Nenhum de nós tinha visto o verdadeiro David do Michelangelo, então lá fomos nós cedinho pra Florença. Perdemos a manhã inteira na fila, eu e Mirco, enquanto mamãe e Margareth iam às compras. Margareth comprou apartamento no Rio e está num furor de decoração que dá até medo e saía comprando tudo o que era estatuinha que via pela frente. Mas quando finalmente conseguimos entrar e ver o homem, rapaz... Dá até arrepio. O resto do museo vimos meio correndo porque já passava da hora do almoço; o vendedor de uma loja de estatuinhas onde Margareth dizimou o estoque nos recomendou um restaurante honesto e freqüentado pelos locais, e encaramos. Não nos decepcionamos: pão delicioso feito em casa, azeite verdinho maravilhoso, um antipasto com cada salame divino, e massas gostosíssimas. Demos mais um giro rápido na cidade pra não voltar pra casa muito tarde, e ainda conseguimos jantar na sagra de Castelnuovo, com Marco e Michela. Assim que der boto fotos de Florença aqui.
Não dormi muito bem. Acordei às quatro da manhã e comecei A Short History of Nearly Everything, do Bill Bryson, aquele que a Cora comentou há algum tempo e que já estava na minha estante há séculos me esperando. Estou AMANDO e quase fiquei triste quando chegou a hora de levantar e ter que parar de ler pra me arrumar, tomar um bom café da manhã e sair correndo pra pegar o trem das seis e vinte pra Roma.
Porque hoje foi dia de Roma, queridos, aquela que é tudo na vida.
Li um pedação do livro no trem, mas trem bom é trem que te adormece, e não ofereci resistência: chapei mesmo e só acordei em Orte, com o Mirco telefonando perguntando se tava tudo OK. Sim, sim; abandonei o pobre Bill e fiquei admirando a vista da janela. A viagem de trem pra Roma é uma das minhas preferidas. Vê-se de tudo: cavalos no "quintal" de galpões, carneirinhos pastando, cachorros pastores, casas lindas e imensas, casas horrorosas amontoadas praticamente de cara pra linha do trem, roupas nos varais, bosques, outros trens, carrões de luxo estacionados em frente a casas que caem aos pedaços, pinheiros alinhadinhos no topo de colinas. Gradualmente fomos abandonando a neblina invernal da Umbria, e quando cheguei a Roma o céu estava aberto.
Eu tinha combinado com a Julie que se chegasse em Roma e o tempo estivesse uma titica eu esperaria por ela lá mesmo, lendo meu livrinho, mas com o céu azulzinho não tive outra alternativa: saí perambulando pelas ruas, e marquei de encontrar a Julie na Piazza Barberini. Eu nunca faço o mesmo percurso quando vou a pé da estação ao centro (eu SEMPRE vou a pé da estação ao centro), e hoje não foi diferente: poderia ter chegado à Barberini rapidinho, mas, depois de uma perambulada na estação pra ver as vitrines, embiquei na Via Cavour e dei uma volta desgraçada, virando aqui e ali, seguindo o meu péssimo instinto de orientação e fuçando ruelas e escadarias. Virei na Via degli Annibali e dei de cara com o Coliseu. Peguei a Via dei Fori Imperiali, passei em frente ao Foro Romano assim como quem não quer nada (cês tão entendendo direito o que eu tô falando? PASSEI EM FRENTE AO FORO ROMANO, DEI DE CARA COM O COLISEU, ETC ETC. Roma é realmente tudo na vida.), caí naquele furdúncio da Piazza Venezia, peguei a inevitável Via del Corso, entrei na nova Galleria Esqueci o Nome bem na hora em que tavam abrindo a Zara e a galera que tava esperando na porta entrou estourando boiada, saí da Galleria e depois do Palazzo Chigi virei na Via del Tritone, que subi até chegar à Barberini. Não sei como a Julie me viu e reconheceu lá da casa do chapéu, deu tchauzinho e lá fui eu encontrar mãe e filha. Eu trouxe pra Camila um exemplar do Gênio do Crime que comprei no Rio em novembro passado e tava só esperando uma oportunidade de dar o presente. Espero que ela goste. As duas são muito simpáticas e é muito engraçado ouvir a Camila falando português com sotaque baiano e italiano com sotaque napolitano :) Dali descemos toda a Tritone de novo, passamos por trás da Piazza Colonna e de Montecitorio, ali pela zona do Pantheon, e fomos pegar sol sentadinhas na Piazza Navona. Batemos papo até a Ane ligar: estava estacionando o carro lá na casa do chapéu, e dali a meia hora deveríamos nos encontrar com ela em frente à Zara da tal Galleria. Voltamos tudo de novo até a Via del Corso e entramos na galeria, que é linda, pra esperar Ane e companhia.
Quando finalmente chegou, quase tive dois trecos: primeiro porque eu gosto MUITO da Ane e do Alfredo e tenho uma imensa admiração por ambos; segundo porque a Isabella é a coisa mais fofa simpática e sorridente desse planeta. Você olha pra cara dela e ela ri. Você faz careta e ela ri. Você mexe qualquer parte do seu corpo sem um propósito específico e ela ri. E ri franzindo o nariiiiiiiiiiiiiiiiiiz! Sabe criança que você quer morder de tão gostosa? Ecco.
Dali caminhamos mais um pedaço de volta à zona Pantheon, pra catar o restaurante que o Alfredo tinha reservado pro almoço, seguindo uma dica de um amigo. Chama-se, se não me engano, La Tavernetta, fica na Via degli Spagnoli (uma ruazinha insignificantemente linda perto da Piazza delle Coppelle) e é administrada por brasileiras. Pagamos dez euros por cabeça e comemos um primo e um secondo (o menu é bem limitado, lógico, mas tudo dá vontade de comer), bebemos água e vinho. Nada de extraordinário, mas honesto. Dali voltamos ao Pantheon pra encontrar outras duas primas da Julie, voltamos ao restaurante pra elas almoçarem, voltamos ao Pantheon pra catar a Gelateria della Palma (na Via della Maddalena), que faz uns sorvetes divinos e onde eu SEMPRE vou pra tomar sorvete de maracujá, de novo ao Pantheon pra reencontrar a família da Julie, e de lá a pé pro Coliseu, que elas ainda não tinham visto. Quando eu cheguei, bem cedo, não tinha nada de especial nas ruas, mas àquela hora da tarde já havia vários tapumes montados pra Maratona di Roma do dia seguinte. Fui batendo papo com o Alfredo e desviando dos tapumes e dos turistas. No Coliseu nos despedimos, e voltei a pé pra estação, sempre pela Via Cavour porque meu trem saía dali a meia hora e eu não podia me dar ao luxo de me perder, embora a vontade fosse grande. Àquela altura do campeonato meus pés também já tavam digamos pedindo arrego, e, agradecida a mim mesma por ter saído de casa com a mochila praticamente vazia, foi com grande prazer que sentei na minha poltrona do Eurostar (não tinha trem de pobre naquele horário) e continuei com o Bryson. Eurostar não é Eurostar se não atrasa; cheguei em Foligno com três minutos de atraso, e o trem da conexão pra Perugia estava só nos esperando. Em vinte minutos estava em Bastia. Mais cinco minutos de carro e cheguei em casa.
Felizmente Marco e Michela tinham desistido de jantar fora, porque eu não teria agüentado não. Eu AMO passear a pé em Roma e o dia foi maravilhoso, mas muito cansativo. E vou fazer uma pequena confissão aqui: eu prefiro perambular em Roma sozinha. Não sei por qual motivo, mas não gosto de dividi-la com ninguém. Tudo bem que eu caminho rápido demais e detesto esperar gente lenta, mas não é só isso. Gosto de passar horas quietinha, sem trocar uma palavra com ninguém, só observando e cheirando e ouvindo e pensando. Amo.
Acordamos tarde, tomamos café em casa mesmo e fomos direto pro aeroporto. Queríamos passar no supermercado pra comprar as sopinhas em lata que adoramos, mas não dava tempo e nem tínhamos espaço na mala (era uma mala pequena pra nós dois, não rolava). O vôo saiu no horário, como sempre, e chegou cinco minutos antes, como sempre. Pagamos 49 euros de estacionamento em Ciampino, bastards!, e fomos direto pra casa. Em dez minutos desfiz a minimala, escovei os dentes e saímos correndo pra Santa Maria. Deixamos os presentes da Arianna e da Lucia, batemos um papo rápido com o Leguinho e encontramos Gianni e Chiara pra ir ao cinema em Foligno. Àquela altura do campeonato eu já sentia as primeiras pontadas atrás do olho esquerdo, mas, burra, ignorei solenemente. Lógico que lá pra metade do filme (Match Point, achei uma caca) eu já nem sabia mais onde estava. Paramos pro pessoal comer uma piadina ali perto e nos mandamos pra casa, eu morrendo. Já cheguei à conclusão que não posso ficar muito tempo sem comer, porque logo me vem a enxaqueca. Não sei qual mecanismo fisiológico pode causar uma coisa assim, mas é batata: é eu ficar sem comer que a maldita vem. Claro que não acontece freqüentemente, muito pelo contrário, já que eu penso em comer durante 28 das 24 horas do dia, mas quando acontece, é batata.
O dia amanheceu lindo, mas frio pra cacete. Mirco dormiu até tarde; eu acordei cedo e aproveitei pra estudar um pouco de Studi Culturali (aquele do livro maneiro de Rifkin, Il Sogno Europeo). Resolvemos ir ao centro pra um brunch, e pro Mirco cortar o cabelo. Ele agora pegou essa mania de colecionar cortes de cabelo internacionais: já cortou as madeixas na Sérvia, no Rio, em Rouen, e agora queria em Rotterdam. Ontem tínhamos passado no centro rapidinho pra pegar um terno do Rob numa loja e dar uma olhada nos shoppings, e aproveitamos pra passar no barbeiro tradicional do Hotel New York pra marcar horário pra hoje. Então lá fomos nós.
Estávamos marcados pras onze, mas o Rob acordou tarde e chegamos às onze e oito. Foi só entrarmos que uma das duas funcionárias olhou pra nós, olhou pro relógio na parede e antipaticamente nos informou que elas estavam com o horário muito apertado, que ela não podia se ocupar do Mirco porque outro cliente estava pra chegar, mas a sua colega o faria. Cara, a garota demorou 50 minutos pra cortar a bosta do cabelo! Fio por fio, e no final das contas nem parece que cortou! Enquanto isso, a idiota da antipática (primeira holandesa antipática que eu conheço) ficou só perambulando pra lá e pra cá, mudando coisas de lugar, fazendo barulho, telefonando. E o tal outro cliente nada, lógico. Eu e Stefania ficamos observando o lugar, que é muito interessante, à moda antiga, com aquelas cadeiras de barbeiro maravilhosas (depois boto fotos, o Mirco não descarregou a máquina fotográfica ainda) e fotos antigas nas paredes. Rob tinha nos explicado que além do prédio da Prefeitura e de uma grande igreja no centro, nenhum outro prédio sobreviveu aos bombardeios da II Guerra. O Hotel tem esse nome porque ali ficavam os escritórios da empresa de navegação que levava os imigrantes pros EUA, e é um ponto histórico importante da cidade porque era a última coisa que os imigrantes viam quando iam embora, e a primeira coisa que alguém via quando entrava no porto de Rotterdam.
A garota levou tanto tempo cortando o cabelo do Mirco que quando acabou já era meio-dia. Pagamos o absurdo de 29 euros (corte de cabelo agora só em país subdesenvolvido, tá, lanterneirinho querido?) e fomos ver se ainda rolava o brunch no restaurante do hotel. Lógico que não, né. Então acabamos almoçando, até porque a fome era intergaláctica – ninguém tinha tomado café na esperança de se entupir de pão fresquinho e chocolate quente. Eu fui de salmão com molho de cogumelos, Mirco de filé com fritas. A comida estava ótima e o ambiente é bem interessante. A vista também é bonita.
Dali fomos à feira, no mercado. Compramos muito peixe baratíssimo e fresquérrimo pro jantar, pães sementudos e escuros como eu gosto e não acho na Itália, queijos bola bons pra fazer misto-quente, abobrinhas pra fazer com o camarão. Gastamos uma titica: com 14 euros compramos meio quilo de vongole, meio de mexilhões, meio de camarões pequenos, meio de camarões graúdos, dois filés de atum liiiiiiiindos, e quatro "molhos" de canolicchi, não sei como se chamam em português e muito menos se existem por aí; são um tipo de mexilhão comprido, que normalmente se faz gratinado no forno, com farinha de rosca, alho e salsinha. Adoro, e na Itália custam uma fortuna porque não são fáceis de "caçar": como ficam enterrados na areia, a rede não os pesca, e alguém tem que ir lá mergulhar e desenterrar um por um. Largamos as compras no carro do Rob e voltamos pro centro pra mais compras. As lojas de coisas pra casa são lindas, cheias de coisas bubus (comprei várias pra Newlands e mamãe). Acabamos comprando na Dille & Kamille (Korte Hoogstraat 22) toalhas de mesa lindas que estavam na oferta e que ninguém na Itália vai ter igual, ho ho ho, entre outras coisas fofas. Eu adoro o jeito que os holandeses têm pra decorar as casas. Sobretudo acho FENOMENAIS as janelonas imensas que deixam ver tudo, mas ninguém vê porque ninguém olha porque tem mais o que fazer. Acabo vendo sempre alguma coisa interessante no beiral das janelonas: um belo vaso de formato diferente, uma orquídea deslumbrante, castiçais maneiros, composições harmoniosas e invariavelmente simples de flores bobinhas. Adoro, adoro, fico louca admirando as janelas.
Depois de muito comprar, deixamos a Stefania em casa pra preparar um jantar pra cinco hóspedes, e fomos dar uma volta em Delft. Achei uma gracinha, mas tava um frio do caceteeeeeeeeee e o Mirco começou a se sentir mal. Voltamos pro estacionamento, pegamos o carro e fomos a Dan Haag (Haia), mas nem descemos do carro porque o vento tava foda. A cidade é praticamente um grande escritório e não tem muita coisa pra ver, mas há algumas casas divinas e sei que tem um museu muito interessante. A praia também pareceu bonita, e Rob disse que no verão fica absolutamente lotada. Voltamos correndo pra casa, morrendo de fome, e enquanto o Mirco tomava uma aspirina e deitava cinco minutos na cama eu fui limpar os camarões pequenos, os mexilhões e as vongole. Saltamos os camarões com abobrinha na panela com alho e azeite, só até o camarão mudar de cor e cozinhar o tempo justo; depois jogamos os fusilli cozidos al dente e pronto. Enquanto devorávamos o macarrão, a Stefania abriu os mexilhões e as vongole no alho e azeite com um copo de vinho branco. Comemos tanto que nem consegui terminar o filé de atum no forno sem nada, só um fio de azeite e pimenta-do-reino. Os camarões graúdos e os canolicchi que sobraram resolvemos levar pra Itália. E que os deuses da Aduana nos protejam.
