Começou a animação pra Copa. Eu ADORO Copa, Olimpíadas de qualquer tipo, competições internacionais em geral. Mas não adoro esses eventos porque gosto de torcer pelo Brasil; nunca fui fanática por coisa nenhuma a não ser por leitura, e meu patriotismo é só aquele mínimo com o qual todos nascemos. Não tenho aquela ânsia de defender o verde-e-amarelo, não fico desesperada com partidas perdidas. Gosto porque os jogos são sempre interessantes e bonitos, porque as bandeiras são coloridas, porque os nomes dos jogadores são bizarros, porque rola um espírito de competição que deve ter seu lado ambíguo pra quem joga, já que todos os jogadores se conhecem e freqüentemente jogam no mesmo time pela maior parte do ano. Gosto e pronto. Mas na verdade quando assisto a uma partida - e na Copa eu assisto a QUALQUER partida com a mesma emoção - fico sempre triste por quem perde (desde que não seja a Argentina, claro) e feliz por quem ganha.
Não sinto falta de torcer "entre brasileiros". Acho que me divertiria do mesmo jeito entre meus amigos italianos. Sinto falta é daquela maluquice coletiva que rola no Brasil, do asfalto pintado e das bandeirinhas que atravessam as ruas. Aqui futebol é coisa muito, muito séria mesmo, mas eles não são chegados a essas farofadas, vocês sabem. Então nem parece que tá rolando nada. Você sabe que tá rolando TUDO, mas não aparece nada na superfície, sacam. É muito bizarro.
E depois de uma manhã rodando em lojas de móveis e uma tarde trabalhando feito doida, fomos jantar na casa da Arianna. Só que a Stefania tinha chegado da Holanda com o Rob, o pai do Rob e a namorada do pai do Rob. Vocês não podem imaginar a quantidade de risadas que demos, e a dor de cabeça que nos ficou depois de uma soirée falada em 4 línguas diferentes – cinco, se contarmos o dialeto incompreensível do Ettore. Os pais do Rob são fofinhos, branquinhos, holandesinhos, cheirosinhos, arrumadinhos, e falam aquela língua estranha que ninguém entende. Gostaram de tudo, e olha que a comida nem tava essas coisas. Até fava crua com queijo pecorino eles comeram, porque o tio do Mirco insistiu. Nada de cachorros na sala porque a namorada tem medo; Leguinho e Demo ficaram lá fora chamando a gente de vez em quando. Mas foi um jantar muito divertido :)
O almoço de primeiro de maio normalmente se faz em restaurante. O patrão paga e come junto com os funcionários. No ano passado resolvemos fazer na casa da Arianna, porque dinheiro não dá em árvores, e esse ano repetimos a experiência.
Quem se ocupou da cozinha foi o tio Guerriero, claro, o Homem dos Dedos Gigantescos, porque quando o assunto é cozinha é ele quem manda e fim de papo.
Ótimo, porque vai cozinhar bem assim na casa do chapéu. O menu:
Coratella di agnello con torta al testo – uma espécie de ensopadinho medonho com os órgãos internos do cordeiro. Tradicionalmente servido com a famosa torta al testo, que compramos no Leo, um velho que só faz isso na vida há anos, em Tordandrea.
Fischioni al sugo d'oca – fischioni è um outro nome pra tortiglioni, uma massa curta que eu nunca compro porque detesto, e acho que só combina com o molho de ganso mesmo. Apesar de menos temperado do que eu normalmente gosto, estava MUITO bom. Mas a morte do molho de ganso é, pra mim, o gnocco. Gnocchetti al sugo d'oca è assim qualquer coisa.
Agnello arrosto e cappone arrosto – cordeiro e galo castrado, assados no forno a lenha. Nunca cozinham porco pro almoço de primeiro de maio porque tem sempre algum muçulmano na "equipe".
Patate arrosto e insalata – batatas no forno e salada fresca, da horta.
E, de sobremesa, o tiramisù, que o Guerriero levou horas batendo pra não ficar com gosto de ovo.
Os cachorros fizeram a festa com o tanto de ossos que ganharam e aquele monte de gente andando pra lá e pra cá. Brincaram tanto que às sete da noite estavam todos estendidos pelo chão, destruídos, massa falida total. Gatos idem.
Da esquerda pra direita: Maurizio, o Hominho, de Brufa; Stefano, gigantesco, de Cannara, com a mão apoiada no Mustafa, o Marroquino dos Dentes Marrons; Marco, de Bastia; Yavo, maluco da Costa do Marfim, que trabalha só ocasionalmente na oficina porque não sabe fazer nada (não sabe nem de que planeta veio... Mas é uma figuraça e é sempre a alegria da festa, apesar de ninguém entender o que ele diz); Ettore, Mika (irmão do Dejan, o sérvio que está em pé) e Mirco. E, claro, Leguinho e Demo. Faltou o Hussei, que apesar do nome é da Croácia, e o Rinat, que é do Usbequistão. E Jorge, equatoriano, que está de licença médica e ninguém sabe por quê.
Pra variar, jantamos fora. Dessa vez com Mario e Maria Rita, que já estavam saindo pra jantar com outros amigos e nos incluíram no programa. Fomos à Locanda dei Golosi, lá na casa do chapéu, onde fomos com Spartaco e cia há pouco tempo. O mesmo garçom fedorento, socorro! Mas comemos bem, e batemos altos papos.
Nessas horas é que eu vejo como a vida é estranha. Meu namorado é lanterneiro, Mario tem uma loja de flores e a mulher, siciliana, é ex-cabeleireira e ex-caixa da Metro. O outro casal era uma advogada grávida e um contador. O outro casal é uma caixa da Coop e um técnico de informática. Variedade é isso. Lógico que não rola discutir cinema ou literatura com essa gente, mas eu acabo sempre dando risada e aprendendo alguma coisa. De vez em quando é até bom socializar, sabe...
Acabamos de chegar do show do Califano, no Country, a boate in de Bastia. Saímos de casa achando que iria ser a maior roubada, mas até que não. Marco e Michela nos convenceram a pagar 25 paus por cabeça, jantar e show incluídos. Eu não conheço o Califano, não sei nada dele, não gosto de música italiana e odeio boate, mas juro que me diverti.
O Country é uma boate estranha. Como a maioria das discotecas daqui, eles também oferecem jantar (vocês me digam por favor qual atividade social italiana não envolve comida). Foi a primeira vez que jantei em discoteca, e o menu não era de todo ruim: muitos antipasti (mil folhas de verdura e queijo, prosciutto crudo, saladinha de camarão com feijão branco), três mini-porções de macarrão (três receitas diferentes: minignocchi com lingüiça e molho branco, um cappellettão com recheio de alcachofra, e ravioli com recheio de ricota e espinafre), um secondo (duas fatias de ótima carne de panela) e um contorno (tortinha de verdura). Ficou faltando só a sobremesa, até porque o show começou tardão e praticamente neguinho engoliu a carne pra poder atravessar a pista de dança entupida e ficar mais perto do Califano.
A história desse cara parece que é a seguinte: cantor de um sucesso só, que aliás eu não conheço, ele também é um famoso compositor. As letras não são ruins, e a voz, apesar da idade, das drogas e da gordura, ainda é firme. A ponta do nariz quase chega na boca; presumo que a cocaína tenha destruído todo o tecido cartilaginoso de sustentação do pobre apêndice respirador. Óculos escuros, copinho de Campari sempre à mão, camisa branca de linho, e uma certa dificuldade pra respirar. Alternava um golinho de Campari com uma sprayzada da bombinha pra asma. Eu não conhecia NENHUMA das músicas, mas o grupo que o acompanhava tocava bem direitinho, e reconheci um ritmozinho de bossa nova em muitas das canções. O pessoal, lógico, conhecia tudo, e cantava junto o tempo todo. Ele parecia feliz, apesar de estar tocando numa boate ridícula de uma cidadezinha ridícula do interior do Zaire; o show foi relativamente curto, começou logo depois uma seleção muito boa de músicas mas o DJ falava o tempo todo por cima, me irritei e fomos embora até que meio cedo. Foi muito menos pior do que eu esperava.
E ontem teve outro jantar maneiro. Dessa vez fui sozinha, com o pessoal do curso de narrativa que fiz em Perugia em novembro passado. A mailing list do curso é muito movimentada, e o pessoal que mora aqui no interior do Zaire resolveu combinar de se encontrar de pessoa. Aqui da vallata tinha eu e a Laura, que é napolitana mas mora em Tordandrea; tinha Arturo, outro napolitano, e Maurizio, ambos de Gubbio, e Matteo e Livia, que vieram de Veneza. Mais tarde apareceu a outra Laura, que é de Rovigo mas mora em Perugia e é superfã da Newlands, além de ser um amor de pessoa, e a louca ensandecida da Monique, belga naturalizada italiana, amiga do Arturo. Jantamos no Dal Mi' Cocco, trattoria tradicional de Perugia, que serve pasta fatta in casa, tem cardápio (hilário) escrito em dialeto perugino e coisa e tal. Como eu tinha almoçado três pedaços gigantes de torta al testo com duas lingüiças e mais tanto de queijo e lombinho defumado na casa da mãe da Michela, não estava com a mínima fome e nem curti tanto assim o jantar. Mas a serata foi muito legal, respiramos cultura (hohoho) e sobretudo rimos muito. Como é bom conversar com gente que gosta de ler :))))) O jantar bizarro teve direito inclusive a garçom intelectual, que, ao ouvir a Monique dizer que os belgas eram mais machos que os franceses, exclamou, enquanto servia as tagliatelle:
- É, mas Vercingetorix é Vercingetorix, né. Teve todo aquele lance de Alesia e tal.
As opiniões gerais sobre a minha pessoa foram unanimamente duas: minha saia de tweed da Animale é um escândalo de linda, ao ponto que até os meninos repararam, em momentos diferentes, e eu sou interessante de-más pra não escrever algo de decente e participar de algum concurso de literatura. A julgar pelos primeiros prêmios que muita porcaria anda ganhando por aí, I stand a good chance. Vamo esperar passar esse período de provas na faculdade, né, lindos. Depois quem sabe eu me aventuro.
Ontem fomos jantar com os meus ex-alunos, os Três Mosqueteiros, lembram? Bom, na verdade primeiro fomos visitar a Mosqueteira Flavia, que está se recuperando de um pós-parto complicadíssimo e não pode botar os pezinhos fora de casa. Rimos muito com o filho mais velho, Francesco, que apareceu na sala vestido de legionário. Perguntamos quem ele era, e estávamos todos esperando algo tipo Maximus, mas ele vem com "Ettore, quello di Troia", e nós aaaaaaaaaaah! Ele continuou falando de personagens históricos, da Ilíada, da Odisséia de Ulisses, de Orlando Furioso, e todos nós de boca aberta, porque afinal o garoto só tem cinco anos. Ainda recitou a fala final do Aragorn em um dos filmes, com espada na mão e tudo (espada cujo nome ele sabia, by the way). Depois desse choque cultural, fomos jantar num restaurante que o Spartaco tinha reservado, com um nome cafonissimo, La Locanda dei Golosi. O lugar fica meio lá nos cafundós, pros lados da FeRnanda, e é elooooooorme. Nosso garçom era um gordo fedorento que faz aula de informática com o Spartaco, e mais um adolescentão bonitinho e educado. Levamos horas pra ser servidos, com toda aquela gente, e ainda levamos esporro por conta de umas crianças incrivelmente mal educadas que ficavam torrando a paciência dos garçons, coitados, que passavam abarrotados de pratos e bandejas pra lá e pra cá. Não adiantou explicar que os filhos não eram nossos; estavam perto da nossa mesa, então eram de nossa reponsabilidade moral.
Fora a incrível dor de garganta que senti mais tarde, por ter dado tanta aula a semana inteira e ter me esgoelado pra me fazer ouvir no restaurante lotado, o jantar foi muito legal. Os meninos são ótimos, as esposas idem, todo mundo gosta de viajar, todos são organizadinhos e certinhos e enlouquecem com a incompetência italiana, enfim, rola uma grande compatibilidade. O papo foi ótimo e demos muita risada. Chegamos em casa revigorados.
Ontem jantamos na casa do Marco e da Tania. O Marco estudou com o Gianni e o Mirco, e a Tania é do Uzbequistão (!!!). Gastronomicamente foi uma grande decepção, porque a gente tava crente que ia rolar uma culinária uzbeq, mas que nada: Tania foi de canneloni mesmo, depois teve rosbife (aqui rosbife não tem nada a ver com o verdadeiro roast-beef, mas enfim) e supplì, aquele bolinho de arroz frito. Tinha salada russa, mas eu abomino maionese, e combinada com pepinos em conserva, então, não tem santo no mundo que me faça comer. O doce, com creme de nozes e mel, parecia muito com os doces que a família sérvia faz sempre, e tava bem gostoso. Chiara levou uns pasteizinhos em gosto com recheio de Nutella, mas não valia a pena engordar por aquela besteirinha. Até que me comportei, mas hoje de manhã já fiz meia hora de step pra compensar.
A Tania é uma garota legal. Não sabemos nada do passado dela, e seu italiano ainda é muito carregado de sotaque russo (e ela come todos os artigos), mas é uma garota legal. Como Chiara e Gianni são sempre boa companhia, acabou que passamos uma serata bem gostosinha. De vez em quando – mas não sempre – é bom socializar.
Essa semana tá rolando a Eurochocolate, em Perugia. É uma feira internacional do chocolate, e é a coisa mais inútil que eu já vi. Tudo é caríssimo, a cidade fica entupida de gente e mal dá pra andar na rua, e afinal de contas chocolate é sempre chocolate: o europeu é definitivamente, mas DEFINITIVAMENTE superior ao brasileiro e ao americano, então qualquer marca que você comprar por essas bandas vai ser muito boa. Pra que diabos tanto furdúncio em torno de uma coisa que você pode perfeitamente comprar no supermercado?
A cidade vira uma zona, o trânsito fica pior do que já é, são milhões de tendas, de mostras, de palestras. Mas amostra grátis que é bom, nada, né, nêga.
