrando das histórias bizarras dos plantões de domingo/noite no Antonio Pedro, há anos-luz atrás. Engraçado que eu não sinto a menorrrrrrrrrrr nostalgia do ambiente hospitalar em si, mas sim da sensação que eu um dia já tive de estar à vontade ali dentro, de achar tudo natural, de pensar, de verdade, que o meu lugar era ali. Que boba que eu era.

Aqui neguinho quase não usa jaleco. Usam-se os pijaminhas verdes da cirurgia, ou então o uniforme do hospital – no caso do PS, calças laranja-gari (mesmo pra quem não trabalha de paramédico, fora, em ambulância) e camisa polo branca com um bordado no peito: o mapa da Umbria em verde, o número de emêrgencia médica, 118, em vermelho, e embaixo a inscrição Provincia di Perugia.

A fila é aquela esculhambação italiana de sempre: ninguém sabe quem chegou primeiro, quem é paciente e quem é acompanhante, o que tem que fazer, nada. Na porta, um aviso em Times New Roman:

O PRONTO-SOCORRO NÃO É AMBULATÓRIO PSICOSSOMÁTICO NEM RESOLVE PROBLEMAS SOCIAIS.

O PRONTO-SOCORRO NÃO É PRA QUEM PRECISA DE CONSULTA COM ESPECIALISTA, PEGAR RECEITA DE MEDICAMENTOS DE USO CRÔNICO, ETC.

O PRONTO-SOCORRO NÃO É PRA QUEM PRECISA SOMENTE DE APLICAÇÃO DE MEDICAMENTOS ENDOVENOSOS, NEBULIZAÇÃO, ETC.

Tem coisas que não mudam, não interessa a latitude…

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Uma paramédica descabelada me chama pra uma das salinhas. Dou um dos sobrenomes, ela insere no computador, nada. Eu tenho outros 4 sobrenomes, minha filha, vamos ver com qual deles eu fui inserida: Vieira. Pronto, lá vem toda a minha ficha técnica: onde eu moro, codice fiscale (como o nosso CPF), número da inscrição no sistema de saúde. Ela chama a médica sorridente, que vem com aquelas calças cor de abóbora horrendas me atender. O requerimento da radiografia sai da impressora, ela assina e me manda pra uma sala do outro lado do corredor, “depois dos elevadores, à esquerda”. Cartazes escritos à mão indicam o caminho da Radiologia. Uma enfermeira simpática bate a chapa (coisa mais P.I.M.B.A. esse bate a chapa…), me dá o laudo e me manda voltar pra médica. A essa altura o Mirco já viu uns dois acidentados chegarem de ambulância e está verde de nervoso. Espero mais um pouco, um outro paramédico antipático pergunta quem tem que mostrar algum exame, lá vou eu, a médica lê o laudo, olha a radiografia, não fica satisfeita, vai pedir uma opinião a alguém lá fora, volta, me diz que tá tudo bem, digita “crioterapia”, a impressora cospe outra página, volto pra casa com uma cópia do laudo radiográfico e a conduta a seguir.