Acordamos cedo, passamos na oficina pra largar a Uno porque alguém podia precisar, e nos mandamos pra Ciampino. O tempo tava feio por essas bandas, e quando paramos no centro de Ciampino (ô cidade feia!!!) pra comprar umas focaccias pro almoço no avião, o vento soprava terrivelmente. Mais tarde melhorou um pouco. O vôo com Tio Ryan partiu no horário, como sempre, e chegou em Eindhoven dez minutos antes, como sempre. Aterrissamos na parte nova do aeroporto, que ainda não tínhamos visto – no ano passado descemos na parte velha que mais parece um quiosque, e dali pegamos o carro alugado pra ir a Düsseldorf, lembram? Dessa vez esperamos uns dez minutos ali em meio a toda aquela luz, a todo aquele metal reluzente, admirando a arquitetura e a simplicidade das linhas, esperando o Rob.
Fomos direto pra Rotterdam e encontramos a Stefania em casa preparando as coisas pro grupo de aula de cozinha que chegaria logo depois. Eles fizeram uma bela reforma em casa, e agora a cozinha é um ambiente único com a longa sala de jantar/estar/televisão. Atualmente a Stefania está atacando em 4 fronts diferentes: dá aula de cozinha, cozinha take-away, faz catering e ainda por cima a sala de jantar funciona como um microrestaurante. A cozinha ficou linda e quem vem pra jantar fica encantado, não só com a atmosfera rústico-italiana mas principalmente com o menu, todo rigorosamente feito a mão: ravioli com recheio que pode variar de cogumelos ao tradicional ricota e espinafre, frango ou lombinho de porco em receitas sempre muito delicadas, refogadão de pimentão ou berinjela, tiramisù ou torta de maçã, uma garrafa de vinho. Logo depois que nós chegamos um grupo apareceu pra ter aula, e ficamos assistindo. É muito engraçado ver aqueles homões enormes vestindo avental laranja, lutando com a faca afiada pra cortar tomatinhos ao meio, descascar alho, misturar a carne moída com os temperos pra rechear as coxas desossadas de frango. O curso dura umas três, quatro horas, e depois todo mundo come o que cozinhou, lógico.
Eu e Mirco, que estávamos morrendo de fome porque afinal focaccia al rosmarino não é almoço nem aqui nem na China, fomos com o Rob comer pizza no O Pazzo (Mariniersweg 90). A pizza estava ótima, mas o ambiente é realmente maluco como diz o nome: o forno a lenha é coberto de mosaicos brilhantes pra formar um polvo gigante, e a boca do forno é a boca do polvo; no meio do salão, uma árvore com tronco e ramos cobertos de escamas prateadas que, ao chegar mais perto, vê-se que são velhas moedas de liras italianas; no banheiro, canto gregoriano tocando. Um lugar muito esquisito, mas a pizza era muito boa. E depois não tivemos forças pra fazer muito mais não; voltamos pra casa, batemos um papo rápido com o Rob e fomos dormir antes que os hóspedes terminassem de comer.
E hoje, do nada, resolvemos ir a Roma. Ontem à noite Gianni ligou pro Mirco perguntando se topávamos acordar cedo pra ir a Roma ver o Museu do Vaticano. Era uma coisa que estávamos querendo fazer há muito tempo, porque o Mirco não visita o museu há seis anos, e Gianni e Chiara também não viram ainda a Sistina depois da famosa restauração. Então acordamos às seis e meia, tomamos café com calma e às sete e quinze eles passaram aqui pra nos pegar. Como hoje rolava proibição de circulação de veículos poluentes, não tinha trânsito ne-nhum na cidade, e pudemos ir direitinho até o centro (o carro do Gianni é novo, Euro 4, teoricamente não poluente) e largar o carro em frente à casa da tia solteirona do Gianni, que mora a dois quilômetros do Vaticano, che le piasse un vomito.
Em algum ponto do Viale Angelico paramos pra comprar croissants e tortinha de Nutella naquela padaria estranha e subterrânea que eu e Valeria descobrimos acidentalmente naquele longínquo novembro de 2001, lembra, amigaaaaaa? Comei uma crostatina à sua saúde. Lembra que sentimos o perfume de pão na rua, olhamos pro lado e vimos a fila que chegava até à entrada da escadaria, na rua? Lembra que compramos brioches pra comer no lugar daquele pão maldito cascudo e sem sal que nos davam no albergue? Lembra que eu perguntei como se chamava a tortinha, e a atendente gritou "crostatina" mas eu não consegui entender por causa da confusão – e porque não conhecia a palavra? Que diliça :))))))
Continuamos pelo Viale Angelico às moscas e quando avistamos os murões gigantes do Vaticano subimos a ladeira e fomos seguindo as placas até chegar na porta. Só queeeeee... Nós quatro, seres civilizados, jamais poderíamos imaginar que um museu da importância do Vaticano estaria fechado aos domingos, e não nos demos ao trabalho de conferir o horário na internet. E demos de cara com a porta fechada. Nós e tantos outros turistas indignados. Mas tudo bem, é impossível entediar-se em Roma, então pegamos o caminho da roça e fomos pra São Pedro mesmo. Gianni e Chiara, carolíssimos, queriam porque queriam ver a tumba do Papa, e lá fomos nós encarar a fila, que felizmente andava bem rapidinho, pra ver a tumba mais boba do mundo.
Sou mais aquela toda egocentricamente decorada com mosaicos. Eu acho assim, se é pra ser enterrado, faz logo uma tumbona fashion, senão é melhor cremar, né não? Mas enfim, tem gosto pra tudo, e depois da tumba resolvemos subir na cúpula, coisa que só eu já tinha feito antes. Chegamos lá em cima vomitando as tripas de tão sem fôlego depois dos 350 degraus pós-elevador, mas, como sempre, a vista vale a pena. Vamos lá, repitam comigo o mantra: Roma é tudo na vida, Roma é tudo na vida, Roma é tudo na vida...
TUCO E HUNKA, SE VOCÊS NÃO VIEREM LOGO VER ESSAS COISAS COMIGO EU VOU FICAR DE MAL.
Milenar técnica japonesa de tiração de foto.
Pra recuperar o fôlego, fomos assistir à missa do meio-dia e quinze. Posso dizer muito chiquemente que a primeira missa da minha vida foi no Vaticano! :P Ô coisa chata, socorro! E tinha um padre novinho que pelas pausas completamente erradas e pelo sotaque bizarro era quase certamente brasileiro. O coro que cantou umas ave-marias era DIVINO – eu ADORO coros, e logo lembrei daquele que vimos em Santa Maria Maggiore, lembra, Valerrí de Parrí, aqueles meninos ingleses que estavam no nosso albergue e encontramos no ônibus indo pra igreja cantar, e choramos feito duas bebezonas porque era realmente lindo demais?
Depois da maldita missa chatona fomos almoçar pizza num café na Via Giulio Cesare (a Ane tinha recomendado uma trattoria mas ninguém tava com vontade de sentar pra comer, senão o sono acabaria nos vencendo), e dali resolvemos bater mais perna indo até a Piazza di Spagna pela Via del Corso (Valeriaaaaaaaaaaaaaaaa!) e depois virando na Condotti pra ver os japoneses atacando a Prada e a Louis Vuitton. Paramos na Furla pra comprar um anel bonitão na liqüidação (na mesma Furla onde comprei aquele anel divino com perolinhas que você escolheu pra mim, Lulu), comprei um chaveiro de galinha lindinho, fotografamos esse cachorro delicioso do dono da loja que dormia com a cabeça por baixo do balcão e ficamos vendo a cabeçada passar. Quando cansamos, pegamos o metrô Spagna e descemos novamente em Ottaviano, fomos visitar a tia do Gianni que é a maior figuraaaaaa, e voltamos pra casa.
Precisamos fazer esses programas mais vezes...
p.s.: As fotos ficaram horríveis porque o tempo tava feio e o Mirco tava sem paciência pra ajustar a máquina direito. Foi mal aê.
E acabamos de comprar nossas passagens. Infelizmente só achamos pra novembro, e assim vou perder o casamentão da Sabrina, dia 22, mas não teve jeito; a diferença de preço é assustadora. Infelizmente também é com a Iberia, o que comporta dois problemas: 1) ouvir gente falando espanhol o vôo todo e 2) não acumular milhas de coisa nenhuma, já que a companhia faz parte de um grupo de companhias aéreas que não me interessa absolutamente. Bosta.
Eu fico nervosa quando faço certas coisas online. Tipo comprar passagens aéreas tão caras. Fico com medo de alguma coisa travar (happens often) e a gente acabar pagando duas vezes, sei lá. Por isso quando finalmente imprimimos os e-tickets deu um alívio danado. Ainda mais porque estávamos caindo de sono, os dois, e nessas situações a probabilidade de errar alguma coisa é grande. Mas deu tudo certo e dia 6 estou indo embora de Roma. Chego dia 7, segunda-feira, e volto dia 21. O Mirco vai mais tarde, parte dia 12. De modo que Hunkette, darling, ative-se pro 15 de novembro, oui? Eu queria ir a Paraty, que não conheço. Quem se habilita? :)
Algumas das fotos da viagem, aqui (e tem umas vacas normandas aqui também). O relato da Epopéia Normanda, assim que eu tiver mais tempo.
Está praticamente decidida a próxima viagem do ano. Adivinhem.
Eu sugeri São Petesburgo – Tallinn – Helsinki, mas é caro. Sugeri Budapeste – Bucareste – Vienna, mas não querem. E vamos acabar indo pra Argentina outra vez. Agora vai ser Península Valdez, e eu vou dar um pulo no Rio. Gianni e Chiara acho que também vão, se conseguirem interromper a comilança deslumbrada de carne em terras hermanas.
Pra compensar o terror de ontem, dedicamos o dia às compras. Difícil escapar da compulsão consumista por aqui, quando o seu salário vem em uma moeda que vale 4 vezes mais que os pesos argentinos. A Tierra del Fuego é uma província com situação especial, e é uma zona tax-free. É CA-LA-RO que no final das contas os preços são mais ou menos os mesmos do resto do país, porque os vendedores aumentam levemente os valores, pra compensar a ausência de taxa, mas dá no mesmo. Então saímos comprando tudo. Horas perdidas naquele tal mall-like thing na San Martin. Compramos tênis Adidas baratos, meias, calças jeans, pullovers, cachecóis charmosos, um casaco pesado de lã pro Mirco, que normalmente só usa jaquetas esportivas, eu comprei uma bolsa de design clássico mas couro diferentão, compramos uma bolsona daquelas de levar tralha pra academia, da Nike, baratérrima, enfim, um pouco de tudo. Entulhados de sacolas, fomos almoçar no Opíparo, outra vez. Enquanto esperávamos a pizza e a massa, transferimos a bagulhada das sacolas pra bolsa da Nike, que virou bagagem de mão do Mirco. Ainda demos mais uma passeada em lojas de cafonices pra turista, onde Gianni comprou umas cuias de chimarrão pra dar de presente pra família.
Voltamos ao hotel, fechamos nossa conta, chamamos um remis, e quando estávamos abanando as mãozinhas dando tchau pra senhora o Gianni lembrou de confirmar que o transporte do hotel pro aeroporto estava incluído na diária, assim como o do aeroporto pro hotel. A senhora faladeira, porteña e paracula, fez um gesto com a mão, assim, como quem não quer nada, e disse, na sua voz de taquara rachada:
- No no, pagan los chicos!
Deixa pra lá, pensamos, sai menos de um euro pra cada um, não vamos nos lamentar. E fomos, todos espremidos entre malas e bolsas, rumo ao aeroporto. Felizmente não rolou stress turbulêntico na decolagem. O vôo foi chato e interminável, mas no fim das contas chegamos, às onze da noite passadas. Dois táxis pro hotel, porque as malas não cabiam em um só, e lá fomos nós pra rua Esmeralda – e pra uma enorme decepção hoteleira.
O hotel é quatro estrelas, mas é de uma cafonice ímpar. Não sei se demos o azar de pegar os dois quartos mais horripilantes do hotel inteiro, mas o fato é que o quarto do Gianni e da Chiara era minúsculo e todo velho, mas pelo menos o banheiro era mais ou menos decente. O nosso, maior, dava de frente pra Esmeralda. Não sei se já comentei, mas neguinho dirige em Buenos Aires muito, mas muito pior que em qualquer outro lugar do mundo que eu já conheci, inclusive Nápolis. Os ônibus passam a cem por hora, a qualquer hora do dia ou da noite. O barulho é insuportável. O ar condicionado não desliga e contribui com o barulho. O carpete (ewwww) é VERDE DIARRÉIA. O banheiro é do mesmo verde, a cortina é de plástico, a banheira de hidromassagem, que obviamente não funciona, é tão velha que o fundo é todo manchado, além da cortina de plástico há uma cortina de tecido, de babadinhooooooooos, "protegendo" o box, a porta, em arco, não abre toda nem fecha toda, o teto do banheiro, novamente em madeira e em arco, dá um aspecto de adega que é a última coisa que alguém espera de um banheiro, a luz do espelho não ilumina coisa nenhuma, e vem de dois lustres ridículos, em ferro batido com folhas pontudas assassinas, montados exatamente na altura dos olhos de uma criatura de altura normal. Mirco deu inúmeras cabeçadas nessas flores-lâmpadas, e ainda machucou a mão dando um soco de ódio bem em cima de uma dessas folhas pontudas de ferro.
Pelo menos tem TV a cabo. Juntamos as duas camas (o quarto era no esquema twin beds), dispensei os cobertores brancos de acrílico, encardidos (provavelmente não de sujeira, mas porque acrílico claro escurece mesmo) e feios, e dormi o sono pesado de quem sobreviveu à Pinguinera.
Tomamos café da manhã na cozinha da casa da senhora, e pudemos ver melhor o marido, que nos recebeu depois do jantar ontem à noite. Parece um pingüinzinho, mas é MUITO simpático e bonzinho. O café da manhã é aquele sofrimento pra mim, que normalmente como coisas salgadas: aqui, assim como na Itália, o menu do desayuno é doce, e inclui as malditas medialunas, que nada mais são do que croissants doces e sem recheio, e café com leite. Pelo menos a senhora descolou um leite frio com chocolate pra mim, e comi as medialunas com manteiga e com queijo e presunto que sobraram de Calafate, fingindo pra mim mesma que eram deliciosos croissants salgados.
O tempo tava uma bosta: o vento tinha parado de soprar desde a noite anterior, mas o céu tava nublado e com pinta de chuva. Decidimos visitar o Parque Nacional Tierra del Fuego pela manhã, e, se o tempo melhorasse, iríamos à tarde visitar a Pinguinera, a ilha do canal de Beagle onde os pingüins se reúnem pra botar ovos, cuidar dos pimpolhos antes de migrar pra climas mais amenos, pra bater papo, essas coisas. Chamamos um remis e fomos direto pro porto, reservar lugar na excursão pra Pinguinera, e depois pro centro de informação turística, na rua San Martin, onde tínhamos uma missão muito importante a cumprir: carimbar o passaporte com o carimbo da cidade mais ao sul do mundo. Também ganhamos certificados, provando que estivemos aqui nesse buraco. Nem sabíamos dessa história do carimbo; fui eu que, com meus olhos de lince, vi dois carimbos lindos no passaporte da senhora de Valencia que visitou Torres del Paine com a gente, e deduzi que teria algum centro de informação pra turista que nos dava as carimbadas. O melhor é que é tudo de grátis.