O programa de índio hoje foi o seguinte: acordamos às quatro da manhã, Moreno passou pra nos pegar e lá fomos nós rumo a Castellammare di Stabia, perto de Nápolis (Julie, se eu tivesse ficado sabendo disso antes teria te avisado, mas só combinamos tudo tarde da noite no sábado!), levar o cachorro do Moreno pra uma exposição.
O Moreno é um amor, mas tem umas infantilidades que realmente me irritam. Gastou uma grana comprando um filhote de Dobermann, ridiculamente chamado Akyn, gasta mais uma grana preta pra adestrar o bicho, comprando ração top de linha, acessórios desnecessários, e toda aquela parafernália da qual só cachorro com pedigree, frágil e geneticamente esquisito, precisa. E ainda por cima resolveu entrar no mundo das exposições caninas. Valha-me!!!
Curiosos, eu e Mirco aceitamos o convite e resolvemos fazer companhia pro coitado do Moreno, que nunca participou dessas coisas e não queria chegar lá sozinho, sem saber o que fazer.
A viagem foi light, o cachorro, que é um amor, dormiu numa boa o tempo todo, fedendo terrivelmente dentro da sua gaiolona de plástico. Chegamos no tal lugar da exposição e já tinha um povo chegando. Moreno parou um senhor de Messina, com um dobermann insuportavelmente chato, agitado, forte e latidor, pra perguntar como funcionava e coisa e tal, porque era a primeira vez dele e blah blah. O cara foi superantipático – não existe gente legal com cachorro chato, é uma lei universal – e só faltou rosnar pro Moreno. Então deixamos tudo pra lá e entramos na cara dura mesmo.
A coisa rolou no que eu presumo que seja um local pra atividade física de alguma escola ou instituição. Enquanto os organizadores, atrasadíssimos, ajeitavam os cartazes da Purina e formavam o ringue onde os cachorros desfilam, nós ficamos observando o pessoal que chegava.
Eu não gosto de dobermanns. São bonitos, mas não gosto da personalidade deles, muito menos da dos donos. Era um preconceito que revelou ser absolutamente fundado, porque o que vimos de gente maluca, esquisita, chata, mal educada, prepotente, ridícula, não tá no gibi. A mulherada de óculos escuros gigantes, os homens com camisetas de criadores, botas, jeans Dolce & Gabbana, enfim, os sólitos ridículos. Crianças mimadas chorando o tempo todo, muita gente fumando o tempo todo, gente discutindo coisas idiotas tipo o ângulo da perna posterior do cachorro, o tipo de corte da orelha, e outros assuntos de vital importância pra ordem mundial.
Uma gordinha simpática pára o Moreno e pergunta o nome do cachorro. Quando o Moreno responde "Akyn", ela solta um gritinho de alegria. É meu filho! É filho da minha Brisal! (pra quem não sabe, quando falamos de pedigree todos os cachorros da mesma ninhada ganham nomes ridículos que começam necessariamente com a mesma letra. A ninhada do Akyn foi a primeira da Brisal, e todos os filhotes têm nomes que começam com A.) Pronto! Encontramos alguém amigável e que conhecia os bastidores da coisa, pra nos explicar como funcionava o esquema. Moreno foi pagar a inscrição no container que funcionava como secretaria, pegou o livrinho de competições novinho em folha do Akyn, e começamos a estudar o panfleto com a programação do dia, com os nomes de todos os participantes por categoria, e espaço pra anotar as notas.
O Akyn foi o primeiro a desfilar, na categoria baby macho preto. Em teoria o início da exposição estava marcado pras dez, mas, faz-me rir, além de estarmos na Bota estamos em Nápolis, claro que começou quase na hora do almoço. Enquanto isso, a gordinha, que se chama Valentina e é de Gênova (sotaque maravilhoso), nos disse pra arrumar uma bola e cansar o Akyn pra ele abrir a boca pro juiz. Como assim, Bial? O cachorro tem que abrir a boca pra mostrar a mandíbula pro juiz. Ah, tá. Pra isso basta deixar o bicho irritado de tanto tentar pegar a bola e não conseguir, jamais – até porque está preso à coleira.
Quando o Akyn já estava com meio metro de língua de fora, a Valentina pendurou o número 1 no pescoço e levou o cachorro pro meio do ringue, porque o juiz já estava chamando. A coisa funciona assim, de acordo com o que ela me explicou: alguém leva o cachorro pro ringue, o juiz olha o cachorro parado, examina as medidas, anota aquelas coisas idiotas todas, depois a pessoa dá uma corridinha besta com o cachorro, o juiz examina o cachorro correndo e anota mais umas coisas idiotas, depois outra pessoa que o cachorro conhece fica do lado de fora do ringue tentando chamar a atenção do bicho, pra ele ficar naquela posição de desenho animado, todo esticadinho, alerta. O juiz examina o ângulo das pernas do cachorro, as orelhas, coisa e tal. O cachorro então ganha um pouco mais de coleira e pula na direção da bola – o juiz anota o cachorro em situação de ataque, anota outras baboseiras e depois dá a nota.
Detalhe: o juiz, um siciliano com uma cara de mafioso que dá até medo, é o bambambã de dobermanns no país, e um dos maiores criadores. O cara é supermetido em política, e foi ele quem conseguiu tirar o dobermann da lista das raças consideradas agressivas, aquelas que têm que andar com mordaça à noite. Então tá.
O resultado do Akyn (que ganhou o último lugar entre os 3 competidores, mas era também o mais jovem e mais agitado de todos, tadinho) era tão ridículo que meu cérebro se recusou a decorar tudo, mas lembro muito bem que no papelzinho tinha escrito "olhos redondos demais", "bom pescoço" (pra mim bom pescoço é todo aquele que segura direito a cabeça, mas enfim), "move-se bem", "coluna inclinada demais". É mole? Depois ainda tive que me controlar pra não rir enquanto a Valentina checava a dieta do Akyn: você dá carne moída crua misturada à ração? E o miolo de pão? Ele tem que engordar, Moreno, esfarela umas torradas na comida dele, umas seis por refeição. E o parmesão (obs.: parmesão de verdade custa em torno de DOZE EUROS por quilo.)? E o fio de azeite, você dá?
SOCORRO!
Saímos de lá quase às duas da tarde. Por sorte não nos perdemos, porque achamos tudo horroroso e muito suspeito. TODOS OS CARROS SÃO AMASSADOS. Todos. TO-DOS. Ninguém usa capacete quando anda de lambreta. NINGUÉM. Vimos mil lambretas pequenas, pra uma pessoa só, carregando duas, mais bolsas e caixas. O trânsito é uma loucura, os sinais de trânsito estão ali só pra enfeitar, buzina-se o tempo todo, grita-se em dialeto incompreensível pra nós pobres mortais – eu adoro a língua napolitana, acho uma delícia, mas não entendo bissolutamente nada. Fiquei passada por não ter conseguido falar com a Julie, que certamente teria nos mostrado a parte legal da cidade. Eu consegui até dormir na viagem de volta, apesar do fedor do Akyn, e ainda fomos jantar na Arianna depois.
Vou te dizer: cachorro nota 10 é o meu. É o dela, são os dela, os dele. Essa palhaçada de pedigree, de ração mais cara que camarão, de queijo ralado, de azeite de oliva, de toalhinhas umedecidas com lustra-pêlo, todo esse circo mi sta sui coglioni. O que a falta do que fazer não faz com as pessoas, viu.
Meu pai chegou no civilizadíssimo horário de três e meia da manhã. Descambei-me pra Santa Maria pra entregar-lhe a chave do quarto, já que o hotel é pequeno e não tem recepção aberta à noite. Fui dormir às cinco e meia.
O resultado foi uma enxaqueca daquelas de querer dar um tiro na cabeça. Em vez do tiro, tomei meu remedinho mágico, esperei uma horinha e a maldita dor foi-se, enquanto assistíamos ao Valentino Rossi ganhar mais uma e botar o coitado do Alexandre Barros no chinelo.
Ainda conseguimos ir jantar na ridícula festa do vinho, em Collemancio. Mas quando cheguei em casa a cabeça ainda latejava. Maldita, maldita dor.
Ontem fomos a um casamento legal. Mario Belli, o florista de Santa Maria, e Maria Rita, siciliana criada aqui no interior do Zaire.
A festa foi legal porque a cerimônia foi relativamente rápida, e porque Gianni e Chiara também foram convidados (o Gianni faz natação com o Mario). O jantar foi num lugar lindo, lá pros lados de Valfabbrica, com uma vista maravilhosa e um ventinho fresco delicioso pra aliviar o calorão. Os convidados eram jovens e muito alegres. A mesa em frente à nossa fez uma bagunça desgraçada, obrigaram o garçom (que se chamava Carmine) a beber, fizeram poesia erótica pro noivo, pediram pro frade Carlo tirar a roupa, brindaram em rima a noite toda.
O cardápio: um zilhão de antipasti, frios e quentes. Risottino mantecato alle fragole ed ortica (risoto com morangos e urtiga. Eu juro que tava bom, a não ser pelos morangos, que não tinham nada a ver, apesar da moda de fruta na comida). Ravioli primavera al tubero nero di Norcia (ravioli tricolores com trufas pretas de Norcia). Tagliata di Angus aromatizzata (carne argentina – cof cof – cortada em fatias, temperada com vinagre balsâmico) e verdure grigliate (abobrinha, tomate e berinjela na grelha). Filetto al pepe verde e rosa (filé de vitela com pimenta verde e rosa), flan di patate (um pudinzinho de batata que era pura farinha), bouquet di fagiolini (um raminho de vagens amarradas com bacon) e insalatina capricciosa (uma saladinha básica). E depois o bolo de casamento, que era um mil-folhas com creme, que dispensei pela ausência de cacau.
A noiva estava linda – os sicilianos costumam ser bonitos e ela não é diferente. O vestido era elegante e simples, e só o cabelo tava meio esquisito. O Mario é bonitão, altíssimo, forte, simpático. A mãe dele é muito gente boa, e apesar da recém-viuvez estava muito feliz. Roberto e Cristiana, também nossos amigos, estavam na mesa com a gente, mas em um inexplicável gesto de extremo mau-gosto "tiveram que sair" mais cedo. Considerem que um jantar desse tipo custa mais ou menos 70 euros por convidado, e sair no meio é um terrível desperdício do dinheiro dos noivos. Ainda mais quando o presente dos convidados (ele é RIQUÍSSIMO, ÍSSIMO, ÍSSIMO) foi ridículo – um guia da Califórnia, onde os esposos vão passar a lua-de-mel, e uns trocados em dólar "pra comprar um chiclete no aeroporto". Una figuraccia, um papelão. Enfim. Fora esse detalhe que deixou todo mundo meio desconfortável, até que me diverti. Chegamos em casa muito tarde, e chapamos lindamente.
Não sei como, mas Moreno conseguiu nos convencer a ir ao Lago Trasimeno com ele, a nova namorada e mais dois casais.
Praia na roça é assim: tem nome (Zocco Beach. ...), é gramado e não areia, é lago e não mar, a mulherada vai de salto alto, não se vêem cangas mas só toalhas com araras e golfinhos, ninguém cai na água porque é lamacenta, não tem guarda-sol mas tem a sombra das árvores, e tem o stand da rádio local, com DJs pentelhos que saúdam a galera "in" que passa, como se ser "in" em Bastia Umbra ou Magione ou Passignano sul Trasimeno tivesse o poder de alterar rotas de meteoros ou de mudar o destino da humanidade. Santa paciência, Batman.
Jantamos torta al testo num lugar de beira de estrada perto de Magione. O lugar é famoso e a fila era colossal, a comida não era lá essas coisas, o peixe tava salgado, o presunto idem, a nota fiscal não especifica os itens nem os preços, o que facilita a picaretagem. De fato, na nossa mesa pagamos por duas garrafas de Coca que nunca chegaram, e por uma salada de camarão (a minha) que também não se fez viva.
E terminamos o dia tomando sorvete em Magione, cidadezinha que não conhecíamos.
O problema nem foi o programa de índio, porque pra mim qualquer programa que inclua bronzeamento voluntário é necessariamente programa de índio, mas a companhia mesmo. Eu adoro o Moreno, mas ele às vezes é de uma imaturidade irritante, e é natural que escolha companhias igualmente infantis. Sua nova namorada tem 30 anos, ainda tem hora pra voltar pra casa senão o pai dá piti, acabou de terminar uma temporada part-time como assistente em um consultório de dentista, e não sabe o que vai fazer da vida de agora em diante. Outro casal era formado por uma modelo ex-candidata a miss, horrorosa, mondronga e com Q.I. de uva sem caroço, e o namorado é DJ de discoteca e faz as sobrancelhas. Outro ainda era um engenheiro amigo do Moreno que usa bandana na cabeça, mora sozinho porque é divorciado mas a mãe vem limpar a casa e cozinhar e fazer compras pra ele, e a namorada é arquiteta mas se está com um como ele não pode ser nenhum primor.
Eu realmente não tenho mais paciência pra essas coisas, juro.
E o pior é que todo esse povo provavelmente vem jantar aqui em casa sexta-feira.
Ontem queríamos ir ao cinema. Gianni e Chiara tinham um casamento, e então ligamos pra Roberta. Mas eles já tinham programa, e nos convidaram pra ir com eles a Umbertide, cidade que não conheço, pra um show do Rockin’ Umbria. Esse festival foi, como tudo aqui, muito mal publicizado, e ninguém sabia do que se tratava. Sei que teve Elvis Costello em Spello, mas fora isso, mais nada.
Pois bem: o show de ontem foi dos Kings of Convenience, de quem só conhecia uma música, trilha sonora de uma propaganda que passa toda hora na TV. Vi no site que eles vão estar no Tim Festival, no Rio, em outubro.
