Acordei cedo, fiz as malas, tirei os lençóis da cama, e tava quietinha lendo quando toca o celular do Leo. Era a Ruivona, mas como ele, além de não entender nada de Inglês, ainda tava dormindo, não entendeu o que ela queria e achou que era urgente. Veio me chamar e saímos completamente esbaforidos. Quando eu reclamei que não tinha dado tempo nem de escovar os dentes (na verdade foi um verdão que eu joguei, porque ele não escovou os dentes NENHUMA vez durante a viagem inteira), ele começou a discutir dizendo que eu era chata, que tinha complexo de… Não terminou a frase, porque batemos num carro que vinha vindo da direção de S. Gimignano. Ele tinha olhado pra direita e não vinha ninguém, mas esqueceu de olhar pra esquerda e saiu meio desembestado. Sorte que a mulher, que entrou em pânico e começou a chorar e tremer, vinha devagar, até porque a estrada é cheia de curvas e não dá pra ir a mais de 50 km/h. Eu bati o joelho no painel, mas ficou só meio vermelho. As topadas que eu dou por aí doem muito mais. Atrás da mulher vinha um furgão da polícia penitenciária (tem um presídio enorme em S. Gimignano); o policial parou pra ajudar e acabou que era um amigo da mulher, ligou pro marido pra contar o acontecido e coisa e tal.
E aqui vou ser muito honesta: ao contrário do Leo, eu vi a mulher vindo da esquerda. Eu vi que íamos bater, vi que não seria nada sério porque ela vinha muuuuito devagar. Teria dado tempo de avisar ao Leo pra pisar no freio. Mas eu não avisei, voluntariamente. Achei que ele merecia essa. E não me arrependo.
Um carro que veio depois e tinha que subir pra Racciano parou ali, porque o carro do Leo tava bloqueando a estrada. Pedi uma carona e fui com ele até a villa ver o que a Ruivona queria. No final das contas nem tinha sido a Ruivona, mas a Filipinona, que tinha mandado uma calça branca da Banana Republic pra lavar a seco no hotel e a calça veio encardida. Peguei a Ulysse e fui até o hotel ver o que tinha acontecido. A menina da recepção, com quem eu já tinha batido papo outras vezes quando fui encontrar as meninas lá, explicou que o tecido era misto, com três tipos de fibras, entre sintéticas e naturais, e tecidos assim devem ser lavados à mão, e não a seco, como estava escrito na etiqueta, senão absorvem os produtos químicos e acabam manchando. Ela já tinha trabalhado em lavanderia e disse que já tinha visto acontecer a mesma coisa antes. No final das contas não teve jeito: não quiseram dar o dinheiro da garota de volta nem a pau. Também nem me esforcei muito porque não dava tempo; tinha que voltar logo pra villa pra ajudar a botar as malas no ônibus e nos carros, pra ir a Porto Ercole. Ainda passei em Racciano pra pegar as minhas malas. Leo já tava indo pra villa com Michele, que tinha ficado de passar lá pra me pegar.
Todo mundo e todas as malas no ônibus, lá fomos nós pra costa da Maremma, o pedaço da Toscana onde fica Porto Ercole. Fui dirigindo a Ulysse, Leo dirigindo a minivan Ford, e as babás dirigindo o Astra delas. Paramos pra almoçar numa trattoria de beira de estrada. As meninas me convidaram pra almoçar na mesa delas no terraço; aceitei, enquanto o Leo e o Michele almoçaram dentro do restaurante. Comi spaghetti com mariscos mas não tava lá essas coisas. As crianças comeram, pra variar, macarrão com manteiga, pra tristeza do garçom e do proprietário. Lá pelas 4 da tarde chegamos a Porto Ercole. Largamos as coisas na casa, que é maravilhosa e tem vista pro famoso Isolotto (abaixo), mas tem uma decoração moderna que eu detesto, e fomos inspecionar a praia.