Dali fomos pro parque. O passeio de três horas com um remis custa cerca de 90 pesos, se não me engano, valor que dividido por quatro pessoas e novamente por quatro pra quem ganha em euro fica ridículo. Como é bom fazer turismo em país em crise! Mas enfim, não sei se era porque o tempo tava realmente muito feio e começou a chover, ou se é o parque que é meio assim-assim mesmo, sei que não achamos nada de oooooh. Fora uma lebre aqui e ali, uma ave de rapina imensa pousada num galho numa clareira e uns bichos esquisitos, a única coisa que vimos de diferente foi a castorera, um dique construído pelos castores. Aí vocês me perguntam: ma che cazzo fazem CASTORES nesse fim de mundo?
O negócio é o seguinte: lá pros idos dos anos 50, o exército argentino teve a feliz idéia de importar 25 casais de castores do Canadá, que deveriam ter dado início a uma próspera criação de animais pra exploração da pele, pra fazer casacos e jaquetas que protegessem contra os ventos patagônicos. Só que obviamente a dieta patagônica não é igual à dieta canadense, e alguma coisa na alimentação transformou o pêlo dos castores, antes longo e macio, em uma coisa dura e áspera e corta que não serve pra coisa nenhuma. Os militares, então, com sua mitológica presença de espírito e criatividade e visão do futuro, o que fizeram? Largaram os castores pra lá. Só que no Canadá quem mantém as populações de castores sob controle são os ursos, que certamente têm mais o que fazer do que procurar sarna pra se coçar nesse fim de mundo que é a Patagônia. E então aconteceu o óbvio: sem predadores, os castores começaram a se reproduzir loucamente, e a população aumentou demais. Virou praga, pior que baratinha francesinha. Pra piorar as coisas, o castor patagônico não tem predador, mas ele não sabe disso, e continua construindo seus diques, que nada mais são do que um modo eficaz de afastar quem gosta de castor no menu, como se nada tivesse mudado. Os diques, porém, inundam áreas antes secas, e secam áreas antes irrigadas pelo rio. As árvores morrem por falta de água ou por excesso de água. Tem mais: eles se alimentam da casca das árvores, que acabam morrendo se muita casca for retirada. Tem mais ainda: como os dentes dos castores não páram nunca de crescer, eles têm que roer madeira o tempo todo pra gastá-los, mesmo madeira que não serve pra comer. Mais árvores destruídas. Resultado: pra tentar acabar com a praga, o governo paga 5 pesos pra cada castor abatido. Só que 5 pesos não compensam os gastos com armas e munição, e muito menos o tempo e o esforço necessários pra caçar um castor, que não é bobo e só dá as caras fora do dique à noite. Legal, né?
Enfim, depois da tal volta no parque pedimos pro motorista nos deixar no restaurante Opíparo, quase de frente pro porto (Av. Maipú, 1255 – peçam pra ser atendidos pela Vanessa, que é boazinha e muito esperta e inclusive foi devidamente convidada pra conhecer a Itália), que tínhamos visto na noite anterior e nos parecera simpático. Acertamos em cheio: depois das devidas instruções, conseguimos comer massa al dente e pizza sem muito queijo, sem muito orégano e com um pouco de tomate extra. Felizes da vida com a barriga cheia, fomos a pé até o porto e pegamos o microônibus que nos levaria até a Estancia Harberton, uma espécie de fazenda, de onde pegaríamos a lancha até a Pinguinera. Pra chegar à Pinguinera, pode-se pegar um catamarã, que leva 4 horas e chega praticamente em cima da ilha, mas não deixa você desembarcar. Escolhemos a combinação microônibus + lancha porque assim poderíamos descer na ilha e caminhar entre os pingüins.
Além de nós, no microônibus, tinha um casal (ele mexicano e ela francesa), um outro casal de americanos, uma holandesa solitária muito boazinha, um casal de argentinos com uma bebezinha de colo, a Giuliana, LINDA e educadíssima, e a guia, Ana, com um caso grave de hemangioma no rosto, mas simpática. No caminho, paramos pra fotografar uma raposa que fazia cocô na beira da estrada, depois as árvores-bandeira, que ficaram tortas por causa do vento, umas vacas que passeavam por ali. Depois de muito sofrer com a estrada esburacada, finalmente chegamos à tal Estancia, que é absolutamente decepcionante.
Um pequeno aparte pra explicar a história da Estancia: um Thomas Bridge, órfão encontrado sob uma ponte e com um T bordado nas roupas e adotado por um pastor da igreja protestante inglesa, foi parar nas Malvinas pra catequisar a galera. Aprendeu a língua dos indígenas locais, gostou do clima e se mudou pro sul da Patagônia, onde fundou a primeira missão religiosa da região. Depois de alguns anos enchendo o saco dos índios de lá, voltou pra Inglaterra pra dar palestras nas universidades, conheceu a futura esposa, nascida na cidade de Harberton, e voltou com a coitada pra Ushuaia, onde fundou a tal da Estancia. Sei que até hoje a Estancia é administrada pela família Bridge, cujas últimas duas gerações agora vivem na cidade de Ushuaia e não querem saber muito da vida no campo.
Findo o aparte, voltemos ao nosso relato: montamos todos na lancha, que chamaremos de gommone porque o motor é montado numa base de fibra de vidro e borracha (gomma = borracha em italiano), e tocamos pra Pinguinera. Mesmo quando o tempo tá feio no mar, no canal de Beagle, que além de ser um canal é protegido por diversas ilhas, a coisa não é tão complicada. Mas pra uma lancha pequena como a nossa, sem motor de reserva, a viagem de dez minutos virou um pesadelo, porque o tempo virou em dois minutos. O céu nublado e chuvoso mas sem vento virou tempestoso, as ondas começaram a aumentar, a cobertura de plástico da lancha começou a voar com o vento, molhando todo mundo, e a Ana foi lá pra frente, onde eu tava, pra ficar segurando o flap que tinha se desamarrado. Meninos e meninas, não vos digo a altura dos saltos que dávamos a cada onda que a lancha enfrentava. Eu dei tanta porrada com as costas contra a armação de metal atrás de mim, a cada vez que descia de um desses pulos, que à noite eu me sentia como se tivesse apanhado. Chiara tava tão nervosa que nem chorava, agarrada no Gianni. O Mirco tava sentado à minha frente, e eu estava agarrada na manga esquerda do casaco; com a mão direita ele tentava segurar a Ana, que a cada salto da lancha perdia o equilíbrio, chegando a cair de joelhos no chão uma vez. A única que estava calma era a neném, por incrível que pareça, e o piloto, André, que se manteve tranqüilo o tempo todo, apesar da surra que levou das ondas, da chuva e do vento. Fiquei apavorada pela Chiara, que não sabe nadar. Dificilmente teríamos morrido afogados, porque as ondas ali no canal protegido nunca chegam a ser realmente altas, mas com certeza a água devia estar gelada, e se você bater com a cabeça em algum lugar e desmaiar, babau. Novamente não tive nenhuma reação adrenérgica, mas tive os pensamentos mais estranhos, coisas completamente nada a ver com a situação, a não ser por uma vaga lembrança dos tempos de curso de Botinho, na praia, no Rio. Pedimos pra voltar, mas já estávamos tão perto da ilha que não tinha sentido. Então seguimos adiante, e quando chegamos demos de cara com o tal do catamarã. Desembarcamos o pessoal mais highlander e nós quatro demos a volta com o gommone até a lateral do catamarã, pra ver se o capitão aceitava nos pegar. Ele logo disse pra gente que era a maior roubada, porque ele teria que encarar o mar aberto, e tinha uma tempestade chegando! Pelo menos no canal a tempestade fica muito limitada, e pior do que o que enfrentáramos não podia ficar. Ele chamou a Estancia pelo rádio (o rádio do gommone molhou e não funcionava) e pediu um barco maior pra vir nos pegar. Como iria demorar 20 minutos, eu e Mirco, mais calmos, descemos na ilha.
Com o vento que soprava, os pingüins não nos ouviam, e por isso chegamos muito perto. Mais perto inclusive do que deveríamos, porque há regras pra passear pela Pinguinera, e os limites que devemos respeitar são marcados com troncos de árvores pelo chão. Acho que a Ana, pra compensar o susto da viagem de ida, deixou que a gente abusasse um pouco. Os pingüins são foférrimos e graciosos, e a ilha é pequenininha mas toda coberta de árvores na parte interna, então deixamos a praia de cascalho e fomos seguindo a trilha subindo a ilhota. Ali a trilha é delimitada por corredores com corrimão de madeira, e há bancos de praça pro pessoal sentar e ficar observando os pingüins. Não eram muitos, porque a maior parte já tinha partido pra águas mais quentinhas, mas ainda havia alguns mudando as penas, e muitas mamães em seus ninhos-buracos, tomando conta dos filhotes que ainda não tinham crescido o suficiente pra encarar uma longa viagem. O mais estranho é ver esses pingüins saindo do meio do bosque. Pra quem sempre associa pingüim a iglu e iceberg, as imagens são lindas, mas bizarras.
A essa altura do campeonato o vento tinha levado embora as nuvens e o céu ficou limpo. O mar virou uma piscina. Um arco-íris apareceu lá do outro lado. Vimos o outro barcão chegando e descemos. Todo mundo embarcou nesse barco maior, chamado Flamingo; a Ana, completamente encharcada e morrendo de frio, montou no gommone, mais rápido, pra chegar logo à Estancia e trocar de roupa. Lá foram eles embora na lancha, e nós finalmente partimos.
Ou, tentamos. Porque nesses dez minutos de espera a maré desceu e o Flamingo encalhou. O marinheiro deu uma buzinada e o pobre do André, que já estava com o gommone quase na Estancia, teve que voltar pra tentar nos rebocar. Claro que não rolou, então desceu todo mundo do Flamingo outra vez, subiu no gommone e fomos embora. Pelo rádio, o Flamingo chamou um rebocador, que encontramos na metade do caminho. O rebocador achava que nós é que precisávamos de ajuda, então quando nos viu indo na direção da Estancia, deu meia-volta e começou a nos seguir! O capitão não entendia os sinais do André, que agitava os braços e apontava pra Pinguinera; lá fomos nós dar meia-volta outra vez, pra nos aproximar do rebocador e explicar que quem tava atolado agora era o Flamingo. Quando finalmente chegamos à Estancia, a pobre da Ana tava tremendo, e todos nós muito nervosos. Eu pelo menos desci na ilha, mas a Chiara e o Gianni, que tiveram a verdadeira crise de nervos só depois que o gommone aportou na ilha, não fizeram questão nenhuma de descer. E agora, mais calmos, fomos nos secar em frente ao aquecedor a lenha na minicafeteria precária da Estancia. Peguei a Giuliana no colo e fiquei dando voltas pela sala, lendo as legendas das fotos nas paredes, aprendendo a história da Estancia e contando pra ela, que me olhava como se estivesse prestando a maior atenção e se o assunto fosse interessantíssimo.
A viagem de volta, no microônibus, foi tranqüila. Fomos interrompidos só por dois touros que brigavam no meio da estrada, e não tinha buzina que os distraísse. Tivemos que esperar que os pimpolhos resolvessem continuar a briga em outro lugar pra poder passar. O motorista nos deixou no Opíparo, onde comemos tudo o que tínhamos direito, e dali direto pro hotel lilás. Nem comentamos o Incidente Pinguinera com a proprietária, senão teríamos que ficar contando detalhes até as cinco da manhã.
Acordamos mais tarde hoje, fizemos as malas, e acabamos tomando café sozinhos com o Pasqual, o cachorro da pousada, porque o Gianni e a Chiara fizeram o contrário e tomaram café cedo pra depois fazer as malas. Deixamos tudo pronto na recepção, fizemos o check-out, passamos no albergue pra devolver o abridor de latas que o Mirco tinha pego emprestado pra abrir uma lata de um quilo de pêssego em calda (ele é viciado em pêssego em calda), e pegamos um táxi até o centro. Fizemos as últimas compras: um casaquinho pra Chiara (Nativos, Aldea de los Gnomos, 10 - não riam, apesar desse nome ridículo a Aldea de los Gnomos é uma galeria aberta, e cada loja é uma casinha de madeira muito bonitinha), brincos, um poncho pra irmã do Mirco, quadros com motivos indígenas (Pueblo Indio, Av. Libertador, 1080); deixamos os filmes do Gianni pra revelar (ele tira fotos com a digital, que não é uma Brastemp, e repete algumas com a velha, que é ótima) e fomos almoçar peixe no La Vaca Atada (sempre na Libertador), seguindo a sugestão da dona da pousada. Não sei se é porque me acostumei a comer peixe e frutos do mar preparados do modo mais simples possível, porque italiano não gosta muito de incrementar o que já é gostoso por natureza, mas não achei nada do outro mundo. Pedimos uma salada fria de frutos do mar pra dividir, depois todos fomos de risoto de lula com açafrão, que infelizmente veio cheio de pimentão, e de secondo pedimos lagostins com molho branco com champagne e cogumelos, que também não era lá essas coisas e escondia todo o sabor dos lagostins. Demos mais uma voltinha a pé pra digerir, pegamos as fotos e voltamos pro hotel. O microônibus que deveria nos levar ao aeroporto tinha acabado de chegar, então carregamos as malas e nos despedimos de El Calafate. Queria ter passado pelo centro novamente pra fotografar umas casinhas e uns hotéis deliciosos que ficavam escondidos em ruazinhas transversais à Libertador, mas o ônibus fez outro caminho e passou pela parte nova da cidade, onde tudo ainda é areia e as casas e hotéis e pousadas sobem da noite pro dia.
Chegamos cedo ao aeroporto e o vôo saiu no horário. Só que não tínhamos ligado o nome à pessoa, por assim dizer: tínhamos ouvido falar dos ventos patagônicos, visto seus efeitos sobre os pára-brisas dos carros, sentido na pele a ventania em Torres del Paine, mas não nos preparamos psicologicamente pra turbulência que obviamente resulta desse vento todo, ao descer em Ushuaia. Quase chegando à cidade, as montanhas altas e nevadas visíveis como uma pintura vistas da janelinha, lagos e deltas de rios abaixo de nós, um dia lindo com poucas nuvens, e de repente tuuuuuuuuuuuuuuum o avião deu uma descida, mas uma descida, meus queridos, do tipo que rearranja a arquitetura de todos os órgãos internos, e depois uma super-hiper-megasacudida, e só parou de sacudir quando pousou. Eu confesso que, muito estranhamente, não tive nem taquicardia; minhas supra-renais deviam estar dormindo porque fisicamente não tive reação nenhuma. Os outros três quase infartaram, principalmente o Gianni e a Chiara que detestam voar e às vezes têm que se dopar pra dormir, quando o vôo é mais longo. As comissárias de bordo nem tchum, e depois vieram nos dizer que era normalíssimo – claro, só as bestas quadradas aqui não tinham feito a conexão vento patagônico + avião = turbulência arretada. Todo mundo desceu meio pálido do avião, mas fora isso, nada de mais. Lá fora, enquanto esperávamos o taxista pra nos levar ao hotel (incluído no preço da hospedagem), o vento só não nos levava embora porque somos pesados (eu e o Mirco porque somos gordos, Gianni e Chiara porque são altos). Uma coisa horrorosa. Lugar ideaaaaal pra mim, que ODEIO vento. Sapatinho que eu calço.