Umbertide é uma cidade lindinha, e a praça onde rolou o show é uma graça. Mas o calor tava foda, e a música dos meninos, apesar de bonitinha, é estilo Simon & Garfunkel, ou seja, depois de uns trinta segundos te faz bocejar. Eles são noruegueses e totalmente minimalistas, em roupas, palavras, expressão facial. Não faz muito o meu estilo, mas não é exatamente desagradável, e detectei várias bases de bossa nova, pra não falar na voz sussurrada dos rapazes. Cantam juntos, o que piora muito as coisas: uma voz única talvez tirasse aquela impressão de S & G. No final entrou um cara com um violino e o produtor da banda, um italiano baixinho e de cavanhaque totalmente estereotipado, com o baixo acústico. Aí começou a ficar mais legal. Lá pra última música conseguimos, eu e Roberta (porque os meninos já tinham sumido pra tomar cerveja longe do palco há muito tempo), chegar pertinho do palco, até porque não tinha muita gente mesmo. Um dos rapazes é muito bonitinho e ambos são muito simpáticos, apesar de aparentemente tímidos e devagar-quase-parando. Depois fomos encontrar nossos respectivos no quiosque no centro da cidade, batemos um papo, catamos o carro e fomos embora.
Show de música é legal até quando a música é mais ou menos.
Ontem, pela primeira vez em muito tempo, tive uma folguinha à noite. Cancelei a aula com os Salames porque teve jogo do Perugia com o Torino, partida de ida decisiva pra conseguir a última vaga pra série A do campeonato italiano. A torcida (tifoseria) do Perugia é das mais ferozes e fanáticas do país, ainda mais em uma situação crítica como essa de ontem. São os chamados grifoni, porque o grifo é o simbolo antiqüíssimo da cidade de Perugia. Melhor não arriscar, porque o horário do jogo coincidia exatamente com o da aula, e o estádio fica na mesma zona onde fica a escola. Pior ainda com a loucura no trânsito que rola toda vez que tem jogo. O Mirco detesta futebol, e eu até gosto de ver uma bela partida mas não presto a menor atenção no que acontece no mundo esportivo a não ser em copa do mundo ou olimpíadas, então os jogos sempre nos pegam de surpresa. Já perdemos a conta de quantas sessões de cinema já perdemos por não saber que tinha jogo na cidade, sair de casa lépidos e fagueiros e dar de cara com engarrafamentos homéricos, carros da polícia em tudo que é lugar, saídas da estrada bloqueadas. Ontem eu jamais teria conseguido chegar à escola, e ainda corria o risco de levar umas porradas pelo caminho, porque quem é que entende a cabeça de torcedor fanático como funciona. Então depois da aula com o Aluno Endocrinologista, que terminou às duas e meia, vim direto pra oficina, arrumei umas coisas, fui a Bastia resolver uns lances com o contador, voltei pra oficina, resolvi mais umas coisas, estudei um pouco de francês, e miraculosamente conseguimos mandar os operários pra casa e enxotar os clientes chatos às seis e meia, horário completamente teórico de fim de expediente. Corremos pra casa, tomamos banho e fomos pra Foligno, pra pegar um cineminha.
Eu adoro Foligno. É uma cidade muito civilizada, limpa, muito arborizada, com um centro histórico lindo e imensas alamedas com villas de cair o queixo. Lugar de gente rica; não é à toa que, juntamente com Città di Castello, tem fama de ter as mulheres mais lindas da Umbria (e é verdade). Demos umas voltas a pé até as sete e meia, e fomos os primeiros a entrar no restaurante chinês. O alto-falante tocava música pop chinesa. Quando perguntei à nossa garçonete do que falava a canção, ela custou um pouco a responder, mas disse que era "uma coisa mista, meio de amor e meio de outras coisas", o que quer que isso signifique. Nós vamos muito a esse restaurante e tem dois garçons que sempre nos atendem: um novinho de penugem no bigode que não entende xongas de italiano e só nos traz as bebidas, e uma com cabelo até a cintura que fala italiano muito bem, com o sotaque ridículo de Foligno, o que nos faz morrer de tanto dar risada. Ontem não tinha nenhum dos dois. Comemos o de sempre (ravioli de carne no vapor, frango com amêndoas, carne com cogumelos e bambu, arroz cantonês), pagamos, peguei meu anel chinês tabajara de brinde (já tenho uma coleção) e tocamos a pé pro cinema. Tava um calor do cacete, apesar de já serem oito e meia da noite, e foi um alívio entrar no cinema fresquinho. Só nós e um outro casal. Vimos White Noise, que eu achei bem legal. Não acredito em espírito nem alma; pra mim quando morremos viramos húmus, e destino mais nobre não consigo conceber, mas gosto desses assuntos sobrenaturais. Bem tratados, dão o maior medão. Adoro.
A soirée terminou às dez e meia. Às onze estávamos mimindo. Só de pensar que normalmente eu estaria chegando em casa àquela hora, tenho vontade de chorar.
Hoje fui ao meu primeiro casamento em terras botais. Todo mundo já tinha me avisado há séculos que era melhor mesmo que eu nunca tivesse ido a nenhum porque é uma coisa muito chata, e principalmente cara, já que os presentes das listas custam todos os olhos da cara e é considerado feio dar algo de menos de € 150. Nesse de hoje tivemos sorte, porque o Mirco pintou a cama antiga de ferro do casal, e esse trabalho foi o nosso presente de casamento – na verdade o trabalho vale muito mais que € 300, mas tudo bem.
A coisa toda é muito diferente por aqui. Pra começar, normalmente a cerimônia é de dia, seguida não de uma festa, mas de um almoço. Muitas vezes, além da igreja e do almoço (normalmente em um restaurante), há também o chamado rinfresco, que costuma ser na casa da noiva, à noite. São comes e bebes estilo festa americana, uma coisa mais light. Às vezes rola também uma apresentação da casa onde os recém-casados irão morar: parentes e amigos íntimos fazem uma espécie de tour da casa antes da cerimônia. Hoje o pessoal anda mudando de costume e oferecendo jantares aos amigos em casa, depois do casamento.
Os noivos de hoje eram Peppe e Stefania. Peppe é amigo de infância do Mirco. O pai era finanziere (trabalhava na Guardia di Finanza), ganhava muito bem, conhecia todo mundo, era influente na cidade, e comprou muitas propriedades ali na zona. Morreu quando Peppe ainda era jovem, mas deixou um hotel na avenida principal da cidade, que hoje é administrado em conjunto pelo Peppe, a irmã mais velha, Teresa, e a mãe, Cleofe (don't ask). A irmã do meio (Peppe é temporão) é casada com o Moreno, dono do restaurante que fica ao lado da loja do Fabrizio, o Louco – cansei de ir lá buscar o almoço do Fabrizio e também cansei de recusar propostas de trabalho do Moreno, porque garçonete realmente não dá. O hotel ficou bonito depois da reestruturação de 95, é um 3 estrelas todo novinho, com restaurante em dois andares e um jardinzinho na frente. Peppe vai morar com a esposa num edifício pequeno que pertence à família e fica logo atrás do hotel.
Stefania é de Costa di Trex, um pedaço de Assis que fica no alto da colina, inacessível em dias de chuva ou de neve (ontem mesmo a estrada principal estava fechada por causa de deslizamentos de terra e tivemos que passar por uma estradinha de terra batida cheia de pedregulhos, estreita e perigosa, pra ir ao rinfresco). O pai trabalhou como motorista de ônibus por muitos anos. A mãe não sei o que faz, mas Stefania é filha única e sempre estudou ballet, o que hoje se reflete nas veionas saltadas dos braços musculosos. Formada em Engenharia, hoje trabalha na faculdade onde estudou. A família tem dinheiro; os montanari (a gente da montanha) por aqui têm fama de espertos, no bom sentido; de gente que sabe ganhar dinheiro e trabalha duro.
Tanto Peppe quanto Stefania, que namoram há duzentos anos, são muito envolvidos com a igreja. Mas muito mesmo, do tipo não posso jantar fora esse fim de semana porque estamos em retiro espiritual lá não sei onde com a paróquia de Santa Maria. Ressalto que por aqui ser amigo dos frades é muito conveniente, principalmente pra quem trabalha com hotelaria. A maior parte dos hotéis é deles, que mandam clientes a outros hotéis amigos, como o do Peppe, quando os deles ficam lotados. Hoje o Peppe é diretor da Caritas local, e nem vou me pronunciar quanto a esse assunto porque gosto muito dele, mas acho que vocês já entenderam mais ou menos.
Bom. O casamento foi no altare maggiore da Basílica de Santa Maria degli Angeli. Ninguém nunca tinha se casado ali. Não é permitido; a igreja é importante demais pra se dar ao luxo de aceitar esses caprichos, e só quem freqüenta o altar principal são os funerais. Em um grande exemplo de humildade e voto de pobreza, o casamento foi realizado no altar onde nunca ninguém se casara antes, na igreja mais importante da cidade, quinto maior templo católico do mundo. Vozes já correm na cidade há algumas semanas, gente revoltada, gente reclamando, gente gesticulando. A justificativa oficial da paróquia local é que foi introduzido um rito novo, e o casamento do Peppe foi uma espécie de teste, pra ver que bicho que dá. Então tá.
Enfim. Quando chegamos a noiva já tinha entrado. A igreja estava cheia, inclusive de turistas, que vinham visitar a Porziuncola (a basílica foi construída por fora da Porziuncola, pra protegê-la), davam de cara com aquela noiva microscópica no altar, e paravam pra ver. Ficamos em pé o tempo todo, coisa terrível pra quem está de salto alto.
A missa foi LONGUÍSSIMA. Nunca vi tantos frades juntos na mesma cerimônia, mas gente influente é assim mesmo, sabe, junta multidões. Muitos paramentos que eu nunca tinha visto, mas eu não entendo dessas coisas, então pode ser que tudo fosse muito normal em meio a sacerdotes de ordem franciscana. Um coral de vozes clericais e laicas cantava entre uma liturgia e outra. Hoje a igreja conta com várias caixas de som espalhadas pelos quatro cantos, mas sei que o edifício foi construído levando em conta certas capacidades acústicas cujo efeito sobrenatural é fácil de constatar. Quando o padre fala, sua voz ribomba, como acredito que os crentes imaginem que seja a voz de deus. Quando o coral canta, me vem em mente que se eu acreditasse em anjos, seria assim que eu pensaria que eles cantam. Adoro música de igreja. É hipnotizante, atemorizante, mas realmente te transporta pra outra dimensão. Só faço questão de ignorar as palavras, pra não me irritar, mas o som é realmente divino, única palavra que na minha opinião descreve o que ouvimos.
Já jurei a mim mesma não falar mais de igreja aqui, mas não resisto.
O padre falou, falou, falou. E falou mais um pouco. Leu o que os noivos escreveram um pro outro – Stefania 6 páginas, Peppe 1, o que fez todo mundo da platéia rir. Peppe é o típico gordinho bonachão, que não se irrita nem se preocupa com nada, não é dado a discursos nem firulas, conhece todo mundo e nunca brigou com ninguém. Na escola ele era assim mesmo, dizem: enquanto a Stefania se esforçava pra escrever redações e trabalhos magníficos, ele se contentava com meia dúzia de linhas e já tava muito bom. O padre continuava falando, intercalando seus discursos com o belíssimo coral ou com o canto a cappella de uma freira muito jovem, vestida de cinza. Falou da onda de divórcios, esquecendo de mencionar que na época em que a bíblia foi escrita neguinho vivia até 40 anos, se tivesse sorte, e é muito fácil aturar alguém até que a morte os separe quando dura-se tão pouco. Também esqueceu de mencionar o fato de que basta pagar quantias escandalosas à Sacra Ruota no Vaticano pra ter seu casamento anulado, não importa o quão ridícula seja a situação, só pra ter o privilégio de casar novamente na igreja – só aqui no vale os casos são numerosos demais pra contar; todas as famílias "bem" têm gente divorciada e re-casada na igreja. Falou da onda de relacionamentos homossexuais, como se fosse coisa nova na espécie humana e inexistente entre os celibatários frades e padres. Falou de tudo isso só pra depois dizer que não, eles são pecadores tradicionais, de valores tradicionais, e preferem continuar acreditando que essas coisas não se fazem, é feio se divorciar, é feio acabar o amor, é feio casar de novo (a não ser que você pague à Sacra Ruota, claro, mas isso ele não mencionou), é feio ser viado ou sapatão, é feio ter dinheiro, é feio esbanjar (mas da anormalidade do casamento no Altare Maggiore também não se falou), essas coisas legais e principalmente MUITO sinceras que a igreja prega sempre. No terço final da cerimônia, o tal rito novo, que consistia em quatro dos padrinhos segurando os cantos de um véu branco e muito longo, por cima dos noivos. O padre explicou que aquele não era um simples véu, mas representava a nuvem que camuflou os judeus na fuga pelo deserto ou coisa do gênero.
Enquanto o padre falava aquelas coisas irritantemente hipócritas, eu e Mirco nos ocupávamos da análise estética dos convidados, já que a basílica não é nenhuma Brastemp e não oferece horas e horas de entretenimento arquitetônico como a de São Francisco, em Assis. Vimos:
. Scarpins rosa-choque
. Calça jeans e sandálias de salto agulha com gigantescas flores azuis de plástico no peito do pé
. Calça de seda marfim com elástico na barra, cobrindo o sapato
. Bundas imensas espremidas em calças brancas de seda, com direito a fio dental e celulites se manifestando sob o tecido
. Bundas imensas pertencentes a senhoras de uma certa idade, espremidas em calças azul-marinho transparentes
. Costas mais gordas do que as minhas derramando tecido adiposo por entre as fitas de um corpete apertado demais
. Rapazes com camiseta amarelo-ovo escrito Brasil nas costas
. Frade com gel no cabelo
. Muitos frades jovens, alguns lindos, infelizmente
. Cabelos estilo poodle, permanentados na frente e lisos atrás. E vice-versa
. Muita, mas muita boca contornada com lápis e sem batom
. Saia jeans e camiseta e tênis
. Uma jaqueta preta muito bem cortada e com belos botões na frente, mas com uma cobra IMENSA bordada atrás
. Sapatos masculinos de couro de crocodilo e ponta fina
. Machos de sobrancelhas feitas
. A melhor amiga da Stefania, uma garota muito esquisita, de vestido longo cor de cocô e um chapéu imenso, totalmente nada a ver
. Muita, mas muita alça de sutiã colorido aparecendo por baixo de vestidos tomara-que-caia, ou de um ombro só, ou de alcinhas finas
. Uma calça maravilhosa, branca com listras pretas na vertical, irregulares. O tecido era maravilhoso, babei
. Xales horrendos daqueles 150% poliéster
. Uma sandália baixa, prateada, linda de morrer
. Bizarras combinações de camisa xadrez e terno listrado
. Perucas masculinas
. Narizes alcoólatras, inchados, vermelhos, cobertos de telangectasias
. Bebês fofinhos adormecidos
. Crianças entediadas
entre outras coisas.