Aqui, uma nova mentira: tinham dito que havia uma praia particular pros Salames, mas a praia mais próxima ficava a dez minutos de caminhada obrigatória, e de particular não tinha nada. Além disso era minúscula, de pedras e não de areia, e cheia de mulher fazendo topless. Os Salames não gostaram e ficamos de achar outra praia pra eles mais tarde. Leo voltou pra casa dele pra levar o carro pro mecânico e me deixou com as babás, sem lugar pra dormir. As babás ficaram num resort ma-ra-vi-lho-so, Il Pellicano, e cismaram que eu tinha que jantar no restaurante do hotel com elas e depois me levariam ao centro da cidade, onde o Leo finalmente arrumou um quarto pra mim, na casa de uma senhora que aluga quartos pra turistas. Eu tava irritada e não tava com a menor fome, mas o maître encheu tanto o saco que acabei jantando com elas. O lugar é chiquérrimo, janta-se de frente pro mar azul, os mosquitos jantam você, a comida é carérrima, e nós três todas molambas e suadas destoando completamente do resto dos comensais, mas foda-se. O menu:
Não pedimos antipasto, mas eles trouxeram um mini-antipasto assim mesmo. Tratava-se de um creme de cenoura delicioso no fundo de um prato lindo, com uma bolinha minúscula de ricota com pistache por cima. Delicadíssimo e gostosíssimo. Pãezinhos quentes, recém-assados, com azeite siciliano que vinha num mini-bule de porcelana branca.
De primo eu e a Filipinona pedimos tagliolini (tipo talharim) feitos à mão com molho de lagosta. A massa veio enroladinha em forma de ninho, pousado sobre um creme de ervilhas deeeeeeeeelicioooooooooooso. Pousado no prato, um enfeite de nero di seppia (a tinta preta das lulas), uma delícia. Ruivona foi de tagliolini com molho de lentilhas e tomilho, que tavam com uma cara ótima também.
De secondo fui de sogliola (solha, um peixe), um pedaço infelizmente minúsculo, grelhada com ervas numa caminha de batatas assadas cortadas em cubinhos minúsculos. As babás foram, claro, de frango. Que obsessão essa dos americanos com frango, putz! Mas o golpe mais doloroso pro maître, que era viado afetado, foi a Coca-cola que elas pediram. Lagosta com Coca-cola!!! O homem quase chorou de tristeza. Eu fui mais educada e pedi um copo de vinho branco do Friuli, divino.
Resolvemos pedir a sobremesa. Eu e Filipinona pedimos uma chamada Cioccolato, cuja foto vocês podem ver abaixo (aquela é obviamente a Ruivona, comendo sua sobremesa de abacaxi caramelado). O Cioccolato era um cilindro de chocolate amargo com sementes de gergelim, e dentro um creme quente de chocolate. No outro canto do prato, uma colherada de mousse de chocolate. E uma espiral de chocolate meio-amargo no meio do prato, pra enfeitar (e pra comer também, que eu não desperdiço nada quando se trata de cacau).
Mas antes da sobremesa veio a pré-sobremesa: uma bolinha de mousse de côco num canto, uma colherada de sorvete de maracujá com abacaxi no outro, sobre uma caminha de côco caramelado. Um fio de caramelo ligando as duas coisas.
E depois teve a pós-sobremesa: mini-pães de especiarias, minimicrotortas de limão com uma amora em cima, mini-enroladinhos de canela. Nem sei quanto custou essa brincadeira toda; quem pagou foi a Filipinona, com o cartão de crédito do Salame.
A essa altura elas não queriam que eu fosse embora. Fomos à recepção pedir pra botar outra cama no quarto delas, mas o cara falou que já tava tarde e não dava mais. Resolvemos que eu ia dormir lá assim mesmo, nem que fosse escondida, mas antes queriam ir nadar na piscina. Eu não tinha trazido roupa de banho, até porque não tenho, mas a Filipinona me emprestou shorts e uma camisetinha de lycra e lá fomos nós nadar na piscina térmica de água do mar. Ficamos nadando sob as estrelas e batendo papo até meia-noite. Foi uma das coisas mais legais que já me aconteceram na vida, de verdade. Fazia mais ou menos três anos que eu não nadava. Eu adoro piscina, mas não gosto da idéia de ter que ir a uma piscina pública pra nadar, que é o único jeito aqui onde eu moro. Essa piscina do hotel era linda, a água tava morninha apesar do ar frio fora, tava tudo escuro em volta mas escutávamos a música do pianista do restaurante, e as meninas são muito legais e divertidas (além de terem me contado várias fofocas úteis, que guardei pra mim). Só fomos embora porque começou a esfriar. Subimos, enroladas em roupões, tomamos banho, improvisei uma cama com as almofadas das poltronas, ligamos o ar condicionado e fomos dormir.