O táxi deu a volta numa baía, onde fica o aeroporto, e entramos na cidade. Uma coisa horrorosa. Favelão geral, só que na planície. A única diferença é que entre um barraco e outro, entre uma casa precária e um terreno baldio cheio de cacarecos podres, entre um container e casas inacabadas mas ocupadas assim mesmo, há uma casona enorme, ou um chalé bonitinho. Muito esquisito. E as cores? Casas lilás com telhado azul. Casas amarelas com telhado verde. Casas cor-de-rosa com telhado roxo. Casas vermelhas com telhado bege. Socorro! Vimos até umas casas revestidas com papel alumínio. Sim, aquele que a gente usa pra cobrir a lasanha no forno. Asfalto só em algumas ruas. Calçada, em nenhuma rua além da principal, praticamente. Cachorros em tudo que é lugar. Sinal de trânsito é coisa rara, ao ponto de virar ponto de referência, que nem aqui em Bastia. Poças d'água, crianças brincando nas poças, gente mijando na rua, uma coisa de louco. Os carros também são todos detonados e TODOS os pára-brisas são rachados. As pessoas são horrorosas e as lojas são feias, os restaurantes têm cara de sujos, uma coisa estranhíssima. Esclareço logo que quem deu origem à cidade foi uma penitenciária, que ainda existe e hoje é um museu. Tudo fez sentido.
O hotel é muito estranho. É uma casa amarelinha, no alto, longe do centro. Por dentro é tudo muito limpinho, perfumado, e lilás. TODAS AS PAREDES SÃO LILÁS. E as televisões dos quartos são ROXAS. E a roupa de cama e de banho é COR DE VINHO. A dona do hotel, que mora com o marido na casa logo atrás, em cuja cozinha tomamos café da manhã, é uma figuraça. Ela também é de Buenos Aires, e tem um jeito de falar muito engraçado. Logo de cara nos aconselhou a não pegar o famoso trenzinho do fim do mundo, porque segundo ela custa caro e o percurso é "mutcho cortito", não vale a pena. A mulher parece ser boazinha (o que não a impede de ser paracula, como veremos mais adiante) e fala o tempo todo, sem parar. Queríamos provar a centolla (pronúncia: centoja), um caranguejo imenso feio pra cacete que é a iguaria típica de Ushuaia. Ela nos recomendou um restaurante, Al Grande Chef, que segundo ela não é coisa de turista, é freqüentado pela gente do lugar. Então, depois de uma rápida volta no centro, de três pares de calças jeans pro Mirco (porque ele SEMPRE arruma algum lugar pra comprar jeans baratos, onde quer que vá, e não é maluquice mas porque ele precisa, já que basta uma espirrada de tinta pra destruir uma peça de roupa) comprados numa galeria onde com certeza voltaremos antes de ir embora, de um banho no hotel, tocamos pro tal restaurante.
Nosso garçom era vesgo, com queixo de barracuda, e incrivelmente simpático e bonzinho. O mais engraçado nessa viagem até agora é definitivamente a nossa comunicação com os garçons, vendedores e afins, porque eu abomino o espanhol e só entendo se falam muuuuuuuuuito devagar, mas não consigo dizer uma palavra em espanhol sem ter vontade de rir (porque me lembro logo da Maria do Bairro, de Topázio e outras bizarrices mexicanas); Mirco namorou uma argentina por algum tempo e fez curso de espanhol e acha que fala, mas não fala nada; Gianni e Chiara estudam espanhol no curso tabajara do Comune de Bastia, mas ele é totalmente desprovido de talentos lingüísticos e ela, que aparentemente tem facilidade pra coisa, teve poucas aulas, que não são suficientes pra tornar mais fácil a comunicação. Mas de qualquer maneira conseguimos: Mirco não queria peixe e pediu uma parrilla que nem tocou porque lhe veio um episódio lancinante de cefaléia, eu pedi truta com recheio de centolla e acompanhamento de legumes (gostoso, mas não gostoooooooooso), Gianni foi corajoso e pediu centolla crua marinada no limão, e Chiara foi de centolla à milanesa, que segundo ela tinha gosto só de queijo e mais nada. Na verdade a centolla tem gosto de kani-kama, ou seja, de nada. Mas pode ter sido porque não fomos ao Tia Elvira, que tem fama de servir a melhor centolla da cidade e nos foi recomendado pelo taxista que nos pegou no aeroporto.
O vesguinho arrumou uma aspirina pro Mirco, chamou um remis pra gente, e tocamos direto pro hotel de paredes lilás.
Acordamos às cinco da manhã. Na noitinha anterior, a dona da pousada tinha deixado no nosso quarto uma bandejona com bolo, garrafa térmica com café com leite, geléia e torradinhas. Tomamos café às 5:40 e às 6 o microônibus passou pra nos pegar. Pensamos que seria o mesmo esquema de ontem, ou seja, depois mudaríamos pra um ônibus maior, mas que nada! Passamos em vários albergues e hotéis e pousadas na cidade, recolhendo gente. Todo mundo meio sonolento, encasacado e cheio de comida na mochila, porque o dia seria longo.
A estrada é longa e tediosa, em linha reta, ladeada de desertos, com um carneiro aqui e ali, pastando os tufos de plantas ressecadas. A van era velha e sacolejava toda, e depois de uma certa hora ninguém mais conseguia dormir. Acabamos fazendo amizade com uma galesa boazinha mas muda feito um peixe, uma russa interessante que morava em NY, e uma suíça maluca e muito simpática. Depois de não sei quantas horas de viagem, finalmente chegamos à fronteira com o Chile. Aí começa a chatice: todo mundo desce da van, faz fila na casinha da Argentina, entra, dá o passaporte, olham todos os seus carimbos, carimbam felizmente na mesma página do enorme carimbo de entrada na Argentina, devolvem o passaporte, sai, entra outro. Sobe todo mundo na van de novo. Atravessamos alguns quilômetros de terra de ninguém, chegamos à casinha do Chile. Desce todo mundo da van, faz fila na porta da casinha, não pode entrar com certas coisas no parque, tipo salames e embutidos, frutas, etc, todo mundo começa a comer desesperadamente as bananas e sanduíches que tinha trazido achando que ia conseguir passar, dá o passaporte, carimbam, devolvem o passaporte, vai ali na esteira que vão revistar a mochila, confiscam uma banana, jogam no INCINERADOR. Sai, entra outro. Sobe todo mundo numa Besta, também com o pára-brisa rachado, fazemos três metros e paramos outra vez. É uma espécie de bar-lojinha de souvenir, um cabeludo surge não se sabe de onde e nos manda entrar pra trocar dinheiro, porque pra pagar o ingresso no parque tem que usar necessariamente pesos chilenos. Desce todo mundo da van, entram no bar-lojinha, trocam dinheiro e compram balas e chicletes, sobe todo mundo na van de novo, e continuamos.
Não chegamos nunca, é o que parece. A estrada é TERRÍVEL, nem asfaltada mas nem de terra, mas de pedras. Não falo de paralelepípedos nem de cascalho, mas de PEDRAS mesmo, de modo que pulamos feito cabritos por mais ou menos uma hora, as vozes saindo tremidas por causa dos pulos, enquanto o vento uivava lá fora e o tempo fechava. O Gianni tem hérnia de disco e acho que nunca sofreu tanto na vida dele. Na entrada do parque, a russa, a suíça e mais uma galera desceram, porque iam passar uma semana inteira fazendo trekking e dormindo nos hotéis e albergues do parque. Aliás, descobri que há um vastíssimo mundo de trekking que eu não conhecia, a literatura sobre o assunto é extensa, as lojas vendem infinitos modelos de casacos, calças impermeáveis e/ou antivento, tênis de trekking caríssimos. Fiquei tentada.
Entre os doidos que tinham feito aquela viagem imensa de ida pra ficar só um dia e encarar outra viagem enorme de volta, além de nós quatro, dois casais de espanhóis e a pobre da galesa muda. Depois de uma parada pra tirar fotos coletivas, montamos na Besta de novo e tocamos pra frente.
Vimos inúmeros guanacos, esses primos do lhama. Algumas emas também, cinzentas, camufladas contra o cenário de tons de cinza e terra. Depois de uma curva, no meio do nada, vemos o cabeludo na estrada, fazendo sinal de carona. Entra na Besta e se apresenta: é Daniel, nosso guia naquele dia. Paramos num laguinho pra tirar fotos em meio àquele vento fortíssimo, e quem nos esperava? Uma raposinha, zorro, em espanhol. Demos sorte, porque apesar de não ser rara, é arisca e normalmente prefere não se deixar observar. Ela ficou lá, deitadinha, os pêlos se agitando no vento, os olhinhos piscando, olhando muito séria pra gente enquanto o pessoal tirava fotos e mais fotos. Quando alguém abusava e chegava muito perto ela botava os dentinhos pra fora, mas com o vento não dava pra ouvir o rosnado. Linda, linda, linda!
Daniel explica que paine, na linguagem indígena local, quer dizer azul. As torres mesmo nós não vimos, até porque o tempo tava horrível, mas ele nos mostrou os Cuernos del Paine, ou chifres, coitados, que eu achei, pelas fotos que vi das Torres, ainda mais bonitos e interessantes. Com aquele céu tempestoso em cima, então, pareciam uma pintura.
Passamos por vários lagos e riachos. A paisagem é lindíssima; imagino que em um dia de céu limpo seja realmente de deixar você de boca aberta. O mapa que nos deram na entrada mostra inúmeras trilhas de trekking, algumas sobre as várias geleiras. O parque tem uma superfície de 242.242 hectares e foi criado em 1959. Em 78 foi declarado Reserva da Biosfera pela UNESCO. O folhetinho também fala das coisas que poderemos ver: o guanaco, o zorro, o puma, o raro huemul, em extinção, os cisnes, o condor. No verão a temperatura alcança máximas de 15º C e mínimas de 3º; no inverno vai de 8 a 2,5 graus. Os ventos predominantes sopram de oeste pra leste, e podem chegar a 60 km/h nos meses de outubro a março. Que sorte a nossa.
Paramos pra ver uma cachoeira, que molhou todo mundo naquele vento. Vimos um pato quebra-corrente, também raro, de cabeça vermelha, que se joga na correnteza como se fosse muito simples nadar contra aquela água forte e voltar pras pedras. A vista é deslumbrante e tiramos milhões de fotos, mas não foi fácil voltar à Besta, caminhando contra aquele vento maldito.
Já era hora do almoço e fomos comer numa espécie de pensão-restaurante tabajaríiiiissima no meio do parque. Eu tava sem fome e pedi uma sopa de frango, que veio com pelotas de pó pra sopas tipo Knorr, na maior cara-de-pau. Como sentamos todos juntos porque éramos poucos, acabamos finalmente conhecendo os dois casais de espanhóis, muito simpáticos. Os mais jovens eram de Barcelona, os senhores eram de Valencia, e falou-se muito da situação econômica decadente de Itália e Espanha e das gafes dos políticos de ambos os países.
Depois de comer continuamos até o Lago Grey, que tem esse nome porque é cinzento, pelo menos mais do que os outros lagos, que são azuis como o Lago Argentino. Pra chegar nele atravessamos uma ponte de madeira e cordas, daquelas que balançam terrivelmente. Subimos uma ladeira, olhamos pro alto e vemos periquitos dando escândalo, pousados no galho de uma árvore. Continuamos, e de repente vemos um murundu de gente em silêncio tirando fotos. Daniel logo faz shhhhhhhhhhh e vamos todos ver o que era: HUEMULS!!! São cervos, lindíssimos, estatisticamente considerados extintos. Em toda a extensão do parque só existem 50 exemplares, e nós demos a cagada de ver um casal descansando amarradão entre troncos caídos e o capim alto. Confesso que fiquei emocionada e por pouco não comecei a chorar. O Daniel trabalha no parque há seis anos e só tinha visto o bicho uma vez. São lindos, lindos, lindos.
Descemos a ladeira e damos de cara com a seguinte paisagem: uma praia IMENSA, de areia cinzenta, com um arbusto esquisito aqui e ali, inclinado pelo vento; uma massa de água cinzenta, e esses pedaços de gelo azuis boiando; ao fundo, as montanhas envoltas em nuvens e, supostamente, neve; láaaaa no fundo, a geleira, prima do Perito Moreno, que deu origem a esses pedaços flutuantes de azul. Meninos, não tem como descrever. Tem até foto no flickr, mas vocês têm que ir lá ver com os zóio que a terra há de comer. É bonito demais, e mais ainda porque é completamente surreal. Na praia de cascalhos, grandes pedaços de gelo esculpido pelo vento. O vento sopra sem parar e depois de meia hora afasta um pouco as nuvens; as fotos ficam melhores. A praia é longa e não chegamos até o final, de onde se vê melhor a geleira. Já tá tarde e é hora de voltar. Paramos pra ver uma moita de calafate, experimentamos as frutinhas, que têm gosto de amora e mancham a língua. O macho do huemul ainda tava ali quietinho, a fêmea já tinha ido embora.
Montamos na Besta e tocamos de volta pra casa. No caminho Daniel explicou que o puma, que infelizmente não deu as caras, é o único predador do guanaco no parque. Quando passamos pelos bandos de guanacos, um deles, que o Daniel explicou ser o macho dono do harém, logo vinha na nossa direção, botando banca. Se fosse um puma ou algo igualmente ameaçador, bastaria o guanaco-sultão levantar o rabinho: os outros do bando entenderiam o sinal e sairiam correndo em fila, porque eles sempre fogem em fila (e isso eu vi, porque algum sultão deve ter sido apressado e deu o sinal sem esperar pra ver se era puma ou não. Todos correndo ladeira acima em fila indiana, uma gracinha). No caminho até a saída do parque ainda vimos flamingos num laguinho.
A viagem de volta foi dura e longa e chata, ao lado da Chiara veio um israelense fedorento que ouvia música altíssima no walkman mesmo depois de ter caído no sono, e quando finalmente chegamos, já era meia-noite e eu não queria mais saber de nada. Os meninos foram papear com os meninos do albergue ao lado, mas eu tomei meu banho, escrevi no meu diarinho, e dormi vendo E.R.
Tomamos café da manhã praticamente feito em casa: pão quentinho, torradinhas deliciosas, geléias de pêssego e cereja feitas em casa que todo mundo adorou (eu não, tenho pavor de geléia), bolo de laranja e de chocolate, café com leite, suco de laranja, eu com meu leite + achocolatado. Preparamos nossos sanduíches com as compras de ontem, e às oito um microônibus veio nos pegar na porta da pousada. Descemos até a cidade, onde mudamos pra um ônibus normal (a pousada fica na parte alta da cidade, e ônibus grandes não seguram a onda das ladeiras de areia), e fomos direto ao Parque Nacional Los Glaciares. A estrada é bem longuinha e a paisagem é estranha e muda bastante quando se entra no parque: começa-se a ver estranhas árvores peladas, de troncos cinzentos e retorcidos, aparentemente mortas, mas com alguns brotos saindo daqui e dali. Muitas árvores derrubadas – os ventos patagônicos podem chegar a TREZENTOS E CINQÜENTA QUILÔMETROS PÓR HORA. Há tratores e caminhões fazendo obras na estrada estreita, e durante um período do dia, no meio da tarde, o trânsito fica proibido.