Enquanto eu sofria no meu salto alto desconfortável e morria de calor na minha calça de xantungue roxo da Animale e blusa de palha de seda creme da Mariazinha, o Mirco suava no seu terno cinza-escuro com sapatos da Mr Cat. De vez em quando um monstro do pântano passava na nossa frente, dando-nos uma bolsada ou uma cabelada, e ele repetia: mamae-so-fórtchi, sua última aquisição lexical, que ele adorou tanto que usa em qualquer situação ridícula, relacionada ou não ao uso de camisetas sem manga para exibir os bíceps.
O raio da missa estava demorando uma eternidade, e como depois da cerimônia os noivos tradicionalmente vão pra sessão de fotos, fomos lá pra fora pegar um arzinho e descansar os pés, porque não dava mais pra agüentar. Ficamos sentados num banco de pedra em frente à Libreria Internazionale Francescana, o que quer que isso seja, batendo papo com o Stefano. Stefano é amigo deles há anos, trabalha no Ipercoop e é um pedaço de mau caminho. Alto, físico de atleta, olhos penetrantes e sorriso perfeito, coisa MUITO rara por aqui, mesmo em se tratando de gente que tem dinheiro. Ao meio-dia e meia os noivos finalmente saíram da sessão top model; fomos cumprimentá-los, pegamos o carro estacionado em frente à peixaria e fomos pegar o Moreno em casa. Ele tinha trabalhado até meio-dia e vinte e não pôde ir à missa, sorte dele.
O almoço foi no hotel da família, lógico. Quer dizer, lógico seria se o lugar fosse suficientemente grande. Mas não é, e foi preciso dividir a galera: parentes no restaurante do térreo, amigos no restaurante da sobreloja, digamos. Gente demais, ar condicionado que não dava conta do recado, e todo mundo com dor de cabeça por causa do ar consumido, como se diz aqui. O antipasto foi servido em pé, no jardinzinho da frente, entre a cerca-viva de louro e oleandros brancos: espetinhos de tomate-cereja, mozzarella e manjericão, salada de trigo (deliciosa), enroladinho de massa folhada com recheio de espinafre e lingüiça despedaçadinha, enroladinho de massa folhada e recheio de salsicha (würstel), salada de rúcula, pinoli, uva-passa e parmesão, rolinhos de bresaola (um tipo de ensacado típico do norte, eu não gosto) com recheio de rúcula e molho branco, salame fatiado, lascas de parmesão (adoro), pedaços de queijos variados – queijo de leite de ovelha, queijo duro, queijo mais ou menos, queijo com tartufo, queijo com peperoncino. Água mineral, prosecco e uma coisa não alcoólica cor-de-laranja que não tinha gosto de nada. Terminado o antipasto, todo mundo pra dentro do hotel.
Demos sorte: não havia lugar marcado e dividimos a mesa para dez com Moreno e mais três casais de amigos do Peppe que o Mirco não via há muitos anos. Gente simpática mas meio paracula demais pro meu gosto; levaram uma hora e meia pra descobrir que eu não era italiana, mas a partir daí ficaram me encarando o tempo todo, como se eu fosse um bicho no zoológico.
O catering ficou por conta da empresa Il Quadrifoglio. As garçonetes eram muito simpáticas e eficientes. Na mesa, um cardápio pra cada um; fiz como manda a tradição e trouxe o meu pra casa, pra lembrar o menu da festa – normalmente o menu é a única memória que fica do casamento, e todas as conversas sobre festas de casamento giram em torno da refeição. Além do cardápio, um saquinho de algodão cru bordado em estilo inglês contendo, como manda a tradição, um número ímpar e superior a um de amêndoas confeitadas. Felizmente as de hoje eram cobertas de chocolate e não só de açúcar :) Como Peppe e Stefania são muito caridosos, os saquinhos foram comprados de uma empresa que dá trabalho a gente pobre em países pobres. Nossos saquinhos foram bordados à mão por mulheres de uma cidade indiana cujo nome esqueci. Muito bonitinho, e as amêndoas são deliciosas.
Comemos muito bem. Foram três primi piatti e dois secondi, na ordem: risotto di caciotta dolce (a caciotta é um queijo macio que não tem gosto de nada, e eu AMO) e fiori di zucca (flores de abobrinha), crespelle di asparagi (crêpes de aspargos) e ravioli di melanzane (berinjela), pomodorini Pachino e ricotta salata (Pachino é uma cidade siciliana que produz esses tomates pequenos, mas maiores que os cereja, famosos pelo sabor, dizem, maravilhoso. Eu não sou fã de tomate e pra mim é tudo a mesma coisa.), depois agnello farcito al tartufo nero di Norcia (carne de carneiro recheada com trufas negras da região. Normalmente acho carneiro pesado e gorduroso demais, mas esse tava uma delícia) con mazzolino di fagiolini al fumé (um maço de meia dúzia de vagens enroladas em uma fatia de bacon) e por último carrè di vitello agli aromi naturali (carne de vitela com ervinhas), patate fondenti (batatas deliciosamente gratinadas) e misticanza (salada mista). Pra beber, um Bianco di Torgiano pros primi, e um Rubesco pros secondi, tudo Lungarotti. Parece uma quantidade absurda de comida, mas não é, creiam-me: duas colheres de risoto, um mini-crêpe, seis ravioli pequenos por pessoa. Uma fatia de carneiro, uma fatia fina de carne de vitela, meia dúzia de fatias de batata.
Quando todo mundo já tava a ponto de desmaiar de calor, as garçonetes mandaram a gente ir lá pra fora, pro bolo e pra sobremesa. O bolo, simples, de três andares redondos e enfeitado com rosas verdadeiras, era imenso e quase caiu quando duas crianças passaram correndo na frente das três pobres coitadas que o carregavam. Um amigo fez um discurso engraçado, em versos, antes dos noivos cortarem o bolo. Fila pro bolo; eu ataquei os morangos, mas também tinha kiwi fatiado, abacaxi em pedacinhos, melancia em cubinhos, melão cortadinho. Pegamos nossas bomboniere, caixinhas de vime com saquinhos de chá do Sri Lanka dentro, sempre no estilo vamos dar trabalho ao pessoal dos países pobres. Uma ótima alternativa às normalmente ridículas lembrancinhas de prata que não servem pra absolutamente nada, custam os olhos da cara e só ocupam espaço. O nosso chá é de limão aromatizado com mel. Pena que eu não tomo chá.
E dali não agüentei mais e fomos embora porque já eram cinco da tarde e meus pés estavam literalmente me matando. Deixamos o Moreno em casa e nos mandamos.
Mirco chapou no sofá imediatamente, vítima da combinação calor + comida boa + vinho. Eu ainda resisti e vi um pedaço de Conduzindo Miss Daisy antes de chapar. Acordei com um toró dos diabos lá fora, tirei a roupa do varal em tempo, rezei pra chuva continuar e estragar a última noite da festa da primavera e voltei a dormir.
Reacordamos às nove da noite! Outro banho, troca de roupa e fomos pro tal rinfresco. Felizmente a chuva tinha passado, senão não teríamos conseguido chegar naquele fim de mundo. Chegamos tarde e já não tinha mais nada; as meninas do Quadrifoglio estavam desmontando as mesas. Ainda sobraram algumas bomboniere, e peguei mais uma: dessa vez era chá verde aromatizado com gengibre. Batemos um papo rápido com Roberto e Cristiana, com Carlo Belli, irmão do Mario, que casa mês que vem, com um amigo do Mirco que namora uma equatoriana, e fomos embora pra casa.
Eu custei pra burro pra dormir. Fiquei vendo Drácula de Bram Stoker na TV, que nesse momento me foi profissionalmente útil. Ainda terminei de ler o original do texto a traduzir, tomei um iogurte de banana e só fui dormir às duas e meia da manhã.
A festinha foi um su. O único convidado que não veio foi a Quarentona Estressada, que mora num buraco lá na casa do chapéu, na Toscana, e falta aula há mais de uma semana porque tá sem carro. Ganhei vários livros (lógico), gift certificate da minha livraria preferida (claro) e outras coisinhas fofas. Arianna fez pizza de vários sabores, todos ótimos, eu fiz crostino com o salmão da eowyn (brigada, amiguinha, é uma delícia!!!), brigadeiro e quadradinho de laranja, não tiramos fotos porque me recuso, não cantamos parabéns porque tenho pavor, me diverti a valer, como diz meu irmão. Acabamos resolvendo inclusive deixar os móveis do jeito que estão, porque quando vem cabeçada aqui afastamos o sofá pra um lado e a mesinha de centro pro outro, pra dar mais espaço. Gostamos da arrumação e vamos deixar assim por enquanto, por um período de teste (quem vê TV deitado acha ótimo, mas quem senta tem que dar uma torcida básica de pescoço pra poder enxergar a mulherzinha do telejornal ou o Grissom e suas larvas, por exemplo).
E hoje o tempo tava uma bosta, como aliás nos últimos dias; frio e chovendo sem parar, um porre. Dormimos e/ou enrolamos a manhã inteira, almoçamos na Arianna, voltamos pra casa, dormimos e/ou enrolamos de novo; nesse meio tempo falei no telefone com meu pai, minha avó, meu avô, e Valerrí de Parrí (saudades de você, amiga!) e com minha mãe no Skype. Vencida a preguiça, pegamos a sessão das 7 e pouco no cinema. Vimos Be Cool. Achamos muito mais ou menos, mas tem seus momentos. Se bem que, IMO, a melhor parte do filme é o close nas ancas biquinadas da Uma Thurman que pega sol num colchão colorido com vista pra L.A. Ela tem estrias nas ancas. Bastantes.
Então, meu aniversário tá chegando. Já pensaram no meu presente? :)
Normalmente detesto aniversário, e sinceramente não vejo muito o que comemorar, embora tenha que admitir que até o momento o ano tenha sido relativamente proveitoso. Mas ao mesmo tempo quero reunir os poucos e caros amigos que tenho aqui. Ainda não decidi direito o que fazer. Estou pensando em juntar umas vinte pessoas, eu e Mirco incluídos, aqui em casa, no sábado. O problema é o menu: não quero passar o dia inteiro pilotando fogão e me estressando no dia do meu aniversário, mas também não queria abusar da Arianna – Mirco sugeriu pedir a ela pra fazer umas pizzas no fogão a lenha do quintal. Sugestões de balacobaco são bem-vindas.
E hoje, depois que voltamos do almoço na Arianna, Gianni e Chiara passaram aqui. Mirco já estava arrumando a mala, apesar de só partir na quinta-feira, e começamos a falar de roupas, malas, a péssima qualidade das cuecas da Coop, se vai ter lugar no carro, o trem que o Mirco vai pegar até o aeroporto, quem vai nos buscar quando voltarmos no domingo de Páscoa, enfim, esses assuntos de viagem. Os dois nervosíssimos, porque detestam andar de avião e nunca encararam um vôo assim tão longo – a maior distância que já percorreram via aérea foi até o Quênia, e foi traumatizante. Chiara duplamente ansiosa porque ainda não tinha começado a fazer as malas e não conseguia decidir o que levar e coisa e tal, e me ajudando a decidir o que EU deveria levar, insistindo no casaquinho de crochê que minha avó fez e que eu adoro, mas não vai ter nenhuma utilidade nessa viagem porque não esquenta nada. Enquanto nós dávamos o toque final às nossas malas, os dois foram visitar a avó da Chiara; meia hora depois saímos de casa e encontramos os pimpolhos no cinema em Foligno, onde já nos esperava a irmã do Gianni com o namorado. Vimos Million Dollar Baby, que adoramos, apesar de todo mundo ter chorado. Aliás, o cinema inteiro chorou, ouvia-se um monte de gente fungando ao meu redor, barulho de embalagem de lenço de papel abrindo, gente tossindo pra disfarçar.
Dali eu e Mirco fomos direto a Santa Maria pra jantar com Marco, Michela e Peppone no Bella Vista. A Michela, que já é chatinha por natureza, grávida fica pior ainda. Tudo enjoa, tudo é horrível, a boca é amarga, o vinho ficou ruim porque a boca tá amarga, a pizza demora e ela começa a se sentir mal, blah blah blah. Quase todo mundo foi de pizza, mas eu não sou exatamente fã da coisa e praticamente só como pizza quando vamos ao Penny Lane, então dessa vez pedi tortellini com molho de espinafre e tartufo nero di Norcia. A massa tava gostosa e o tartufo era verdadeiro e muito perfumado, mas o espinafre era obviamente do tipo congelado porque não tinha gosto de rigorosamente nada. Mas deu pro gasto. O chato é que o Bella Vista é supercomercial, trabalha muito com grupos de turistas então tá sempre EN-TU-PI-DO de gente, e a pizza dos meninos levou uma hora e meia pra chegar. Saímos de lá antes das onze e voltamos pra casa.
Sábado teve festa na casa da FeRnanda. Antes passamos na casa dos sérvios, que tinham convidado a gente pra jantar. Batemos um papinho, comemos uns antipastinhos e uma sopinha, que eles fazem muito bem, botei as fofocas em dia com a Aurora, uma italo-sérvia IMENSA (tanto de altura quanto de ossatura), inteligente e muito esperta que estuda em Terni, e depois fomos pra Ripa. Nevava, mas não tivemos problemas na estrada, que felizmente não tava congelada – Ripa fica no alto de uma colina, como todo bom castelinho medieval, e quando a temperatura cai de repente depois de uma chuva não há carro no mundo que suba a ladeira. Chegamos junto com a Nadia e o Aldo, que moravam em Rivotorto mas se mudaram pro Brasil e estão aqui de férias. Bem mais tarde chegaram a irmã da FeRnanda, Renata, com o marido Stefano; moram na Toscana e ela saiu do trabalho tarde, encontraram neve na estrada, e levaram horas pra chegar. Aí atacamos: pão de queijo, pastel de carne e palmito que o Fabião improvisou, salgadinhos mil, salame, mortadela, alho em conserva, coisinhas do gênero. O bolo, de cenoura com cobertura de chocolate, foi ela mesma quem fez, coisa completamente inédita já que na família dela ninguém cozinha nada, há gerações e mais gerações. Não comi, mas todo mundo gostou. Também teve brigadeiro e bolinho de chuva, parabéns animado, a cachorra fazendo xixi de agitação, Skank tocando no som, risadas e muitas fotos, que eu obviamente não vou botar aqui porque estou em momento anti-foto total. Chegamos em casa às três da manhã, a massa falida.
A festa do Franco acabou não sendo tão divertida como costuma ser. Chegamos tarde, porque dei aula até as oito da noite, e acabamos ficando na ponta da mesa oposta à dele e dos amigos que conhecemos. Ao nosso lado, duas professoras de Inglês, uma da Università degli Studi di Perugia, e a outra da Stranieri, justamente pro curso de Comunicazione Internazionale que eu quero fazer. Foi uma pena ter sentado ali, porque o Franco e seus amigos mais íntimos são as pessoas mais cultas e engraçadas que eu já conheci aqui na Itália, senão na minha vida inteira.
Ele mesmo é professor de Inglês e tradutor, lá na Stranieri. Um homão alto, forte, peludo, e bichérrimo, e que ainda por cima tem uma queda pelo Mirco. Uma história sua famosa rolou lá mesmo na universidade: ele, fazendo mil gestos, caras e bocas pra explicar sei lá o quê, até que um aluno levanta a mão e diz:
- Pô, professor, o senhor faz tanta careta que fica parecendo até que é meio bicha!
Ao que ele responde:
- Só meio, querido?
A única vez que eu dei mais risada do que quando ele contou essa história foi ele mesmo relatando o dia em que ficou preso no carro do Mizio. Mizio também ensina Inglês e também é tradutor, mas fala Português de Portugal e sempre me cumprimenta dizendo "como estás?", que eu acho engraçadíssimo. Ele é um amor, e de uns tempos pra cá anda trabalhando com cerâmica, usando uma técnica antiga que sempre foi segredo de família, e que ele resgatou. Temos um vaso meio dourado dele lindão aqui na sala.
Mas então: o Franco é a pessoa com menos senso prático que já pisou na face da Terra. Não sabe usar celular nem videocassete, não sabe usar o cartão do banco, e quem administra suas finanças é um amigo que trabalha num banco. Não sabe dirigir, não sabe nem ferver água pra fazer chá, e cada dia janta na casa de um amigo, ou num restaurante, ou algum amigo vai à casa dele pra cozinhar.
Um dia Mizio foi buscá-lo pra ir trabalhar, e no caminho passou no supermercado. Franco tinha caído no sono, e como era uma coisa rápida, Mizio trancou o carro, um Toyota ou outra coisa do gênero, e deixou o homem lá dentro. O tempo foi passando, o sol foi esquentando, Franco começou a suar e acabou acordando. Quis abrir a janela pra se refrescar, mas não conseguia. Tentou abrir a porta, mas não achava a alavanca ou o botão. Começou a sinalizar loucamente pras pessoas que passavam, mas obviamente ninguém se dignou a parar pra falar com aquele maluco de peito peludo que esmurrava os vidros de dentro do carro. Só quem parou foi um negão, um africano que vendia bugigangas. Franco desesperado tentando se fazer entender, e o negão nada. Franco tira da bolsa um caderninho de telefones e encosta na janela, apontando pro nome do Mizio – aparentemente ele queria que o negão telefonasse pro celular do Mizio, não se sabe como, pra que ele viesse abrir a porta. Nesse momento Mizio sai do supermercado, vê aquele negão enorme parado em frente à janela do carona, e, achando que eles estavam marcando algum encontro caliente, não se aproximou, pra não interromper as negociações. O tempo foi passando, o negão nada de sair dali, Mizio achou estranho e foi ver o que tava rolando. Quando finalmente abriu a porta, o comentário do Franco foi:
- Odeio o design japonês.
Crianças, ele e o Mizio contando essa história deixam você ficar sem ar de tanto rir. A cara do Franco imitando ele mesmo quando finalmente Mizio abriu a porta e ele pôde dar aquela super-respirada, é o que há. Até hoje quando eu lembro dessa história fico rindo sozinha.
Faltou só o Francesco, ex-chefe do Mirco e da Stefania na empresa onde eles trabalharam há alguns anos. Francesco é um genovês requintadíssimo, discreto, educado, bem vestido, cheiroso, culto, divertido, viúvo e rico. Sentimos falta dele no jantar, que no final acabou sendo divertido do mesmo jeito, principalmente no momento abertura de presentes. Eu dei um livro do Ian McEwan, Mirco deu um quadro de metal com ímãs pra fotografias, que ele mesmo pintou. Mizio deu uma caneta que estica, virando um apontador daqueles tipo antena de TV, pra dar aula. Os comentários do povo, conhecendo o retardamento tecnológico do aniversariante: só não vai esquecer de encolher a antena pra escrever, hein? E ele dando risada, e fingindo que escrevia com aquele negócio compriiiido.
Quando saímos do restaurante a neve tava caindo direto, mas felizmente não tivemos problema na estrada.
Na sexta não tivemos forças pra fazer nada. Gianni veio aqui em casa resolver mais uns dos intermináveis detalhes da viagem à Argentina, e acabou indo embora depois da meia-noite. Eu chapada, com as mãos tremendo, os punhos doendo horrivelmente, os tendões gritando de tanto digitar, e ainda por cima tendo que escrever e-mail pra uma criatura chamada Sema, que não sei nem se é homem ou mulher, perguntando se há vagas no hotel em El Calafate. Devo ter picado muita salsinha na tábua dos dez mandamentos mesmo.
Quem não liga pro Natal dificilmente se empolga com o Ano-Novo. Acho que nunca passei um réveillon legal na minha vida – provavelmente porque a minha concepção de "legal" é muito diferente daquela clássica festão + álcool na cabeça + beijos em bocas estranhas. Há anos adormeço antes da meia-noite chegar. Meu primeiro réveillon aqui foi passado na casa dos pais do Mirco. Acabamos dormindo no sofá muuuuito antes da meia-noite. Em 2002 estávamos em Catania, na Sicília, e também caímos no sono assistindo a algum Star Wars. Em 2003 estávamos numa festa estranhíssima na Sérvia, mas só por falta de coisa melhor pra fazer.
Esse ano passamos o dia inteiro na oficina. Nesse dia 31 a micro-empresa (da qual Ettore era o chefe) foi fechada, e reaberta no mesmo dia no nome do Mirco, por razões que eu levaria um dia inteiro pra explicar. Os dois passaram a manhã toda no tabelião registrando o negócio, e eu fiquei na oficina atendendo telefone, organizando tabelas e mandando por fax pro tabelião, que não tem Excel e não sabe fazer tabela, e principalmente preparando as faturas de dezembro, que é o trabalho mais chato do mundo. Depois do almoço voltamos pro escritório pra terminar as malditas faturas, e acabamos tudo às nove e meia da noite. Um frio do cacete, eu morrendo de fome e cansaço, doida pra voltar pra casa, e o Mirco, que tem o às vezes péssimo habito de não deixar nada pra depois, ainda pára no meio da estrada pra fotografar umas árvores trigêmeas que ele vê todos os dias há cinco anos mas só agora lembrou de fotografar.
Mas tudo bem, eu já tinha deixado o jantar engatilhado. Foi só botar o pedaço de carne argentina no forno, apoiada diretamente na grade pra gordura escorrer, e as abobrinhas já cortadas longitudinalmente e batatas-palito congeladas também no forno, em seus tabuleiros. Moreno veio jantar com a gente, e resolvemos sair de casa, eu muito a contragosto, umas quinze pra meia-noite. Fomos pra casa de um amigo do Moreno, e encontramos umas outras pessoas que já conhecíamos. Eles moram no pedaço de Bastia que fica aqui atrás de Cipresso, onde eu moro; até que tinha vida aqui em torno, a julgar pelos muitos diferentes pontos de modesta queima de fogos, a que assistimos do quintal. Depois voltamos pra dentro porque tava frio pacas, o pessoal jogou cartas enquanto eu, que estava totalmente anti-social, fiquei vendo The Blues Brothers na TV. Fomos dormir lá pras duas da manhã.
O almoço de Natal foi um belo pé no saco, por causa do climinha entre Mirco e a cunhada, que deu uma hipersupermegapisada intergaláctica de bola semana passada. Comemos o de sempre: fatias do pão umbro cascudo com patê de fígado de galinha, com salmão e manteiga, e com patê de tartufo; depois cappelletti com recheio de carne misturada de peru, vitela e cappone (galo castrado), uma parte in brodo, ou seja, cozido no caldo de cappone, e a outra parte com molho de tomate mesmo. Depois cappone assado na brasa com salada. E de sobremesa todos aqueles doces natalícios que eu odeio: panetone, pinolata, torrone, panforte. À noitinha fomos ao cinema ver Closer (meio assim assim), jantamos sanduba na Pans & Company do shopping, paramos pra tomar uma cervejinha/Bailey’s no Suggestum com Moreno e um amigo, e voltamos pra casa pra mimir.
Hoje, feriado aqui na Bota (dia de Santo Stefano), resolvemos ficar em casa. O tempo tá uma bosta, um convite à preguiça, e há um monte de carne argentina e brasileira na geladeira nos esperando (compramos na Metro, no sábado à tarde). Compramos dois filés mignons argentinos e um pedaço gigantesco de roastbeef (que eles pronunciam rósbif-a) brasileiro – como diabos se chama isso em Português? Almoçamos uma sopinha chinesa de pacote, a última que sobrou das compras em Paris, depois um filezinho show de bola feito na bistequeira de ferro guisa, com batatas no forno, assadas com azeite e alecrim. Como Hannibal Lecter, nós também nos amarramos num Chianti, e abrimos uma garrafa decente pra acompanhar a carne. Aaaaaaaaaah quanto faz falta uma carninha decente, em vez desses bifinhos anêmicos de vitela que neguinho adora aqui!
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Eu ganhei chocolates holandeses do namorado da cunhada, papatinhos forrados de lã pra usar dentro de casa, uma mochila ótima pra viajar, um casaco ROSA absurdo, daqueles recheados de pluma de ganso. Só que, além de ser rosa (que é a cor da moda, vocês sabem), é curto, o que pra mim não faz o menor sentido. Eu sinto frio no corpo inteiro, e não só do umbigo pra cima; pra mim casaco curto é tão idiota quanto blusa de lã de manga curta. Qual é o propósito dessas coisas? Amanhã vou a Perugia trocar. Não tenho nenhum casaco desses de pena de ganso; me deixam maior ainda do que eu já sou, e também acho muito esportivo, não faz o meu tipo. Prefiro sobretudos, e queria um marrom, pra se juntar ao meu preferido, cinza-escuro estilo militar, com golinha coreana, ao preto Valentino e ao branco tabajara que eu tenho que levar ao Rio na próxima vez pra dar uma mudada na cara dele. Foi baratérrimo, mas o modelo é muito assim assim, queria uma coisa mais diferentinha. Mirco ganhou um pulôver marrom e um perfume Roberto Cavalli que, apesar da caixinha DE ONCINHA AZUUUUUUUL, é bem cheiroso.
Eu ainda não abri meu autopresente, o livro da Allende que o grisalhão da livraria cismou de embrulhar, mesmo eu dizendo que era pra mim mesma. Acabou que me comprei também uma agendinha Moleskine, cujo único defeito é ter pauta. Detesto escrever em papel pautado. Minha aversão a obedecer a ordens e regras chega a esse ponto. Mas tem umas coisas ótimas: duas páginas pra anotações de viagens (com espaço pra data, destino e comentários gerais), fusos horários, conversão de medidas e tamanhos de roupas e sapatos, códigos DDI, distância entre as principais capitais do mundo, mini-agenda telefônica destácavel, e uma espécie de bolsinho interno pra colocar papeizinhos que normalmente tendem a tomar chá de sumiço. Não sou muito de usar agenda, porque esqueço sempre que ela existe, mas adoro tê-la. Adoro agenda, diário, bloco, papel, de qualquer tipo, tamanho, cor, material. Basta que não seja pautado ou, pior ainda, quadriculado, como se usa muito aqui. O Moleskine (tipo sketchbook, com folhas espessas) que serviu de semi-diário em 2004 está acabando. Digo semi-diário porque acabo escrevendo praticamente só quando viajamos; colo ingressos de cinema, teatro, passagens de avião, trem, ônibus, metrô, cartões de visitas de lugares legais, bilhetes nos quais nos deixaram endereços e e-mails. Seu sucessor foi comprado em Castellina in Chianti nesse verão, durante a Saga dos Salames; foi feito à mão e tem capa de couro com as três musas da primavera gravadas na capa e há um lacinho pra amarrar e mantê-lo fechado. Estou doida pra inaugurá-lo.