E aí acontece o seguinte: você vai vindo pela estrada, vendo aquelas árvores todas, aquelas montanhas com o topo pelado e o resto coberto de vegetação, e de repente, lá atrás de uma curva, vê uma coisa branco-azulada muito esquisita, boiando na água anil do Canal de los Témpanos, que cai no Lago Argentino, às margens do qual fica a cidade de El Calafate. O ônibus vai se aproximando, se aproximando, o negócio branco-azulado vai ficando mais visível mas ainda incompreensível, você vai ficando curioso, querendo entender, até que o ônibus pára e te deixa numa espécie de praça/estacionamento de ônibus e o motorista marca um horário pra você voltar e você sai descendo pelas passarelas e começa a babar, porque é uma coisa linda demais da conta, sô. Mas então, você tá ali tirando fotos e babando, tentando entender aquele azul de onde é que vem, quando de repente escuta um crack. Saca desenho animado, quando o coiote tá na beira de um precipício e a plataforma onde ele está se racha e começa a se separar do corpo da montanha e você ouve o barulho da rachadura se alongando? É aquele barulho, igualzinho, mas muito mais alto. E depois vem um barulho de tiro ou de trovão, e você não sabe de onde vem, e não entende o que é enquanto não vê um pedação da parte anterior da geleira se destacando e caindo na água anil do canal. Cada pedação monumental, e o barulho é assustador. A geleira é linda, e mais linda ainda porque fica no meio daquela água azul, e com montanhas verdes e árvores ao fundo. Ou seja, totalmente nada a ver. Então agora vou explicar como é que essa geleira consegue estar ali, já que não é tãaaaao frio (porque se fosse as árvores não existiriam, certo?). A explicação quem nos deu foi o guia do minitrekking, que conheceremos daqui a pouco.
El Calafate não fica tão no sul assim. Sua latitude equivalente no hemisfério norte é roughly a mesma de Londres ou Paris. Ou seja, em teoria o clima é temperado. Só que uma conjunção muito particular de fatores geográficos causa fenômenos estranhos, como essas geleiras malucas: como em todo aquele intervalo entre paralelos, ao redor da Terra, só existe a Nova Zelândia, além da Patagônia, os ventos que giram naquela faixa não só correm livres, sem obstáculos, como também carregam uma cacetada de umidade, recolhida da evaporação do mar. Quando os ventos, que normalmente correm de oeste a leste, dão de cara com os pequenos e delicados Andes, lógico que não conseguem passar direto como se nada fora. Encontrando aquelas alturas geladas, os ventos úmidos não têm outra alternativa que não nevar. Neva 300 dias por ano naquela zona, nas montanhas. Toda aquela neve que cai vai se compactando sob o seu próprio incrível peso, virando uma massa densa que, com os anos, vai virando gelo. Entenderam? NÃO É ÁGUA QUE CONGELOU, É NEVE QUE COMPACTOU. E por que é que essa massa de neve dura desce a ladeira, então? Por três motivos, segundo nosso guia: porque é muito pesada, e seguindo a máxima de que pra baixo todo santo ajuda, quanto mais pesado, maior vai ser a velocidade de descida. Porque as montanhas são altas, ou seja, o plano é inclinado, e quanto mais inclinado, maior vai ser a velocidade de descida. E porque, como não é exageradamente frio, conforme vai se afastando do cume gelado das montanhas, uma parte da geleira vai derretendo. A película de água que se forma entre a geleira e a montanha funciona como lubrificante, facilitando a descida da geleira. Disse o guia que até 1917 a geleira descia cerca de uma centena de quilômetros por ano, e que nesse ano tocou a península de Magallanes pela primeira vez, e a partir daí se estabilizou. Hoje é uma das poucas geleiras estáveis do mundo, fica mais ou menos no mesmo lugar o tempo todo. A velocidade de formação, com a neve nas montanhas, é de um metro ao dia; esse mesmo metro é mais ou menos o que se perde por dia, entre os blocos que se soltam e a neve que derrete. Então ele vai descendo muito pouco conforme o inverno chega, descendo, descendo devagarinho, paciente; no máximo do inverno toca a península de Magallanes, bloqueando a passagem da água de um lado pra outro do canal. O lado que não se comunica com o Lago Argentino continua a receber água dos riachos e rios que descem das montanhas e colinas, e o nível da água vai aumentando. O peso dessa água toda pressiona essa ponta da geleira que toca a península, formando arcos, que mais tarde caem. Ou então a quebra é mais violenta, com a pressão da água derrubando de uma vez essa ponta que toca a península – e nessas vezes dizem que o espetáculo é uma coisa impressionante, como aconteceu no ano passado. Esse ano, infelizmente, a ruptura foi gradual e nada espetaculosa, e aconteceu de janeiro a fevereiro – normalmente rola em março. Como essa geleira mais famosa, o Perito Moreno, existem pelo menos outras 50, menos famosas e algumas menos acessíveis.
Mas então, continuando: depois de um zilhão de fotos e várias babações, fizemos nosso lanchinho e voltamos pro ônibus. Andamos mais um pouco e descemos num pequeno porto do outro lado do canal, o tal lado que não se comunica diretamente com o Lago Argentino quando a geleira desce e bloqueia a passagem da água. Passamos pertinho da outra diagonal da ponta da geleira, e a vista é deslumbrante, mas rola um medinho de ver um pedação caindo e fazendo rebolar o barco. Felizmente (ou infelizmente, porque apesar do medo deve ser lindo) não vimos nada do gênero. Descemos na margem lá do outro lado, onde há um refúgio dos guias que fazem esse minitrekking. Todo mundo faz xixi, deixa as bolsas e mochilas que não servem e calça luvas que eles sempre têm de reserva – repito, não porque é frio, mas porque a geleira não é de gelo mas de neve congelada, que corta feito navalha. Parece que é superfrio porque estamos muito vestidos, mas na verdade estávamos era suando debaixo daqueles casacos todos, que não queríamos deixar no Refúgio porque, bem, nunca se sabe. Caminhamos por entre pedregulhos grandes e poças d'água até chegar às margens da geleira, onde ela se encontra com a terra e as rochas. Paisagem estranhíssima. Nossos guias eram Fernando, que foi quem nos explicou a formação da geleira, usando um graveto pra desenhar na areia, a Luli e o Fabio, todos muito gentis. Sentamos nuns banquinhos e os guias começam a amarrar esses papatinhos com grampos por baixo, nos nossos sapatos. Recebemos instruções de como nos movimentar sobre a geleira, e começamos a subida. Claro que não subimos na parte que parece uma floresta de picos de gelo azul, mas nessa parte lateral, onde a neve compactada formou dunas, por causa do relevo do terreno que há por baixo. É divertido e bonito, mas MUITO cansativo porque os diabos dos "sapatos" são pesados que nem a peste, e porque subir e descer ladeira toda encasacada não é nada legal. No caminho vêem-se poças de água, buracos ("sumidouros") às vezes do diâmetro de um braço, às vezes do tamanho de um carro, causados pelo derretimento da geleira. A água dentro desses buracos é cristalina e puríssima – deliciosa, porque não tem gosto de nada. Descemos em um desses grandes buracos, e é uma coisa esquisitíssima: esse teto de gelo azul que pinga na sua cabeça sem parar, e um riacho correndo por entre a terra e as pedrinhas, por baixo. Bizarro.
Depois de cerca de uma hora de trekking, os guias nos levam até um mini-vale entre duas dunas onde fica perpetuamente armada uma mesinha com uma tigela de bombons da Arcor imitando Serenata de Amor, umas garrafas de whisky, copos e duas jarras, que se enchem com água de um sumidouro qualquer. O whisky é servido, claro, com gelo raspado diretamente da geleira. Now that's a classy whisky on the rocks alright.
Voltamos ao Refúgio, pegamos nossas coisas, quem queria tomou café, quem precisava fez xixi, o barco chegou, voltamos ao porto, pegamos o buzum e voltamos pra cidade. Gianni e Chiara foram à missa das 8 e eu e Mirco fomos fazer compras e trocar dólares. Pegamos os meninos na igrejinha e fomos jantar no Mi Viejo de novo; dessa vez pedi um salmão grelhado, que veio imenso e delicioso, com pirê de batata. Os meninos atacaram de chinchulinas (em italiano se chamam trecciole e são consideradas uma iguaria, ainda mais depois que todas as doenças malucas de vacas e afins proibiram sua comercialização: são os intestinos da vitela, coitada. Não como nem que me paguem.) e parrilla, Chiara pegou leve e além das chinchulinas comeu só uma omelete espanhola (com batatas e cebolas). Voltando à pousada, fui direto dormir (leia-se ver E.R.), enquanto o resto do pessoal foi bater papo com o Mariano e o Matias no albergue.
Acordamos às cinco da manhã, nada de café porque o bar/restaurante colado ao hotel ainda não tinha aberto (mas já tinha gente esquentando as chapas e recolocando as cadeiras no lugar), às quinze pras seis o nosso bom velhinho taxista de Mendoza nos esperava na porta. Deixamos as malas maiores, com as roupas de verão, no novo hotel e fomos direto pro aeroporto internacional, o Ezeiza (e vou evitar comentários sobre esse nome ridículo). Mirco demorou mas finalmente chegou; tinha sido mandado pra esteira errada de bagagem, e pra fila errada do novo check-in, mas no final das contas tudo correu bem e às 7:50 partimos com o vôo 1892 com destino a El Calafate, já na Patagônia. No aeroporto de Calafate, que, se não me engano, tem menos de dois anos de vida e é superbonitinho, uma van nos esperava pra nos levar ao hotel. O hominho segurava um cartaz com nossos nomes, TODOS errados, menos o meu: Balducci virou Valducci, Baldan virou Valdan, e Gianni, que não tem B nem no nome e nem no sobrenome, virou outra coisa que não lembro.
O caminho até a cidade não é longo mas é esquisito: tudo muito desértico, em tons de cinza e marrom, aquele lago azul-anil (o Lago Argentino), as montanhas nevadas ao fundo. E cercas, muitas cercas. Mas o que diabo neguinho tanto cerca aqui, se não há nada? De vez em quando víamos cavalos e uma meia dúzia de ovelhas, nada que, na nossa cabeça, justificasse as cercas, mas vai entender. O motorista fazia o tipo antipaticão (devia ser porteño) e preferimos não perguntar nada.
O hotel era uma diliça. Novíssimo, quatro meses de vida. A casinha bonitinha tem dois andares: embaixo fica a recepção, a mini-cozinha e as mesinhas onde os hóspedes tomam o café da manhã. No andar de cima mora a dona da pousada, que tinha aquela simpatia profissional de quem sabe que tem que ser simpático pra poder faturar. Não preciso dizer que é porteña. A pousada tem um cachorro, que se chama Pasqual e é um amor. Milhões de outros cachorros circulam por essa parte da cidade, fora do centro, onde as ruas são de areia – não terra, areia mesmo. Os únicos quatro quartos da pousada ficam nessa construção com cara de estrebaria. Tudo novíssimo, lógico, de bom gosto, o aquecimento sai do chão e assim não ocupa espaço, tudo é limpo e cheiroso, o banheiro tem a maldita cortina de plástico e uma janelinha sem cortina que dá de frente pra um restaurante, mas com a água quente aberta o vapor embaça a vidraça e funciona como cortina. Tem TV a cabo, graças aos céus. Não tem armário, e sim um cabideiro aberto atrás da porta do quarto, mas ninguém fica aqui por muito tempo, por isso não teria sentido ter um armário propriamente dito.
Nós só deixamos as malas nos quartos e pedimos pra porteña chamar um rádio-táxi (que aqui se chama remis). Descemos até a cidade, que é charmosíssima, e no caminho vimos uma infinidade de novas construções brotando do chão, algumas casas, outras presumivelmente serão pousadas ou restaurantes, algumas são grandes mesmo e virarão mega-hotéis, já que pelo visto a Patagônia vai ser o grande must turístico dos próximos anos. Preço surreal do táxi, o primeiro de muitos que pegamos e, como TODOS os outros, com o pára-brisa rachado por causa das pedras que o vento joga: TRÊS PESOS. Menos de um euro. Dividido por quatro pessoas. Ho ho ho. A arquitetura é linda e me lembra cidadezinhas do interior da Noruega, sei lá, muita madeira, casas pequenas, de um andar só, com imensas vidraças e vasinhos de flores e plaquinhas de madeira e telhados fofinhos e cerquinhas ajeitadinhas. Um hotel em particular me deixou de boca aberta de tanto que é bubu, mas há vários, vários outros, sempre assim de madeira e tanto, tanto vidro. Lindos! À noite, iluminados por dentro, são escandalosamente bonitos e elegantes. As lojas são bonitinhas e cheias de coisas lindas pra comprar. Muitas vendem cafonices tipo roupas indígenas, artesanato em couro cru, essas coisas horrorosas que ripongas adoram, mas há muitas coisas bonitas. Há uma quantidade impressionante de cachorros nas ruas, muitos com coleira e medalhinha de identificação. Andam sozinhos ou se reúnem em grupos, mas não vimos nenhuma briga, só algumas "discussões em voz alta", por assim dizer. Muito estranho.
Não tínhamos almoçado e eram duas da tarde, e saímos catando restaurantes pra almoçar. São muitos e todos com cara de limpinho; acabamos entrando no Mi Viejo, um restaurante bonitinho que exibia, como numa vitrine, quatro cordeiros pendurados cozinhando/defumando em torno de um braseiro. Estávamos todos loucos por uma parrilla, o bom e velho churrasco, e pedimos uma que o menu dizia ser suficiente pra seis pessoas. O garçom, eficiente e prestativo, trouxe a chapa fumegante à mesa, mas se aquilo ali dava pra seis pessoas, então são seis pessoas de Biafra com estômagos do tamanho de limões-galegos, desculpem o mau gosto. No final das contas alguns pedaços de carne eram ótimos, mas pra mim carne espetacular é carne que você come toda sem deixar nada no prato, sem precisar ficar roendo osso, lutando contra nervos e pedaços de gordura, mastigando por cinco minutos até conseguir engolir. As lingüiças eram horríveis. Mas a salada e o pirê de batata eram ótimos. O vinho local era muito xexelento, mas foi só pra provar mesmo, então tá de bom tamanho.
Voltamos pro hotel e paramos no albergue grande e envidraçado ao lado da nossa pousada. Era ali que inicialmente pretendíamos dormir, porque eles se chamam albergue mas também têm quartos de casal, mas estavam lotados. Muito gentilmente, foram eles que negociaram nossa hospedagem com a pousada ao lado, e também foram eles que nos venderam o passeio ao Perito Moreno, que vamos fazer amanhã. Descobrimos que o/a famoso/a Seba, com quem troquei vários e-mails, era O Seba, apelido de Sebastián, que estava em Buenos Aires mas deixou o irmão, Martín, e um outro porteño, Mariano, administrando o albergue. O Mariano morou no Rio e fala português, e, como todo mundo por aqui, usa Havaianas. O albergue é muito legal, os meninos são simpáticos (paraculos, mas simpáticos), a vista pro lago é maravilhosa. Batemos papo, discutimos o passeio ao parque de Torres del Paine, no Chile, aceitamos a sugestão de fazer o minitrekking no Perito Moreno, pagamos tudo e fomos à cidade jantar.
Os meninos tavam com desejo de comer pizza (...) e fomos pra um lugar pseudo-italiano. A pizza aqui vem, como no Brasil, entupida de mussarela vagaba e com quilos de orégano. A pizza italiana é espartana nos toppings e o orégano só vem se você pedir. Eu não tava com fome e não jantei, mas os meninos até que comeram a pizza sem reclamar. Sabendo que faríamos o tal minitrekking sobre a geleira no dia seguinte, saímos feito loucos pelas ruas tentando achar um par de luvas, que o Mirco esqueceu de trazer, e um gorro decente, que o Mirco esqueceu de trazer e eu não tenho porque odeio qualquer coisa que se ponha na cabeça. Acabamos achando tudo por preços meio turísticos, mas quando não tem tu, vai tu mermo. Também fizemos umas comprinhas num supermercado chamado La Anonima (...): pão, queijo, presunto, suco de laranja, guardanapos, tudo pra merenda de amanhã, já que ali no Parque Los Glaciares não há bares ou restaurantes e nós somos criaturas esfomeadas. Voltamos pra pousada em mais um táxi de pára-brisa rachado, sacolejando naquelas ruas de paralelepípedos, e fomos dormir.
Acordamos cedo e Hernán nos esperava na porta. Fizemos o check-out e fomos direto a Itaipu ver a represa. É interessante, imensa, impressiona – e o passeio é grátis. O ônibus com ar-condicionado vai passando devagar pelas estradas internas e o alto-falante vai explicando o que a gente está vendo. Gostei particularmente do Bosque dos Funcionários: ao completar 15 anos de serviço, cada operário planta uma muda do que quiser nesse tal bosque, que na verdade ainda é apenas um gramado com algumas árvores adolescentes que mal dão sombra. Mas gostei do conceito.
Dali fomos finalmente ao centro de Foz fazer compras. Consegui achar uma agência do Itaú pra desbloquear meu novo cartão, e aí pronto, fiz a festa. Comprei o teclado onde estou digitando agora, mas que só funciona no Word, não adianta nada pra escrever e-mail – alguém saberia me ajudar a configurar esse treco? Comprei um sabonete pro rosto no Boticário. Comprei um Collins Ing-Port-Ing, que não era exatamente o que eu queria mas dá pro gasto. Fizemos compras no supermercado: guaraná, gelatina Royal, shampoo pra cabelo ruim, farinha de mandioca, um osso de couro comestível pro Leguinho, aveia com mel e castanha de caju da Quaker, desodorante, escova de dentes, Ninho Soleil (depois fiquei mal por ter interrompido momentaneamente meu boicote à Nestlé, mas eu ADORO Ninho Soleil e aqui não tem), suco Maguary; os meninos compraram um caminhão de Havaianas e suco de manga e cachaça e limão pra caipirinha. Passeamos muito pela cidade, que é feinha, coitada, paramos pro pessoal tomar água de côco, que eles obviamente nunca tinham experimentado, batemos (bati) altos papos com o Hernán, que como eu já disse é malandro mas é legal. Almoçamos na parte de fora de um restaurante com nome alemão: os meninos arriscaram uma pizza, que felizmente estava boa, e eu e Hernán dividimos um filé com alho torradinho, arroz branco e brócolis. Ainda demos um pulo numa loja estilo armadilha pra turista, cafonérrima, com direito a chaveiro de arara e tudo, pros meninos comprarem as Havaianas tamanho gigante pro Gianni, que no supermercado não tinha, e dali tocamos pro aeroporto.
Novamente o vôo foi uneventful, mas quando chegamos a Buenos Aires nenhum taxista queria nos levar, porque as malas eram muitas! Os carros são velhérrimos, tão velhos que a gente nem reconhece mais a marca, e o espaço na mala geralmente é pequeno. Acabamos convencendo um velhinho, que por acaso era de Missiones (ali onde fica o parque das cataratas argentinas) e por isso mesmo muito simpático. Fomos os três espremidos atrás, e uma malona no banco do carona, e o motorista tinha que segurar a coitada nas curvas senão caía por cima dele.
Se você acha que o trânsito de Nápoles é uma loucura, experimente uma meia hora em Buenos Aires. Vai fazer Nápoles parecer Zürich. Ali cinto de segurança não existe mesmo, de verdade. Assim como não existe sinal vermelho, nem faixa de pedestres. O próprio taxista falou que pra ele, no trânsito, só existem duas cores: verde e verde-morango, que seria o vermelho, solenemente ignorado. Os ônibus, todos caindo aos pedaços, pintados em cores cafonas e incrivelmente barulhentos, passam voando nas ruas, se jogando por cima dos carros (não, não é como no Rio. É pior.), buzinando. Enquanto íamos passeando pela cidade, porque queríamos examinar melhor o bairro onde ficava o hotel já reservado e pago pela internet, o taxista ia contando piadas, quase todas contra os argentinos. Dei muita risada, o que significa que entendi tudo, porque ele não era portenho nem mal-educado e falava beeeem devagar. Nosso hotel ficava no Once, lugar barra-pesada depois do pôr-do-sol, e antes mesmo de fazer o check-in e nos instalar resolvemos continuar com o velhinho e catar outros hotéis. Tínhamos anotado os nomes de várias possibilidades pros últimos três dias na cidade, mas esquecemos de um pequeno e delicado detalhe, do qual só nos lembramos depois de conversar muito rapidamente com duas napolitanas enquanto esperávamos nossas malas na esteira: esses três últimos dias caíam na Semana Santa, e os hotéis da cidade estavam todos lotados. Acabamos conseguindo dois quartos com duas camas de solteiro cada num hotel 4 estrelas onde o Moreno dormiu quando esteve em BsAs em fevereiro, e tinha dito que era ótimo, lindo, todo de madeira e vidro, e coisa e tal. Nem vimos o quarto: fizemos a reserva pros últimos dias, montamos no táxi e voltamos pro nosso hotelzinho xumbrega no Once.
Depois de um bom banho no box com cortina de plástico, eca, desci pra encontrar os meninos. O hotel se comunica com um restaurante de mesmo nome (La Perla), e ficamos batendo papo enquanto os meninos comiam: Chiara pediu vitamina de pêssego e Gianni foi de hamburger. Sempre impressionados com os preços baixos pra quem ganha em euro, fomos alongando nossas listas de compras, e comparando nossas impressões iniciais sobre a cidade. Os meninos adoraram o que viram até o momento, mas acho que grande parte da empolgação deles foram justamente os preços baixos e a boa comida, já que pra eles comer mal e não poder comprar nada são grandes fatores de stress e de estragamento de viagem. Voltamos pros nossos quartos, ajeitamos as malas com as roupas de verão que deixaríamos no outro hotel na manhã seguinte, no caminho pro aeroporto, e eu dormi vendo E.R. no Warner Channel. God bless cable TV.
Em teoria eu deveria acordar os meninos, mas antes da hora combinada a Chiara ligou. Também tinham dormido mal e acabaram descendo pra dar uma volta no hotel e tomar café. Desci, e enquanto esperava os meninos fui bater papo com um motorista de táxi pra dar uma checada nos preços. Achei o Hernán meio caro em alguns aspectos mas mais barato em outros, e ainda por cima com a van todas as nossas malas cabiam sem problemas, então acabei dispensando o taxista. Fui tomar meu café da manhã, maravilhoso, com tudo o que tem direito, inclusive pão de queijo, queijo Minas, sucos frescos, mil tipos de pão, iogurtes gostosos. Fiz a festa, e depois de escovar os dentinhos fomos lá pra recepção esperar o Hernán. Ele é paraculo mas é legal, podem perguntar por ele ali no aeroporto de Puerto Iguazu (quem nos mandou pra ele foi o Davi, que fica ali naquelas escrivaninhas de que falei, na saída do aeroporto).
Do hotel fomos direto à parte argentina das cataratas. Na entrada pedi informações pro hominho da recepção, e ele nos deu mapinhas e sugestões de percursos. Fizemos como ele disse, e na parte da manhã fizemos os percursos inferior e superior, que somados dão horas e horas de caminhada e de vistas deslumbrantes. As passarelas são muitas, as possibilidades fotográficas são infinitas, os turistas chatinhos são excessivos, e lá embaixo víamos umas lanchas que zuniam pelo rio e chegavam pertinho das cataratas. A Chiara não sabe nadar e tem horror a barco, mas eu e Gianni resolvemos arriscar: pagamos os 30 pesos por pessoa, botamos os coletes salva-vida e lá fomos nós, sentados bem nos primeiros lugares. Dão umas sacolas de plástico pra proteger máquinas fotográficas e sapatos; no início dá pra fotografar, mas quando você vai se aproximando da cascatona, melhor enrolar bem a máquina no plástico e agarrar o embrulho com força pra ele não sair voando e cair no rio. Vou-lhes dizer: É MUITO MANEIROOOOO! Eu, toda inocente, achando que o barco chegava no máximo até a nuvem de vapor que se forma quando a água cai, mas que nada! Chega-se muito, mas muito perto da cascata de San Martín, que não é a Garganta del Diablo mas é bem impressionante. A água cai forte na sua cabeça, entra no nariz e na boca, aquela água cheirosa de rio e de floresta e de sol, sem cloro, sem flúor, sem o maldito calcário europeu, só água, forte, pesada, limpa, fresca, absolutamente deliciosa e depuradora. MUITO, MUITO BOM. E necessário. Desembarcamos absolutamente ensopados, eu feliz da vida e, pelo menos momentaneamente, desdeprimida; Gianni meio confuso, porque nunca tinha tomado banho de água de rio na vida, ainda mais assim, com essa intensidade toda. Dali pegamos o trenzinho e voltamos à entrada do parque pra almoçar.
O restaurante se chamava La Selva, e fomos comer lá porque na entrada um dos funcionários do parque estava distribuindo vales-desconto pro almoço. A comida não tava lá essas coisas: a clássica parrillada, ou o bom e velho churrasco, que não era nenhuma Brastemp; meia dúzia de acompanhamentos meio macambúzios e uma caipirinha grátis por cabeça. Pelo menos gastamos pouco, muito pouco. Como é bom viajar a países em crise.
Ainda molhados, pegamos de novo o trenzinho até a última estação, a Garganta del Diablo. Fomos andando pelas passarelas, que têm pouco mais de um quilômetro no total. Passamos por cima de pilares de uma antiga passarela derrubada pela enchente de 92, e mesmo sabendo que a quantidade de água que passa por ali é impressionante, fica difícil de imaginar a cena, porque o rio é manso, manso. Há vários pontos de água estagnada, os únicos lugares onde vimos peixinhos. Plantas estranhas, pedras esverdeadas de lodo exibindo-se no meio do rio, um bem-te-vi que cantava de cá enquanto outro respondia de lá. O sol forte batendo na moleira, japoneses de luvinhas brancas e guarda-chuvas abertos contra o sol, americanos ripongas com dreadlocks parafinados, o céu azul acima de nós. Ficamos imaginando quando é que a maldita cascatona iria aparecer, e se realmente era tão impressionante quanto parece nas fotos e cartões-postais e documentários televisivos.
E então eu vos digo, amiguinhos: é MUITO mais impressionante. Nada no mundo, nada, nenhuma foto, nenhuma filmagem, nenhum Globo Repórter é capaz de preparar a gente praquilo. Não consigo nem explicar direito o que eu senti quando dei de cara com aquele monstro. Você vem vindo pela passarela, batendo papo e admirando a fauna humana ao seu redor, apontando pra uma flor esquisita lá naquele canto ali, ó, ih, alá, uma tartaruga pegando sol na pedra, e coisa e tal, e de repente começa a ouvir um barulho, mas um barulho, e a taquicardia chega, e você inicialmente vê só a parte mais alta e externa, um ralo gigante, aquela quantidade absurda, intergaláctica de água caindo não se sabe onde, até que a passarela faz uma dobra à esquerda e você finalmente dá de frente com a Garganta, e olha lá pra baixo e não consegue mesmo ver pra onde a água vai porque é tudo vapor, e o coração parece que vai sair pela boca, que por sinal está aberta e babando, e as lágrimas são absolutamente inevitáveis, e parece que o mundo parou e a única coisa que se move é aquela massa ridiculamente exagerada de água que cai em movimentos hipnotizantes de verde e branco e espuma, e então não importa se tem uma horda de fotógrafos profissionais (cof cof) que sobem em escadas como aquelas que a Maria usa pra limpar as janelas do seu apartamento, pra tirar fotos dos turistas do alto, tendo a Garganta no fundo; não importa se a língua mais ouvida ao seu redor é aquela josta de espanhol; não importa se ao seu lado há uma velhinha americana de cabelos lilás e camiseta cafona com uma arara e escrito “Maceió” em letras vermelhas, nada disso importa, não importa nada, porque a única coisa em que você consegue pensar é CARALHOS ESTRELADOS, como é possível que exista tanta água junta, não é possível, PRA QUE ISSO? Fiquei séculos lá parada, hipnotizada, paralisada, petrificada, olhando praquela coisa monstruosa que cai sempre no mesmo ritmo, sempre igual mas sempre diferente, mais espumoso à esquerda de quem olha, mais esverdeado à direita, e ali no meio ela dá um pulo antes de cair porque tem uma pedra protuberante, e bem no seu lado direito há uma plataforminha de pedra que é tão protuberante que a água não cai exatamente em cima, e então uma moita de alguma planta guerreira se instalou ali, no meio do campo de batalha, e aquele barulho enlouquecedor, e há tantas outras micro-cascatas ao redor que a gente não sabe pra onde olhar, mas os olhos sempre voltam pra Garganta, porque é ela que a gente não consegue entender nem mensurar nem aceitar nem nada, e não consigo evitar de imaginar como seria bonito morrer ali, stravolta dalle acque possenti. Então ficou estabelecido na minha cabeça que não existe coisa mais bonita no mundo inteiro. Não existe, por mais que o Mirco encha a casa e o meu saco com fotos de Ayers Rock. Não existe, porque eu gosto de movimento e não de monumento; gosto de dinâmica e cinemática e da conseqüente potência, e uma cascata é viva e forte e pode tudo, entorpece TODOS os seus sentidos ao mesmo tempo, desliga o seu cérebro que por longos minutos absorve só ela, seu barulho, o cheiro da água, a sensação de umidade na pele, o frescor do vapor d’água no rosto, o gosto de água fresca e natural na língua, e sobretudo aquela visão infinita e absurda de toda aquela água que a gente não entende o que raios está fazendo ali, pra que que serve tanta água junta assim?
Ao redor, tudo é lindo: o capim das rochas brilha com as gotículas de água, as folhas se agitam ao vento causado pelo simples deslocamento daquela água toda, flores pequenininhas crescem em moitas em ilhotas que parecem ikebanas no meio das partes mais calmas do rio. Não há peixes, logicamente; a vista é ótima mas a vizinhança é barulhenta e movimentada demais. Borboletas passeiam sobre as nossas cabeças e quando voltamos, muito a contragosto, a tartaruga ainda está lá na pedra, lagartando ao sol, perto dos pilares destruídos. Continuei abobalhada e muda por todo o percurso de volta à estação, e durante a volta no trenzinho, com os pés estendidos no banco à minha frente pra secar as meias. Comprei uns colares de contas de um índio perto da saída do parque (eles são cadastrados pra poder trabalhar no parque e vendem uns bichos artesanais horrendos – ou tudo que é artesanal é horrendo, a não ser o gelato italiano? – mas os colares de contas são bonitos), dei um tchau mental pra Garganta pensando que um dia ainda vamos nos encontrar novamente, tia, e fomos embora.