Ontem veio um pessoal jantar aqui em casa: Peppone e aquele casal que precisava de informações sobre NY, Gianni e Chiara, e a irmã do Gianni, Roberta, com o namorado calado, Marco (que eu jurava que era Bruno, que horror!). Quarta e ontem passei o dia cozinhando: fiz mini-pizzas de cebola e sálvia e de alecrim com sal grosso, cappelletti com recheio de salmão defumado (fiz a massa e o recheio em casa) com molho de abobrinha, lagostins cozidos rapidamente no vinho branco com azeite e salsinha, com salada mista, e petit gateaux com sorvete de creme que eu mesma fiz. O jantar foi um sucesso tal que fui até aplaudida, apesar de ter achado os cappelletti muuuuito mais ou menos, principalmente se penso no trabalho que me deram. Mas enfim, demos muita risada, papeamos muito, vimos fotos, falamos de viagens, e depois que o pessoal foi embora, pra lá de meia-noite, ainda fui ajeitar a cozinha e a sala. Àquela altura do campeonato já tinha perdido o sono, e acabei dormindo no sofá, abraçada ao How the Irish Saved Civilization.
Pictures to come.
Ontem tivemos um dia cheio – cheio de programas inusitados. Mirco trabalhou até as quatro da tarde, e eu fiquei em casa dando uma faxinada, passando roupa, dando uma engatilhada no almoço – enfim, ameliando. Almoçamos um risotinho básico de abobrinha, salmão e açafrão, e logo depois chegaram Peppone e um casal de amigos. Esse casal vai passar dez dias em NY em janeiro e queria dicas do que ver, onde dormir, etc. O lance é que o Mirco sempre viajou muito, então todo mundo que quer dicas de viagem vem encher o saco dele. Pois então; esse casal é muito simpático. Ela é esperta pra caramba, apesar da combinação scarpin de cobra de salto altíssimo + jeans D&G + suéter de tricô com capuz, muito esportivo. O namorado é o clássico salame roedor de unha, mas bonzinho. Eles ficaram aqui até quase as seis, e depois que foram embora nos mandamos pro cinema.
Vimos Ocean's Twelve, e achamos uma bosta. Não uma bosta comparada com Ocean's Eleven; uma bosta mesmo. Roteiro esburacado, silêncios irônicos que não têm graça, private jokes, e inúuuuuuuuuuumeras forçações de barra. Só vale porque grande parte do filme se passa em Roma, que vocês tão carecas de saber que é tudo na vida, e porque tem o George, e porque a Zeta-Jones está absolutamente deslumbrante, com um corte de cabelo que ficou ó-te-mo.
E depois do cinema e de um sanduichinho na Pans & Company do shopping fomos pra casa do Roberto, em Santa Maria. Tínhamos sido convidados pra jogar Pictionary (tipo um Imagem e Ação, lembram?) com Roberto, Cristiana e outro casal de amigos, mas acabamos jogando outras coisas. Um jogo se chamava Taboo e é bem legal: você tira uma carta do maço e tem o tempo da ampulheta pra fazer os seus companheiros de time descobrirem a palavra escrita na carta, sem em nenhum momento mencionar certas palavras que também estão na carta – essas são as palavras-tabu. Por exemplo: a palavra que meu grupo tem que adivinhar é espelho, e as palavras tabu são reflexo, imagem, etc. Parece fácil, mas em certos casos você tem que dar uma volta danada pra chegar na bendita palavra. Até deu pra rir, mas nem eu nem Mirco somos pessoas particularmente competitivas, e não gostamos de jogar coisa nenhuma; o Mirco só gosta de competir com ele mesmo, e eu não gosto de competir com ninguém, principalmente comigo mesma. Mirco errou todas, não conseguiu fazer ninguém adivinhar nada, ficou nervoso e estressado, e acabou não se divertindo. Depois jogamos um negócio com cartas e uma maquininha que cospe cartas em você; esse é legal, mas a gente demorou tanto pra montar a maquininha e entender as regras que depois de duas rodadas já era mais de meia-noite e ninguém se agüentava mais em pé. Fomos pra casa e chapamos imediatamente.
Feriado nacional hoje; é la festa della Madonna – pelo que eu entendi, já que não me interesso nem remotamente por esses assuntos religiosos, é o equivalente ao nosso 12 de outubro. Na praça em frente à basílica de Santa Maria degli Angeli, já há um certo tempo foi colocado um negócio imenso de ferro que eu não me interessei em saber o que é, mas parece um cálice; é bonito, o ferro é todo trabalhado e há sempre flores frescas como decoração (não vou nem comentar que nada disso sai dos bolsos da igreja, porque seria redundante). Não sei quando foi colocado lá; não presto atenção a essas coisas, mas sei que o período entre a colocação desse troço na praça e o dia 8 de dezembro é chamado de "mese Mariano", ou mês de Maria. Ou pelo menos acho que é assim que funciona.
Enfim, esse foi o único feriado desse ano que não caiu no fim de semana, e quem pôde aproveitou pra enforcar (ou fazer o chamado "ponte") e foi esquiar nas montanhas. Nós obviamente ficamos por aqui mesmo, levantamos tarde e fomos pra oficina porque o Mirco tinha que pintar umas peças que eram urgentes, pra hoje de manhã cedo. Eu varri o chão da oficina, manobrei a empilhadeira, e com o ancinho dei uma ajeitada no cascalho do pátio dos fundos, que com as chuvas intermináveis acabou ficando todo irregular. Almoçamos na Arianna, e depois passamos a tarde inteira cortando a maldita forma de parmesão e embalando os pedaços a vácuo. Voltamos pra casa pra tomar banho e tirar o cheiro de queijo e dali fomos pra casa do R., amigo do Mirco que tem, entre outras coisas, uma colina em Mora, uma fração de Assis. Era aniversário da namorada dele, a fadinha C., magra como um grissino, dona das sobrancelhas mais artificiais que eu já vi na minha vida e que tem os olhos quase um de cada lado da cabeça, como uma coruja. É psicóloga e muito, mas muito cri-cri, mas o R. é um grande amigo e fomos lá marcar presença. Quem cozinhou foi a estranhíssima irmã do R., que é cozinheira e fotógrafa e já trabalhou em hotéis e restaurantes em lugares bizarros como Teneriffe e fotografa freqüentemente na África. Essa casa em Mora é uma villa maravilhosa, com piscina coberta e aquecida com teto que se abre no verão, um bosque delicioso e várias casinhas espalhadas pela colina. A mais usada é a casa del maiale (casa do porco), que tem esse nome porque uma metade da casa é reservada aos porcos que o pai, industrial milionário mas filho de açougueiro, compra ainda leitões, engorda, abate e faz lingüiça, salame, presunto e todas as outras mil coisas que se fazem com todas as partes do porco. Na outra metade há uma lareira elooooooooorme, pia, armários, mesas e um sofá; há porcos de cerâmica, plástico, vidro, pintados em pratos, nos panos de prato, no pegador de panela. No andar de cima há um terraço com uma vista linda do vale lá embaixo, e é onde o R. faz as suas famosas festas de aniversário, todo ano.
Quando chegamos R. estava acendendo as velinhas da IKEA na mesona que ficou depois que quatro mesas quadradas foram juntadas. A irmã tava botando pedaços de pão pra bronzear na brasa, pra fazer bruschetta; a outra irmã, caladona mas com olhos e ouvidos que não perdem na-da, brincava com os dois cachorros, Ercole e Scotti. Uma gatinha bebê miava lá fora, na janela, e dava patadas no vidro, mas quando abri ela não quis entrar, com medo do banana do Ercole, que abanava o rabo feito um louco, doido pra brincar com a bichinha. Mais tarde foram chegando os outros convidados, que nós não conhecíamos; eu sentei perto do fogo porque sou friorenta, e acabei batendo papo a noite toda com um casal muito simpático e esperto. Francesca é de Foligno e tem aquele sotaque engraçado deles, que tem um quê de romano; é formada em Filosofia e estudou um ano em Londres. O namorado, Stefano, é advogado, como o pai, famoso aqui na área, e morou em NY e em Madrid. Nunca conheci gente tão cosmopolita aqui no vale, fiquei pasma! Batemos um papo ótimo, troquei receitas com a irmã do R., expliquei que o que ela comeu num restaurante brasileiro em Rimini não foi farofa mas farinha de mandioca crua com feijão, e que essa farinha ela acha em Perugia, numa loja de queijos e produtos gastronômicos esquisitos na escadaria de S. Ercolano. Todo mundo deu livro de presente pra chatinha; eu dei Alta Fedeltà (ui), do Nick Hornby, já que não tenho a menor intimidade com ela e não conheço seus gostos. Digamos que vai ser um termômetro: se ela não vier depois comentar que achou graça, já vai cair mais ainda no meu conceito.
Enfim, detonamos juntos (éramos 12) cinco garrafas de um excelente Brunello de 1998 (pena, a melhor safra do último século foi a de 97), brincamos com os cachorros, e a festa terminou com a gatinha passeando sobre a mesa e comendo restos de bolo dos pratos. All in all, foi ótimo; agora infelizmente vai ser necessário aturar a chatinha outra vez se quisermos convidar Francesca e Stefano pra jantar, já que são amigos do R. e por isso temos que convidar todos juntos. Mas vai valer a pena; a chatinha é chatinha porque é boring, e não porque incomoda. Afinal de contas, no pain, no gain, né não?
Ontem à noite jantamos na casa do Gianni e da Chiara. Foi ótimo, eles são realmente muito simpáticos. A Chiara é o tipo de pessoa que você acaba de conhecer e já considera a sua melhor amiga – não por forçação de barra, mas porque ela é muito engraçada e bobona, e não tem como não gostar dela. Conversamos principalmente de viagens, porque eles também adoram viajar, e vamos com eles a Heindover no fim de janeiro. Fiquei encantada com as fotos que eles tiraram no sul da Espanha; morro de vontade de conhecer a Espanha moura.
O menu não tava lá essas coisas, mas o importante foi que batemos altos papos até uma da manhã e demos muita risada também. Bom, isso.
Gianni, Chiara, Bruno e a namorada Roberta (irmã do Gianni), eu e Mirco
Olha, não é porque fui eu quem cozinhou não, tá, mas sábado a festchinha aqui em casa foi uó. Tudo muito confuso, obviamente, porque o apartamento É pequeno e tinha a maior cabeçada; tudo mais confuso ainda porque tinha gente de tudo quanto é tipo, amigos de escola, outros dos tempos de futebol, outros da escola técnica, vizinhos de casa, coisas desse tipo. Gente muito diferente, quase todos casados, quase todas as esposas meio retardadinhas, fora a Chiara, que é esperta pra caramba. Gosto cada vez mais dela e próximo sábado vamos jantar na casa dela.
O menu foi: belisquetes variados (amendoim, Pringle’s, pistache, azeitonas, Fonzies), salada de arroz que o Mirco encheu minha paciência pra fazer, apesar de ser um prato de verão (resultado: sobrou pra burro. Eu não gosto e Mirco não come comida velha, vai sobrar pros cachorros e frangos da Arianna), piadina de speck e scamorza no forno, bruschetta de paté de fígado de frango comprado na Coop, porque essas nojeiras eu me recuso a fazer, quiche de presunto e queijo. Muito vinho tinto, cerveja, Coca e água mineral com gás. A sobremesa triunfal foi um pratão de profiteroles, que eu recheei com sorvete Gigi. Ficou uma diliça e todo mundo ficou bobo com a minha paciência em fazer tudo from scratch, dos bignis ao sorvete.
Como não consigo ir dormir sem antes deixar tudo arrumado, mandei o Mirco pra cama e lá fui eu lavar umas loucinhas (pratos e talheres eram de plástico, então só tinha uns tabuleiros e formas de quiche pra lavar), arrastar os móveis pro lugar certo e passar pano de chão. Acabei dormindo no sofá, atacada por uma onda de melancolia.
p.s.: Niente foto porque foi o Gianni quem fotografou o evento, e TODAS as fotos saíram horríveis. Gente de boca aberta, gente de olhos fechados, gente abaixando pra pegar guardanapo ou amendoim que caiu, gente estendendo o braço pra pegar mais vinho, gente de costas, gente de olhos vermelhos, enfim, todas as tragédias da fotografia juntas.
Continuando a série programas deferentes, ontem saímos um pouco da rotina e fomos assistir a um ballet em Foligno, no Politeama, que já foi um teatro e hoje funciona como cinema.
Eu adoro ballet clássico. Fiz aulas durante alguns anos quando era pequena, mas parei porque sempre fui gorda, desastrada e desprovida de graça e elegância, coisas que uma bailarina não pode ser. Mas continuei gostando, e sempre que tinha temporada no Municipal eu ia. A última vez foi o que, há uns três anos, com a Syrléa? Vimos o Lago dos Cisnes, que é um dos meus preferidos.
O de ontem era Don Quixote, que não é lá um dos meus favoritos, mas dá pro gasto. Mirco, obviamente, nunca tinha visto um ballet, e estava curioso. Tínhamos visto o cartaz na saída do cinema na semana passada e nos interessamos. Eu liguei pra bilheteria ontem à tarde e a mulher disse que não precisava comprar antes, porque ainda tinha muito ingresso sobrando e eu poderia perfeitamente comprar na hora. Então pouco antes das nove da noite estávamos lá, numa pseudo-fila confusa, porque eles não só não foram capazes de botar uma bilheteria só pro ballet, então tinha público do ballet e dos cinemas na mesma fila, mas também só tinha uma pessoa atrás do balcão vendendo os malditos ingressos. Pra melhorar a confusão, professores e alunos de dança tinham desconto, e tinham que entrar na fila com um documento pra conseguir pegar os ingressos mais baratos. Acabou que o espetáculo começou com quase 20 minutos de atraso, porque senao não ia nem ter público, já que metade da galera ainda tava lá fora, na fila, passadas as nove horas, horario teórico do início do espetáculo.
A companhia de ballet é de um romeno e de uma milanesa que estudou dez anos na Rússia. O grupo tem a minha idade e eu honestamente esperava um pouco mais de profissionalidade, embora, pensando bem, se eles fossem realmente profissionais e bons de sapatilha não estariam se apresentando num ex-teatro em Foligno, of all places. O lance é que o palco do teatro é minúsculo, ao ponto que a coreografia, que não era a original de Petipas mas do próprio romeno, ficou claramente prejudicada. O bailarino principal chegou a dar um chute numas pedras cenográficas enquanto saltava piruetando; voaram bolinhas de isopor por todos os lados. A iluminação era sofrível, e o cenário parecia coisa desenhada pelos alunos da segunda série na aula de Artes (eu fui aluna da Nêga no Andrews, e vocês?). O figurino poderia perfeitamente ter sido montado todo na Ciganinha, na Saara do Rio, tal o excesso de babados. A menina que fazia o Sancho Pança já estava me irritando, sacudindo os braços sem parar como uma retardada. Os bailarinos eram completamente descoordenados entre si, principalmente os homens, que pulavam e levantavam as pernas sempre com um meio segundo de diferença entre um e outro. E três dos quatro bailarinos homens coadjuvantes eram fortes como estivadores, e não esbeltos como bailarinos costumam ser. A música era terrível, porque obviamente não tinha orquestra, por falta de espaço e por falta da orquestra propriamente dita. O público, não habituado a esse tipo de espetáculo, aplaudia a toda hora, e aplauso invadindo a música da cena seguinte não é a coisa mais legal do mundo.
Mas all in all foi um programa divertido. Fiquei lembrando de quando era criança e tínhamos sempre ingressos pro Municipal; assisti a Copélia, Gisele e o Quebra-Nozes trezentos milhões de vezes, sempre das frisas ou das primeiras filas da platéia. O barulhinho seco toc-toc das pontas de gesso no palco é sempre uma delícia. Fui dormir contente :)
Tivemos uma soirée animaaaaal ontem. Metemos o pé na jaca. Detonamos geral. Abalamos Bangu.
I lie.
A APM, a companhia perugina de transportes, patrocina os jogos de vôlei da liga nacional, e os funcionários têm direito a ingressos pros jogos. Moreno tinha dois sobrando, ofereceu, de graça, né, nóis aceitou e nóis foi.
Foi no Palasport Evangelisti, o mesmo onde rolou o show do Biaggio Antonacci há um tempinho atrás. Conseguimos estacionar tranquilamente e atravessamos o estacionamento tabajara, de terra batida e esburacado, sem maiores problemas. Tava frio, mas nada do outro mundo. Lá de fora ouvíamos alguém berrando algo num alto-falante, e um barulho de torcida fazendo êeeeeeeeee. Na entrada, um estande oferecia cupons dando desconto na compra de produtos de beleza pra homens na cadeia de lojas de cosméticos mais in aqui da zona. Um montinho de gente se amontoava numa pseudo-fila em frente ao estande onde distribuíam-se os ingressos pra convidados – o nosso caso. O nome do Moreno tava na lista, pegamos os bilhetes e entramos.
Não sabíamos quem estava jogando contra o Perugia Volley, dono da casa, e não havia nada escrito nem no ingresso, nem em nenhum lugar do estádio. Sabíamos que era uma partida relativamente importante, série A, transmitida excrusive pela TV a cabo, canal de esportes. O estádio não estava nem remotamente cheio, então sentamos em qualquer lugar mesmo, perto da quadra. E comecei a observar o ambiente, tentando ignorar o cheiro de cachorro molhado no ar (chovia há horas lá fora).
Fora alguns poucos grandes patrocinadores, como TIM, o concessionário Mercedes ali da área, a Nike, chocolates KitKat, chocolates Perugina (que foi comprada pela Nestlé, filhos da puta), a academia de ginástica high-tech de Perugia onde eu malhava quando estudava lá, o resto dos anunciantes era completamente desprovido de glamour. Pizzeria do Fulano! Tendas e Toldos Sei-lá-o-quê! Restaurante do Mario! Fábrica de sacolas plásticas do Riccardo! Manutenção de Empilhadeiras Família Rossi! Desratização O Flautista Mágico! (juro). O patrocinador principal do Perugia, de uniforme vermelho e tênis à escolha do jogador, é Bacchi, concessionário de caminhões Iveco e revendedor autorizado de peças pra caminhões; é fornecedor do Mirco e já fui lá quinhentas vezes buscar peças. O do outro time, de azul marinho e tênis todos iguais, que mais tarde descobrimos ser o Latina (Latina é uma cidade perto de Roma), era a Acqua e Sapone, cadeia de lojas de produtos de higiene e limpeza que tem em tudo quanto é lugar; a de Bastia vive lotada. Os uniformes são tão cobertos de patrocinadores que mal tem lugar pro número do jogador, quanto mais pro seu nome – ou mesmo o nome do time; por isso demoramos tanto pra entender quem era o adversário.
A gigantesca torcida organizada do Perugia era composta de umas 20 pessoas – nerds, adolescentes empolgados, mainly losers. Havia também dois chineses (don't ask) batendo animadamente naqueles tambores verticais deles. Uma gordinha loura entupida de maquiagem e já com uma certa idade tentava animar a galera, se achando a Rainha Pan-Universal das Cheerleaders de Todos os Tempos. O pessoal da torcida estava munido de pedaços de madeira com tiras grampeadas nas laterais; batendo essas tabuinhas uma na outra o barulho é insuportável. Também tinham megafones ridículos que imitavam sirenes da polícia ou de ambulância. Delicioso. O narrador do jogo falava no microfone, mas a acústica do lugar é horrível e não dava pra entender UMA SÓ PALAVRA.
A torcida organizada do Latina era composta de, hm, oito pessoas.
O Perugia tinha até mascote: um grifo, que eu só saquei que era um grifo porque esse é o símbolo da cidade desde a remota Idade Média, porque mais parecia uma vaca com bico e uma coroa na cabeça. Mas desse cara vestido de grifo eu nem fiquei com pena, porque pelo menos ele tava todo coberto e consequentemente não era identificável. Pior era o cara que fazia propaganda do Limmi, suquinho de limão (amarelo, claro) que se vende nos supermercados pra quem tem preguiça de espremer a fruta propriamente dita. O cara tava vestido de garrafa bojuda de Limmi, só com a cara aparecendo na frente, e mal conseguia caminhar. Fiquei horas rindo dele, e ao mesmo tempo morrendo de pena cada vez que o via perambulando pela quadra.
A cada pedido de tempo os limpadores de chão entravam em cena: crianças pequenas, vestindo camisetas pretas escrito MINI em branco, que riam muito e apostavam corrida com o vassourão. Entre os sets o menino-Limmi passeava pela quadra e me fazia ter ataques de riso.
Acabou que o jogo terminou rapidinho; o Perugia ganhou de 3 x 0, e tenho que dizer que jogou muito bem, apesar do negão que a cada bomba matadora que detonava na quadra do Latina, perdia umas duas recepções de bobeira.
E depois desse jogão-ão-ão fomos ao hospital, porque o Mirco distendeu um tendão da mão direita (não lembro qual, meu Sobotta ficou no Rio) e queria ver o que era. Ficamos horas lá mofando, porque um policial tinha sofrido um acidente de carro e o PS inteeeeiro (ou seja, os dois médicos de plantão) parou pra socorrê-lo. Na nossa frente, um cara asqueroso com pinta de cigano e/ou do sul, cabelo oleoso, cara de sujo, calça cor de tijolo com um rasgo na parte interna da coxa esquerda, sapatos de camurça estilo Birkenstok, abertos atrás, suéter de lã rosa por baixo de um colete absurdo. Com ele, uma garota de cabelo até a bunda, de maquiagem borrada, uma daquelas bolsas nonsense de crochê com pompons na alça, piercing de argola no nariz e a maior cara de drogada que eu já vi na minha vida. Reclamaram sem parar, fumaram onde não podia, e eu já tava torcendo pra que caísse um raio na cabeça de cada um dos dois quando finalmente fomos atendidos, o Mirco fez o raio-X, voltou, falou com o médico de novo e fomos pra casa.
Noitada selvagem, né não?
Quinta-feira é aniversário do Mirco. Ainda não decidimos se vamos sair pra jantar na quinta e dar um balacobaco aqui na sexta ou no sábado, ou se vamos espalhar o pessoal em dias separados, de acordo com o nossos diferentes minicírculos sociais. De qualquer maneira o menu já está decidido:
. pão de queijo (pouco porque só tenho dois pacotes)
. quibe de forno (porque detesto fritar coisas)
. trouxinhas de crepe com recheio de espinafre e ricota (porque comi ontem num restaurante e gostei da idéia)
. mini-quiche de couve-flor e de presunto e queijo (porque eu quero)
. profiteroles feitos em casa (porque o Mirco adora)
. um bolo bem bonito que eu felizmente não irei comer, porque só gosto de bolo branco, sem frescuras, e bolo de festa tem que ser, obrigatoriamente, cheio de nove-horas. Ainda não decidi a receita. Aceito sugestões, mas nada muito exótico, por favor. Cês sabem como é o pessoal aqui; basta ter um abacaxi pra eles acharem que é exótico, tropical, bizarro e, consequentemente, incomível.
Novamente tivemos gente pra jantar aqui em casa, ontem à noite. Não sei se deu pra perceber, mas estamos meio de saco cheio do nosso atual círculo de amizades, e estamos tentando partir pra outra, mudar de ares, expandir os horizontes. Eu já meio que perdi a esperança de encontrar vida inteligente aqui no interior da Papua Nova Guiné, mas fazer o quê, né, a gente vai tentando, pra ver que bicho que dá.
Bela surpresa, então: vieram Gianni, amigo de escola do Mirco, e a mulher, Chiara, filha do dono do maior concessionário aqui da zona. Os dois são altíssimos e bonitos, apesar dos hediondos dentes de fumante do Gianni. Chiara é loura, magra mas não excessivamente, sorriso belíssimo (coisa rara por aqui, quem mora fora sabe que brasileiro é que tem mania de cuidar dos dentes, o resto do planeta tá se lixando), chegou vestida de preto, com um foulard colorido no pescoço. Menina simples, engraçada, sem cerimônia, repetiu meu strogonoff com arroz branco e batatas coradas, deixou o vinho de lado, comeu os quadradinhos de laranja e pediu gelo pra botar no copinho de Bailey’s. Ofereceu-se pra secar a louça, trocamos receitas e histórias de viagem, e começamos a discutir a hipótese de irmos todos juntos à Austrália ano que vem. Sentados no sofá da sala, os pescoços esticados e os olhinhos forçando pra ler os nomes no mapa-mundi na parede, fomos traçando roteiros imaginários e contando histórias de viagens a outras paragens. A irmã dela está morando em Dublin (que aqui se diz Dublino) e ela gostou muito da cidade. A avó tem quase 90 anos e também adora viajar, imaginem que figura que deve ser. Gianni é mais bobinho, como todos os camponeses daqui, mas é muito educado e, apesar de não me conhecer, nem sequer pensou em pedir um cinzeiro: foi direto pra varanda fumar, fechando as portas atrás dele. Maravilha. Vimos as 5.975,43 fotos da Austrália que o Mirco tem espalhadas em vários álbuns, e no final das contas ficamos de nos encontrar outra vez, pra ir ao cinema, e pra jantar na casa deles e ver as fotos do casamento e da lua-de-mel. Será que finalmente vou conseguir ter uma amiguinha normal com quem conversar? Ou vou ter que ir periodicamente ao Brasil renovar meus neurônios com Huňka, Newlands, japa e Uni-Rio people, pra não correr o risco de emburrecer e virar camponesa também?
Primeiro de maio aqui é coisa séria. Todo mundo almoça fora, e quem tem uma empresa paga o almoço pros funcionários. No ano retrasado eu fui ao almoço da oficina, e esse ano foi num restaurante onde a gente já tinha comido uma vez, há muito tempo, e não era lá essas coisas. Mas como foi a mula do Ettore que escolheu sem consultar ninguém, não tivemos muita escolha.
Acabou que comemos mal (era peixe, mas tudo em pequenas quantidades e de pouca qualidade), mas demos muita risada. No nosso canto da mesa tinha o Yavo, da Costa do Marfim, um negão educadíssimo que apesar dos 4 anos de Itália fala super mal italiano mas é muito inteligente e divertido; Dejan, da Sérvia; Mustafa, vulgo Musty, marroquino, uma das pessoas mais feias que eu já vi na minha vida, e que, como todos os marroquinos aqui, bebe álcool e come porco quando não há outros marroquinos por perto; David, maconheiro siciliano (ou seja, é quase como se não fosse italiano) que sempre nos ajuda quando mudamos de computador e tem que instalar tudo de novo; Marco, um esquisitinho de Bastia mesmo; e Katerina, uma polaca da minha idade e com a malícia de uma uva sem caroço, que o Yavo conheceu na igreja mas ninguém sabe por que veio almoçar com a gente, já que ninguém mais a conhecia. Falou-se de tudo, das causas da guerra civil e da pobreza na Costa do Marfim até a relação dos poloneses com o papa. Ri muito mesmo, e ainda troquei várias idéias culinárias com o Yavo, que obviamente adora inhame, farinha de mandioca, manga e banana de verdade em vez dessas porcarias que tem aqui, e por aí vai. Eu adoro inhame e morro de saudade, mas aqui não tem mesmo e ninguém nunca ouviu falar, eu não consigo nem explicar o que é porque neguinho não tem a menor idéia do que seja. Ontem trocamos várias receitas de inhame. E rimos muito da Katerina, que não está acostumada a beber e depois de uns três copinhos de vinho ruim já dava risada sem parar, e COMEU OS CAMARÕES COM CASCA, CABEÇA E TUDO MAIS, porque ela nunca tinha visto um camarão na vida e ninguém avisou a ela que essas coisas não se comem!