Hernán nos esperava na saída, e a primeira coisa que perguntou foi se tínhamos pego a lancha pra nos batizar nas águas de San Martín, como diz o panfleto do parque. Os meninos queriam comprar uma rede, então paramos pra escolher uns exemplares que um paraibano sorridente e com bafo de cachaça vendia à beira da estrada. Puxa de cá, conversa de lá, acabamos levando duas com um pequeno desconto. Fiquei com pena dele porque praticamente há só um fornecedor pra todo mundo que vende rede ali na área, e os vendedores não podem dar muito desconto porque afinal de contas eles também precisam comer. Nós fomos o primeiro cliente do dia e ele agradeceu com sinceridade, e sorriu sem dentes pra foto com o Gianni.
Resolvemos jantar no restaurante do hotel. Os meninos comeram saladas, omelete e arroz branco, e acharam tudo ótimo, coisa maravilhosa porque italiano é chato pra cacete pra comer, ainda mais quem foi acostumado com tomate da horta, frango do galinheiro da avó, vinho feito pelo tio. Eu ainda tava abobalhada demais pra sentir fome, e pedi pro garçom encomendar uma vitamina caprichada na cozinha, de mamão, banana e laranja, minha preferida.
Subi cedo pro quarto e fiquei estatelada na cama esperando o ar condicionado refrescar o quarto, antes de cair no sono. Revi os acontecimentos do dia, me preparando pra escrever, e cheguei à conclusão de que o parque argentino é mais tosco do que o brasileiro, mas como área natural é mais bonito, porque maior. Só que a nossa vegetação tropical é aquela exuberância deselegante que a gente conhece bem, conseqüência inevitável do calor e da umidade. Nada de bosques europeus arrumadinhos, não. No hemisfério pobre há muito undergrowth, sottobosco, uma confusão danada de parasitas, de bambus caídos, de plantas que trocam de casca, de cipós pendurados em ângulos aparentemente impossíveis, uma variedade confusa de verdes. Um excesso, uma bagunça, uma indisciplina, uma improvisação, enfim, um samba do crioulo doido que é, ao mesmo tempo, o nosso tesouro e a nossa inevitável ruína. É tudo tão vulgar, tão exagerado, tão desnecessário. Penso nas combinações bizarras e despudoradas de cores das roupas de muitas meninas sul-americanas que vimos no parque, e vejo que tem tudo a ver, não poderia mesmo ser de outro jeito. Tudo faz sentido. Ou talvez sou eu que sou self-conscious demais, não sei.
Passei a manhã em casa dando uma última geral, terminando de arrumar as malas, passando roupa. Almoçamos correndo e às três da tarde Gianni e Chiara passaram aqui. Quem nos levou até o aeroporto foi a Roberta, irmã do Gianni, que é muito gente boa. Quando viajam, Gianni e Chiara sempre têm que fazer o check-in o mais cedo possível, pra tentar arrumar lugar nas fileiras mais anteriores ou perto da porta de emergência, porque são muito altos e precisam esticar as pernas, senão morrem de desconforto. Acabamos sentando separados, mas pelo menos todo mundo tinha espaço suficiente pra evitar formigamentos, dores musculares e pés inchados. Voamos com a Aerolineas, e demos o azar de pegar uma tripulação antipaticíssima. O avião era meio velhusco. Nada do telão mostrando a posição do avião, velocidade, temperatura, tempo de viagem, essas coisas. O vôo estava lotado, uma quantidade impressionante de velhos sem loção, do tipo que não trancam a porta do banheiro e aí chega alguém querendo usar o banheiro e abre a porta e vê o velho lá dentro sentadinho na privada. Diliça. O jantar foi franguinho refogado com arroz branco e vagem, bem razoável pra mim, mas eu adoro comida de avião. Os meninos, obviamente, detestaram. Ao meu lado esquerdo, um piacentino fedendo a cigarro que só lá pro final do vôo resolveu puxar papo e contou que tinha um restaurante, mas que agora o vendeu e resolveu tirar um mês de férias pra pensar no que fazer da vida. No meu lado direito, um argentino que felizmente dormiu o tempo todo. Eu consegui dormir direitinho, até porque já tinha visto o filme que passou (Neverland), e entre uma soneca e outra dei uma lida no guia Lonely Planet que o Gianni comprou pra viagem. Qual não foi a minha surpresa ao ler aquela velha história de que os argentinos são italianos que falam espanhol e acham que são ingleses! Apesar de ser de três anos atrás, a edição italiana do guia é legalzinha, dá alguns toques básicos sobre a arrogância dos argentinos (chamada repetidamente de ”orgulho”) e sobre a decadência de Buenos Aires. Me diverti.
Chegamos bem cedo e pegamos um táxi até o outro aeroporto, o Aeroparque, que seria o equivalente ao Santos Dumont no Rio. O carro era um Peugeot caindo aos pedaços, com os vidros rachados e mala que não fechava direito. O motorista era uma figura, o clássico portenho paraculo (palavra italiana que eu amo e quer dizer algo como malandro, espertalhão), com cara de napolitano, cabelos muito escuros, sobrancelhas marcadas, olhar safado. Pegou um caminho comprido e engarrafado, e enquanto ele falava sem parar íamos vendo a paisagem: um viaduto parecido com o Paulo de Frontin, inclusive pela feiúra dos prédios colados nele, placas de trânsito tortas, poluição. Vimos até umas coisas favelais brotando nas margens de estrada, bem no estilo Maré, se o dono da casa estende o braço pra fora da janela chega quase a encostar nos carros que passam. E enquanto tudo isso passava o motorista falava que falava, descrevendo em detalhes o parto do primeiro filho, o sangue, a placenta, uma delicadeza só. Mas eventualmente chegamos, e esse aeroportinho é bem bonitinho, de frente pro rio, com uns belos gramados em torno. A estrutura parece nova e moderna, e ficamos dando umas voltas até a hora do vôo. Acabamos sentando num café pra passar o tempo, e puxei papo com uma senhora que morava em Foz e trabalhava com turismo e nos deu umas dicas do que ver, quanto tempo gastaríamos pra ver as cataratas, os preços dos ingressos e mais ou menos quanto os motoristas da zona cobravam pra levar os turistas pra lá e pra cá. Disse que nosso hotel não ficava muito perto do centro e por isso seria uma boa idéia estabelecer um preço fixo por dia com uma das quatro empresas que fazem esse trabalho por ali, de modo que teríamos sempre um carro e um motorista à nossa disposição.
O vôo, sempre da Aerolineas, saiu com 15 minutos de atraso, mas foi bem light. Serviram só uns sanduíches de queijo e presunto no pão de forma, porque o vôo era curto. Chegamos em Puerto Iguazu, que tem um aeroporto bonitinho, todo de tijolinhos, e logo de cara vimos as quatro escrivaninhas com os quatro fulanos que a senhora tinha descrito, sentadinhos ali entre a esteira das bagagens e a porta de saída, caçando turistas. Escolhemos um ao acaso e ele nos passou a um lourinho de óculos escuros, o Hernán, que é argentino de Mendoza, ao norte, mas morou em Foz e namorou brasileira e fala bem o português. Seguimos os conselhos da senhora no aeroporto de Buenos Aires e fomos direto do aeroporto pras cataratas brasileiras, que são menos extensas e podem ser visitadas numa tarde. Cruzamos a ponte Tancredo Neves, aquela cafonice das cores da argentina até a metade, e dali em diante o concreto lateral pintado em verde e amarelo. É cafona, mas não agüentei e dei de chorar. Não só por estar tecnicamente pisando no Brasil, mas principalmente por estar vendo árvores e plantas e pássaros que eu reconhecia, embora não conhecesse tudo, claro. Vi pés de mamão, mangueiras, bananeiras, flamboyants e muitas outras plantas às quais nunca fui apresentada pessoalmente mas que conheço de vista. Nunca tinha parado pra reparar nessas coisas, mas acho que é mesmo porque a gente só sente falta de determinadas coisas quando elas não fazem mais parte da nossa vida. Quem diria que o canto de um bem-te-vi, que aqui na Bota não existe, me faria chorar até o nariz inchar.
Mas tudo ali é tão feio, a gente é feia, a terra é vermelha e fina e mancha tudo, tudo é tão improvisado, os letreiros são pintados a mão, os carros são velhos, todo mundo perambula de sacola de plástico pendurada no braço (bem coisa de pobre, né não?), os nomes das lojas são terrivelmente cafonas, as Havaianas de pivete imperam – são aquelas brancas com as tiras verde-água, sacam?
O Parque Nacional é muito bonito e aparentemente muito organizado. Paguei meu ingresso com desconto mostrando meu passaporte, comprei uma lata de guaraná Antarctica no barzinho antes de entrar, passamos pela roleta e subimos num ônibus muito colorido, com um tucano estilizado pintado nas laterais. Sentamos no andar superior, e fomos passando pela estradinha asfaltada mas esburacada que atravessa a floresta. Outros ônibus vinham da outra direção, alguns do parque, outros de turismo; a gravação nos alto-falantes explicava onde estávamos, que animais poderíamos ter esperanças de ver, advertia a não dar comida aos quatis, jamais, porque eles ficam abusados e não podem ver um saco de batata frita que avançam na maior cara-de-pau. Descemos na última estação, Trilha das Cataratas, e percorremos todos os caminhos possíveis. As passarelas chegam bem perto das quedas menores e a gente fica lá, de boca aberta, tirando fotos com as mãos cobrindo a máquina pra que o vapor d’água não a molhe. A sensação é maravilhosa, aquelas gotículas finiiiiiinhas cobrindo meu rosto, meu rabo-de-cavalo torto, meus tênis vermelhos. Poderia ter ficado lá o dia todo, mas estávamos cansados e o Hernán nos esperava às seis e pouco na entrada do parque, então voltamos pra lojinha, compramos uns cacarecos e cartões-postais e fomos pro ponto de ônibus. Um pouco depois do hotel maravilhoso em estilo colonial que fica dentro do parque há um mini-complexo de lojas e barzinhos onte paramos pra tomar um suquinho Maguary de manga, que os meninos adoraram. Logo em frente fica uma estátua do Santos Dumont, que eu obviamente tive que explicar quem era e coisa e tal. Enquanto esperávamos o ônibus pra saída do parque, vimos um grande grupo de quatis saindo da mata e atravessando a rua na maior. Uma imbecil, que não sei de qual país da América Latina saiu, caiu na asneira de tirar da bolsa um pacotinho de salgadinhos. Não deu outra, os quatis enlouqueceram, começaram a pular nas pernas dela, estendendo as patinhas e puxando a mochila com os dentes. A idiota da mulher quase morreu de susto, e eu só pensando bem feito, vai na fé, quati, quem mandou ser otária e não obedecer às instruções da administração do parque? Gianni e Chiara, que nunca tinham visto um animal “selvagem” tão de perto, ficaram enlouquecidos. E assim terminou nosso passeio no parque.
Fomos direto ao hotel, que é bonitinho mas deu uma mancada tão, mas tão grande comigo que eu nem vou contar pra não me irritar outra vez. Meu quarto dava pra piscina, e naquele dia abafado o ar-condicionado foi muito bem vindo. Estranho assistir à TV em português de novo, ver pedaços de novelas que não conheço, atores novos, ex-atores-mirins que cresceram. Tomei um banhão show de bola no box imenso com portas de Blindex e desci pra encontrar os meninos. Mais tarde o Hernán passou pra nos pegar e fomos, caindo de sono, jantar no RafaIn, churrascaria com show de danças típicas sul-americanas. Dispensamos o show e comemos bem, mas não maravilhosamente bem. As carnes não tavam lá essas coisas, mas o feijão tava delicioso, a farofa idem, as frutas eram muitas, as saladas eram lindas, e os doces ótimos. Paguei com cheque do Itaú, que minha mãe tinha mandado para o hotel pelo correio. Assim que cheguei no quarto meu pai ligou, depois minha mãe, e depois não agüentei e chapei. Dormi mal, tive sonhos estranhos e acordei muitas vezes de madrugada. Excesso de cansaço não ajuda muito a dormir direito...
Nosso vôo saía de Eindhoven às duas e pouco da tarde, então tínhamos que sair cedo de Düsseldorf pra pegar a estrada com calma, reabastecer e devolver o carro, e fazer o check-in com tranqüilidade. Até que nem nos perdemos muito e caímos na estrada sem problemas. Chegamos em Eindhoven com muita calma, e aproveitamos a meia hora de tempo a mais pra dar uma olhada a jato na cidade. Estacionamos o carro na estação de trem e demos uma volta rápida por ali mesmo. Como não tinha nada pra ver, porque, honestamente, não tem nada pra ver ali mesmo além do estádio Philips, fomos fazer compras num supermercado onde já tínhamos ido em Rotterdam, ano passado. Eles têm umas sopinhas enlatadas ótimas, e fizemos um estoque, até porque com a falta de tempo e o horário em que chegamos em casa ultimamente essas coisas quebram o maior galhão: gorgonzola, lagosta, aspargos, salmão, frango, e só não compramos mais coisas porque não entendíamos o que estava escrito no rótulo e os desenhos não eram exatamente elucidativos. Também compramos couve-de-Bruxelas que tava em oferta e nós adoramos, dois tipos de pão de forma com grãos estranhos, e os xaropes de laranja e frutti di bosco que o Mirco adora, pra fazer refresco. Pegamos o carro e fomos direto pro aeroporto, não sem antes dar uma volta danada e inevitável, seguindo as instruções de uns holandeses simpáticos que passeavam por ali, naquele frio. Carro devolvido, check-in feito, sentamos pra comer uns sanduíches que tínhamos trazido do hotel em Düsseldorf, porque a única cafeteria do aeroporto não tinha nada a oferecer além de caríssimos sanduíches de pão de forma que não davam nem pro buraco do dente da galera esfomeada. O vôo foi light como sempre, dormimos todos como pedras, e depois foi só encarar a estrada de Ciampino até em casa.
Tio Ryan, eu te amo. Mas se não fosse o Euro, hein, Tio, cê não tava com essa bola toda não, podes crer. Trocar dinheiro é uma encheção de saco cara demais pra um mero fim de semana. Os preços aumentaram, principalmente aqui e na Grécia, mas pelo menos tornou tudo mais fácil.
A brincadeira toda saiu meio cara porque 1) alugamos carro e 2) dormimos em hotel e não em albergue. O carro, incluindo gasolina e pedágios e estacionamento, saiu por € 44 por cabeça. Uma noite no hotel saiu € 66 por casal. A passagem, a € 0,42/pessoa em cada trecho, acabou ficando uns € 40, por pessoa, ida e volta, depois das taxas. Não achamos a comida tão cara. Pena que não deu pra entrar em supermercado nenhum na Alemanha, porque tava tudo fechado no domingo.
Agora da Alemanha a única coisa que ainda tenho vontade de ver é a Bavaria. Da Holanda quero ver Utrecht, Delft e Maastricht. E aceito sugestões, obviamente. Até porque eu gostaria de curtir mais um fim de semana europeu, cortesia Tio Ryan, antes de partir pra Argentina.