Acabamos dormindo depois do almoço e acordando super tarde. Saímos de casa à meia-noite pra encontrar Marco e Michela num bar, e de lá eles tiveram a brilhante idéia de ir dançar. Eu não tenho mais paciência pra esse tipo de programa, honestamente, e a coisa piora porque ninguém nas discotecas italianas sabe fazer uma caipirinha que preste, e ainda por cima usam açúcar de cana não refinado, marrom e que não dissolve nunca. E chegar em casa às quatro e meia da manhã FEDENDO HORRIVELMENTE A CIGARRO acaba com o meu humor. O único divertimento da noite foi ficar rindo das cubistas. Toda boate italiana tem uma ou mais cubistas, que são garotas gostosonas que ficam dançando seminuas em cima de cubos, que na verdade são mini-palcos colocados em pontos estratégicos. As de ontem eram duas, uma louraça belzebu com cara de quem tem o Q.I. de um caramujo e uma morena lindíssima com jeito de entediada que só mexia os quadris e os braços, fazendo biquinho. As duas de meia-calça cortada no joelho, cintos metálicos (meia-calça sem saia ou short, hein!), LUVINHAS SEM DEDOOOOO, bustier de renda e scarpins altíssimos. Todas elas dançam mais ou menos da mesma maneira, sempre muito sérias, como se o seu trabalho fosse importantíssimo pra manutenção do eixo de inclinação da Terra em relação ao sol. Quando eu chegar aí no Rio faço a imitação pra vocês verem.
Hoje quero ir ao cinema de qualquer jeito, tem muito filme que eu quero ver.
Ah, quanto ao Stomp: sou mais a bateria da Mangueira, any time. Onde já se viu batuque em caixa de fósforo ser coisa original?
(O número dos tubos de borracha foi lindíssimo, sutil, delicado, engraçado, um primor. E parabéns à simpatia do grupo. Mas que o espetáculo é repetitivo e cansativo, isso é.)
De volta ao conforto do lar, inventei de fazer a massa e os molhos da lasanha da sessão Fratellão de amanhã. Ficou linda, e eu, que não sei cozinhar sem provar tudo, já posso adiantar que ficou tudo uma diliça.
A festa de aniversário antecipada vai ser sexta-feira, porque a irmã e o cunhado da FeRnanda acabaram tendo um contratempo e não conseguiram ficar até segunda. Sem grilo: vou ter mais tempo de fazer meu strogonoff, coisa que não teria conseguido anteontem, porque trabalhei na loja daquele doido varrido do Fabrizio. Então amanhã vou visitar o açougueiro do supermercado, que já ficou meu amigo e hoje disse que eu tenho uma pele linda e não pareço ter 27 anos, pra comprar carne pro bendito strogonoff. O único ingrediente que não tenho é o molho inglês pra temperar a carninha, mas na hora a gente inventa...
Em tempo: a lasanha eu fiz seguindo uma receita do Cucchiaio di Argento (Colher de Prata), a bíblia da cozinha italiana, que estou comprando em volumes separados de primi piatti junto com uma revista de fofocas, uma vez por semana. Escolhi a receita clássica alla bolognese: ragù que ficou fervendo por muito tempo, temperado com cebola, alho, bacon, pimenta-do-reino e vinho (usei tinto em vez do branco indicado na receita), molho branco que pela primeira vez na vida não empelotou, e nada de mozzarella, mas só parmesão ralado e queijo tipo caciotta (um parente melhorado do queijo prato) em pedacinhos pequenininhos entre as camadas de massa, só pra dar um tchan.
O jantar em Deruta até que foi agradável. O restaurante, escolhido pelo Super Chefão da Iron, fica numa casa antiga de pedra muito bonita, mas com estacionamento precário e perigosíssimas escadas em caracol. O menu era fixo:
Antipasti:
Verdure grigliate – abobrinha, berinjela e pimentão na grelha
Affettati (frios fatiados) – prosciutto crudo, pancetta (bacon enrolado), salame
Fave – favas num molhinho picante delicioso
Fagioli e salsiccia – feijão e linguiça desmanchada num molhinho delicioso
Primi:
Macarrão curto in bianco (sem molho de tomate) com linguiça e aspargos
Macarrão longo alla perugina (molho de tomate com linguiça)
Secondi:
Carne fatiada com radicchio e vinagre balsâmico (nem precisa dizer que dispensei alegremente... Vinagre me faz vomitar e radicchio cru não é muito a minha praia)
Lombo fatiado com vagem refogadinha levemente picante (uma delicia)
Dolce:
Mousse de chocolate, miraculosamente bem feita – digo miraculosamente porque a maioria dos restaurantes acha que qualquer creme de chocolate é mousse, quando na verdade sabemos que mousse é aquela toda furadinha, aerada, leve, delicada.
Café, grappa, limoncello e vino liquoroso. Muita água mineral. Vinho tinto da casa, que era gostosinho, mas me deixou de herança uma dor de cabeça fenomenal hoje.
Tudo isso por 20 € por pessoa. Não é muito, se consideramos a quantidade de comida, mas é que a qualidade não era láaaaa essas coisas. O macarrão curto tava cozido demais, mas fora isso, convenhamos, massa com molho de tomate e linguiça é coisa pra se comer em casa. Quando como fora gosto de pedir coisas que normalmente não faço em casa, por falta de saco, habilidade, ingredientes, sei lá. Mas no final das contas nos divertimos, e é isso o que conta.
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Tive dois ataques de riso sérios ontem. Um por culpa dos galos de Deruta. Já expliquei aqui, pouco tempo atrás, que Deruta é famosa por aquelas cerâmicas majólicas horripilantes. A FeRnanda trabalha numa loja de souvenir em Assis que vende tudo que é cafonice de Deruta, de sininhos inúteis a porta-água-benta, passando pelas famigeradas jarras de vinho em formato de galo – o vinho sai pela boca. Quantas vezes fui visita-la na loja e ficamos horas discorrendo sobre a cafonice do galo!
Pois ontem quando chega o vinho dentro dos galos, na mesa, não resisti e mandei um SMS pra ela contando a beleza que era ter vinho servido saindo do bico do bicho. A resposta curta e rasteira me fez engasgar com o vinho:
- 16 euros a pequena.
Fiquei rindo feito uma besta por horas a fio.
Mas a pior mesmo foi a do Mirco contando suas peripécias da infância. Falava-se das aulas de catequismo, que os meninos só frequentavam pra poder jogar futebol nos intervalos e depois da aula; falava-se das freiras, que pegavam no pé dos alunos. E aí entra o comentário do Mirco:
- A irmã Fulana brigava comigo porque eu comia pedra.
Olhares estupefatos. Alguém (eu) tem a coragem de desenvolver o assunto:
- Como assim, comia pedra?
- Eu comia pedrinha. Claro que não qualquer pedrinha; eu escolhia aquelas que pra mim pareciam diamantes...
Comecei a rir e não consegui mais parar por 10 minutos, até porque cada um começou com a sua piadinha – mas a pedrinha era temperada, era al dente, era fresca, etc.
O problema é que chegamos em casa quase à uma da manhã. Acordei sozinha agora às 7, tomei banho, fiz beicinho pra névoa chata lá fora, e daqui a pouco tenho que ir pra agência. Tô mortinha...
A festa de aniversário antecipada da FeRnanda no sábado foi um sucesso. Eu passei a manhã fazendo os doces, e lá pras três da tarde, quando a FeRnanda chegou com a irmã, Renata, seu marido toscano, o Stefano, e a prima romana, Giulia,
a torta de limão
tava pronta e o bolo prestígio já estava cortado no meio, esperando o recheio de cocada ficar pronto. Prontamente botei as meninas pra trabalhar. Só que na família da FeRnanda NINGUÉM sabe cozinhar nada, nem fritar ovo, então já viu. A Renata foi sovar a massa das coxinhas, mas parecia mais que tava fazendo carinho nela.
A FeRnanda desfiou o frango que eu tinha refogado no dia anterior, mas sobrou tanta carne colada aos ossos que daria pra fazer mais umas dez coxinhas.
A Giulia e depois a Renata fizeram a massa do pão de queijo, que ficou duro, seco e denso feito um meteorito. Em um certo momento resolvemos parar tudo e ir ver a casa que, se tudo der certo, a FeRnanda e o Fabião, que chegou depois, vão comprar em Ripa, não muito longe daqui mas já fazendo parte do comune de Perugia. Ripa tem um castelo, que se chama castelo mas quer dizer burgo medieval, cercado por muralhas. Pois eles vão morar dentro dos muros, na cidadela! Protegidos contra ataques peruginos! Não tiramos fotos porque o Mirco tinha esquecido a máquina fotográfica aqui em casa, mas na próxima vez vamos tirar. O lugar é divino! Os campos em torno são maravilhosos, daquele verde indecente que só existe na Toscana e na Umbria, as casas em torno são lindas, é um lugar super tranquilo, mas ao mesmo tempo a um passo de Perugia. Como disse o cara da imobiliária, em Ripa há dois açougues! Dois! Que modernidade, que megalópole! ;) Ficamos muito felizes por eles; a casa é de pedra, medieval mesmo, linda, e adaptada às necessidades deles. Tô doida pra voltar lá pra fazer umas fotos. Eles devem se mudar em maio. Vão ficar mais longe de nós, mas fazer o quê...
Mas então, voltamos por Bettona, que é uma cidadezinha medieval no alto da colina (como 99% da Umbria, diga-se de passagem...), linda, deliciosa. Só que o frio tava foda e voltamos logo porque ninguém se aguentava em pé com aquele vento gelado na cara. A galera foi pra casa tomar banho, eu botei a quiche de couve-flor no forno e fui tomar banho também. Chegou o Moreno, amigo gatinho do Mirco do qual eu gosto muito e que convidamos pra fazer número par de convidados. Depois chegou o resto do povo e a festa começou.
Renata, Giulia, Mirco, FeRnanda, Fabiao e eu.
Como o frango não bastou pra toda a massa de coxinha que eu tinha feito, acabei fazendo uns risoles de queijo com presunto que, dizem, ficaram ótimos (eu não comi). Os pães de queijo ficaram daquele jeito meteórico mas neguinho comeu assim mesmo, e o que sobrou a FeRnanda levou pra casa pra congelar. A quiche ficou ótima, só sobrou um pedaço, que foi meu jantar de ontem. E os doces ficaram di-vi-nos.
Nós nos divertimos horrores, Fabio bebeu caipirinha demais e dormiu no sofá, Mirco e Moreno, pouco resistentes ao álcool, em meia hora já estavam com as bochechas vermelhas, eu e as meninas fofocamos horrores. Foi uma serata agradabilíssima, mas quando o povo foi embora eu tava a massa falida, com as pernas doendo de ficar em pé cozinhando e limpando o dia todo.
(Renata e o marido Stefano, Giulia, FeRnanda, Fabio, Mirco e Moreno)
(As receitas estão lá, como sempre. Só não botei a das coxinhas porque não ficou 100% do jeito que eu queria.)
E acabei não comentando nossa incursão à IKEA, um dos nossos programas preferidos. Claro que nos perdemos no caminho e viramos à direita quando era pra virar à esquerda, mas considerando o nosso senso de orientação (menor ou igual a zero), até que a volta que tivemos que dar foi pequena.
Chegando lá, a cabeçada de sempre. Um mundo de gente que não tinha coisa melhor a fazer com o sábado à tarde e foi bater perna na IKEA. Aquele sotaque toscano delicioso vindo de todos os lados, o T com a língua pra fora típico do pessoal de Prato (que eles pronunciam Pratho), alguns peruginos comedores de vogais. Não vimos grandes diferenças em relação ao que estava exposto na primeira vez que fomos lá, ano passado. Notamos que nosso espetacular mix de cachorro de parede e gancho pra roupas não estava mais à venda. Em compensação havia minibichos de pelucia foférrimos a 1 euro, porta-lápis bonitinhos, belas coisas pra cozinha, formas pra muffin (que vou usar pra fazer petit gateaux), cadeiras de plástico pra oficina a € 9,90, tapetinhos pro quarto por € 1,90, entre outras coisitchas. Não tem jeito; você pode estar super bem-intencionado, pegar uma sacola crente que todas as suas compras vão caber felizes nela, mas no final das contas você acaba comprando um mucchio de coisas e tem que ceder aos encantos do carrinho. No final da tarde, tínhamos um carrinho por pessoa (a Arianna e a tia do Mirco foram com a gente). Sorte que a mala do carro é gigante, senão um dos quatro teria que voltar pra casa de trem... ;)
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E segunda-feira jantamos chinês com FeRnanda e Fabião. O aniversário da FeRnanda é agora dia 2 de março, e combinamos de fazer uma mini-festa aqui em casa, já que nosso apartamento é maior e eu tenho uma cozinha mais equipada (a FeRnanda não cozinha). O cardápio: coxinha de galinha, pão de queijo, guaraná, quiche de couve-flor ou empadão de frango ou torta de cebola (não decidimos ainda), bolo Prestígio. De qualquer maneira estamos organizando uma excursão à Castroni, em Roma, pra abastecer as nossas dispensas tupiniquins. A FeRnanda tem mesmo que ir à capital pra pegar uns sapatos que deixou com os primos que moram lá, então vamos matar dois coelhos com uma porrada só.
Mãe, pede a receita do bolo Prestígio pra vovó, por favor, que eu não tenho! E a do quiche também, que ela já me deu 300 vezes mas eu perco SEMPRE...
A serata de sexta na casa da FeRnanda e do Fabio foi ótima. Rimos, vimos os zilhões de fotos do casamento, bebemos vinho, ouvimos o CD da Arca de Noé (!!!!!!). Claro que não deu tempo de botar todas as fofocas em dia; afinal, ela ficou fora 2 meses, e aconteceu muita coisa tanto na vida dela quanto na minha. Mas devagar, devagarinho a gente vai tricotando...
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Em compensação, ontem fomos jantar na casa da família sérvia. E foi um saco. E foi toda aquela empurração de comida outra vez – pelo menos tinha as trouxinhas de repolho com carne e arroz, que eu amo, e massa folhada de queijo – e o papo chatérrimo sobre linguiça e sobre a vida na estrada (tanto o tio do Mirco quanto o chefe da família sérvia são caminhoneiros). Aproveitamos que o Mirco já tava meio bebinho depois de 2 copos de vinho e que eu tava com uma dor de cabeça lancinante e fomos embora rapidinho. Eu, hein.
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E amanhã termino a epopéia sérvia. Tô sem saco de ajeitar as fotos...