Quando acordamos, às sete e meia, a vista da nossa janela era essa, não muito convidativa:
Descemos pra tomar café e os Mauros já estavam na mini-restaurantezinho do hotel. Eu AMO café da manhã de hotel. Como muito, me farto, e não preciso nem almoçar. E se tem uma coisa que a Alemanha tem de bom é o pão. Mil tipos diferentes, com grãos malucos, cereais estranhos, texturas diferentes, cores apetitosas. ADORO! Comi vários tipos diferentes de pãezinhos com gergelim, com semente de abóbora, com semente de girassol, com semente de papoula, com queijo na massa, com queijo por cima. Recheei com queijo, com presunto, com peito de peru defumado. Comi maçã, uva e pera. Comi cereal com leite. Comi mini-Brie e mini-queijinho-redondinho. Comi torrada integral com Philadelphia. Tomei iogurte de frutas e iogurte branco com mel. Tomei suco de laranja e leite achocolatado. Aaaaaah, que maravilha!
Fomos direto pra parte da cidade que hospeda esses grandes show-rooms permanentes de moda. Visitamos a sala da malharia do Gianni, cumprimentamos o pessoal, vimos como funciona a coisa. Vocês sabem que eu sou curiosa, e como nunca conheci ninguém que trabalhasse com moda, tudo isso é um mundo estranho pra mim. A sala deles, que é como se fosse uma loja meio intimista, é assim: em um canto há umas poltronas de couro branco muito estilosas. Ao lado, uma mesa onde as meninas selecionavam combinações de roupas pras modelos vestirem. Bem no meio, uma ilha com máquina de fazer café, uma bandeja de Baci Perugina, bloquinhos timbrados, essas coisas. Num lado, o banheiro e o trocador; no outro, os armários pros casacos dos hóspedes. Na outra parte da loja, outras duas mesas. Em torno à loja inteira, araras com as roupas, da coleção que sai em outubro nas lojas. Então o negócio funciona assim: o cliente (dono de loja) chega, dá uma olhada, hm, gostei desse casaquinho aqui; uma das meninas diz assim como quem não quer nada que o casaquinho fica muito bem com uma calça assim ou assada; o cliente faz hmmmmm pode ser, a tal das meninas chama a modelo, que pega as peças de roupa, vai pro trocador e veste o casaquinho e a tal calça e uns acessórios pra dar um tchan. O cliente olha, vê que a roupa fica legal no corpo, pergunta que outras combinações de cores são possíveis (porque o casaquinho tem, digamos, a borda interna das mangas de uma cor diferente da cor da malha), a menina da equipe pega uma pastinha de papel reciclado onde estão colados pedacinhos de tecidos coloridos e mostra as combinações possíveis. O cliente acha legal, pega um anel de madeira colorida de um negócio comprido porta-anéis em cima de uma das mesas, enfia o anel no gancho do cabide e recoloca a peça na arara. E assim vai. No final, anotam-se as peças que o cliente escolheu, marcadas com o anel da sua cor, o cliente escolhe as quantidades, e pronto, foi feito o negócio. Não é legal? Achei um sistema interessantíssimo. O que não é interessantíssimo é que eu adorei várias peças, mas não dá pra comprar agora, porque, como eu disse, só vão aparecer nas lojas em outubro. Bosta!
Dali fomos dar uma volta pelas ruas desse mesmo bairro. Eu gosto da arquitetura germânica, precisa e lógica; adoro as janelas quadradas e os telhadinhos que parecem de brinquedo. O Mirco já odeia tudo, acha os tijolinhos escuros deprimentes e as janelas quadradas com jeito de hospital psiquiátrico. Claro que o clima não ajudava em nada: neblina, frio, chuvinha chata às vezes. Claro que os bêbados nas ruas às nove da manhã também não ajudavam. Apesar do frio desgraçado, nos distraímos batendo papo e dando risada, e nem percebemos que nossos pés estavam morrendo lentamente, e prestes a cair.
Ao lado dessa casa bonitinha havia um show-room multi-marcas e, pro meu espanto, vi Havaianas no letreiro também! Pena que não tinham vitrine.
Depois de umas voltas nos mandamos pra cidade velha, Altstadt. Que é bem bonitinha e tem uma pracinha linda, mas eu acho que estava esperando algo de muito mais velho. Entramos na igreja de S. Andreas, com um interior tardo-renascimental germânico/barroco muito claro e bonito, e um homem que roncava terrivelmente num dos bancos do fundo. Achamos interessante o mijador logo na entrada da Altstadt. Achamos terríveis os cartazes anti-mijo colados em tudo que é lugar, que provavelmente querem dizer "vai mijar na tua casa, seu nojento".
Descobrimos com surpresa que chegamos no meio do carnaval Dusseldorfense. Carnaval em Düsseldorf significa, pelo que entendemos, desfiles em trajes militares típicos de não sei qual época. O estranho é que os uniformes e as perucas brancas com rolinhos laterais tinham toda a pinta de uniforme do exército Inglês da época do Último dos Moicanos, sabe? Chegamos na praça principal, que não fotografei porque a luz tava péssima, e vimos um palco com umas meninas vestidas assim de militar, fazendo umas coreografias muito simples, estilo chacretes do programa do Bolinha, sabe, perninha pra cá, um passinho pra lá, e coisa e tal, ao som de algo que deveria ser uma marchinha militar, latida em alemão. Um bêbado berrava coisas estranhas no microfone, mas além de umas risadinhas discretas não vimos nenhuma outra manifestaçao de alegria do público. No meio da praça, uma barraca distribuía cerveja, obviamente. Ficamos esperando pra ver se o pessoal se animava, mas nada. Ficou naquilo mesmo.
Então continuamos a dar voltas pelo centro antigo e fomos parar nas margens do rio – juro que esqueci o nome em Português; em italiano é Reno. No verão a vista deve ser deslumbrante, porque as casas do outro lado do rio são LIIIINDAS e as pontes são muito bonitas, mas a neblina que pegamos dava vontade de chorar. Olha que horror:
Bateu uma fominha básica e fomos almoçar. Queríamos comer no Schumacher, que estava no guia de Düsseldorf que o Gianni baixou da internet, mas foi só a gente chegar perto que vimos um dos grupos carnavalescos (cada grupo, que eu suponho que corresponda a um bairro, tem cores diferentes) entrando e entupindo o lugar, e tivemos que desistir. O centro antigo é cheio de restaurantes de cozinha de tudo que é lugar: tailandesa, libanesa, chinesa, argentina, italiana, espanhola, irlandesa, americana. Aliás, o que eu vi de restaurantes e lojas com nome italiano e letreiros exibindo "made in Italy", "italianisch", "Roma", "Luigi", etc, não tá no gibi. Acabamos indo comer no Maredo, uma rede de comida pseudo-espanhola/pseudo-mexicana que as meninas da malharia nos tinham recomendado na noite anterior. Eu não almocei, claro, depois daquele café da manhã nababesco. Um garçom simpático, Boris, mandado por uma gerente ASQUEROSA, veio tentar nos ajudar a decidir o que fazer depois do almoço, comunicando-se através de mímica, expressões faciais e canetadas no nosso mapa. Lá fora víamos passar outros grupos carnavalescos, e quando saímos um outro desfile fresquinho estava começando, envolvendo cavalos, meninas de tranças que pulavam pra esquentar as pernas protegidas só por meia-calça fina, e um adorno de chapéu muito estranho: COLHERES DE PAU. Alguém, pelamordedeus, sabe me explicar o que colheres de pau fazem nos chapéus de um uniforme militar antigo alemão? Fiquei me coçando de curiosidade, mas como ninguém fala Inglês em lugar nenhum dessa terra, não tinha ninguém pra quem perguntar. Alguém sabe alguma coisa a respeito disso?
Passeamos ao longo da Königsallee, uma avenidona bonita com um canal no meio e mil lojas chiques de moda francesa e italiana. Como as lojas estavam TODAS fechadas, inclusive nos shoppings, não tinha mais muita coisa pra fazer. Então resolvemos ver a única coisa que nos restava: a torre Rheinturm. Sabíamos que daria pra ver muito pouco lá de cima, porque lá de baixo a situação era essa:
Mesmo assim subimos, feito seis otários, e obviamente não vimos xongas porque das vidraças só se via o branco da névoa. A vista deve ser lindíssima quando o tempo tá legal, e a torre é também um relógio de alta precisão cujo funcionamento ignoro. Descemos os cento e tantos andares no elevador rapidíssimo e voltamos pro hotel.
Os meninos foram fazer sauna e bater papo; eu fiquei lendo Dickens. Mirco voltou, tomou banho, reclamou da falta de civilização que é não ter bidê (todos os italianos que eu conheci até hoje aqui na Itália central medem o nível de civilização de um país predominantemente através do fato de ter ou não ter bidê), vimos uma meia horinha da cobertura CNN das eleições no Iraque, e encontramos o resto do povo na recepção. Onde vamos jantar? Voltamos pra Altstadt, tentamos um restaurante libanês, comi um quibe ótimo e uma esfiha hedionda, desistimos, rodamos, chovia, pelamordedeus vamos entrar em qualquer lugar antes que os pés e os narizes caiam, e acabamos parando no mesmo restaurante da noite anterior. Que felizmente estava bem menos cheio, e conseqüentemente com o ar mais respirável – parece que a precisão dos alemães ainda não chegou ao departamento de saúde pública, porque todo mundo fuma em tudo que é lugar, mais ainda do que na Itália, e quando eu perguntei ao garçom velho e antipático se eles não tinham uma seção não-fumantes recebi como resposta um grunhido e uma risada de desprezo. Conseguimos achar o tal garçom simpático da outra vez, e com a ajuda de um menu em Inglês finalmente conseguimos fazer o pedido. Dessa vez todo mundo atacou o joelho de porco, menos eu e Chiara, que fomos de filé com pirê de batatas mesmo. Estava uma delícia, com um acompanhamento de brócolis num molhinho de ervas que não conseguimos evitar. Tínhamos pedido o prato sem molho nenhum, zero molho, nein sauce, porque na noite anterior os filés vieram soterrados por uma coisa amarela muito estranha que tinha toda a pinta de salsão num molho de maionese, mas não conseguimos descobrir exatamente o que era. Italiano não é chegado em molhos bizarros e normalmente não come coisas que vêm escondidas ou nadando em molhos bizarros, por isso quase todos que pediram filé na outra noite acabaram comendo só os croquetinhos de batata que por um acaso do destino foram salvos do molho bizarro. Mas o molhinho no brócolis eles não resistiram. Pelo menos não era à base de maionese, que eu abomino. Comemos muito bem, batemos altos papos filosóficos, religiosos e históricos, e voltamos pro hotel pra dormir.
Mirco acordou às cinco e foi direto pra oficina, pra deixar umas coisas organizadas pros meninos pintarem mais tarde. Eu não conseguia mais dormir e fiquei lendo Dickens, depois tomei meu banho, um bom café da manhã, peguei o carro do Mirco e fui pegar o Gianni e a Chiara em Santa Maria. Dali fomos pra Torgiano pegar o Mirco, e pegamos a estrada. O Mauro e o não-Mauro, que moram em Bastardo (juro), já meio que no caminho pra Roma, nos encontraram num Autogrill na estrada mesmo. Passamos um ligeiro excesso de bagagem pro carro deles e fomos direto até o aeroporto de Ciampino.
O vôo saiu na hora, como sempre, porque Tio Ryan não nos decepciona jamais, e todo mundo dormiu direitinho. Chegamos no aeroporto de Eindhoven, que é minúsculo e todo bonitinho limpinho moderninho, e logo de cara vimos um ruivo com uma menininha que segurava um cartaz com o nome do Mirco. É que nós estávamos levando três caixotes de aventais com o nome da escola de cozinha da irmã do Mirco, que o namorado dela deveria ter vindo de Rotterdam pegar. Como estava de cama com a gripe que pegou a Europa de jeito, mandou o amigo ruivo, que nós já tínhamos conhecido no aniversário do tal namorado, em abril do ano passado, na Toscana. Descarregamos os caixotes de aventais, pegamos o carro alugado da Hertz (um Wolks Sharan de 9 lugares) e, até que com poucos problemas, porque quem estava co-pilotando não era o Mirco e quem dirigia era o Gianni, caímos na auto-estrada.
A paisagem é bonitinha mas muito triste no inverno. As casas holandesas são tão arrumadinhas, sempre com uma florzinha, um bicho, uma coisinha fofa na janela, cortininhas brancas, telhadinhos impecáveis, cerquinhas simétricas. Mas as árvores secas e nuas, o céu cinza, o termômetro do carro que marcava 3 graus lá fora, os campos marrons, tudo isso dá uma tristeza!
Paramos num hotel/restaurante na estrada pra almoçar. Eu adoro os holandeses; são quase sempre muito simpáticos e sempre falam Inglês direito. Comemos bem; os meninos atacaram uns hamburgers abertos com salada e eu e Chiara fomos de bruschetta de cogumelos com presunto e salsinha. Voltamos pra estrada e logo depois ultrapassamos a pseudo-fronteira com a Alemanha – e imediatamente neguinho começou a ultrapassar nosso carro a um milhao de quilômetros por hora. Chegamos a Düsseldorf quando já estava escuro. Custamos um pouco pra achar o hotel, entre Platz de cá e Strass de lá, mas finalmente chegamos.
O hotel era... estranho. Não me levem a mal, tudo muito arrumado e limpo, funcionários cordiais (eu disse cordiais, não simpáticos), mas os quartos eram... estranhos. Estávamos no último andar, e todos os quartos eram duplex. No andar de baixo, a TV com duas poltronas, o banheiro e a porta que dava pra uma varanda comum a todos os quartos daquele andar. No segundo andar do quarto, acessível somente através de uma escada íngreme assassina, da qual por pouco não caí e quebrei o pescoço mais de uma vez por ter cometido o crime de querer fazer xixi no meio da noite, a cama e um armário. É melhor não acordar e levantar de repente da cama, por causa do alto risco de dar uma cabeçada no teto baixo e inclinado. Atrás do hotel, a estação de trem, que felizmente não era muito barulhenta. O aquecimento do quarto não funcionava nem com reza forte; o da parte de baixo funcionava, e muito bem, e o calor que subia era suficiente pra dormir direito.
Então; tomamos banho, trocamos de roupa e fomos jantar com o pessoal da malharia onde o Gianni trabalha. Eles mantêm um show-room permanente em Düsseldorf, que é, e eu não sabia, um importante pólo de moda na Europa. Havia uma feira internacional de moda entre 31 de janeiro e 2 de fevereiro, e todo ano, nesse evento, uma equipe da malharia vai a Düsseldorf, cuidar pessoalmente dos clientes. Eu e Mirco também fomos convidados e fomos jantar na cidade velha com o pessoal da empresa. Ao todo, éramos 15. O restaurante, cujo nome não consegui decifrar entre as letras excessivamente góticas do cartão de visitas, era tipicamente alemão, freqüentado por alemães, o que não é necessariamente um elogio. A cerveja é de produção própria e, disseram todos, gostosa e bem leve – eu não sei, tenho pavor de cerveja, fiquei na Pepsi horrivelmente sem gás mesmo. Só um garçom foi simpático com a gente, talvez porque alemães e italianos estejam, moralmente e comportamentalmente falando, em pólos opostos. Falava um Inglês muuuuuuuuuuuuuito xexelento, mas dava pro gasto. Quase todo mundo comeu salsichão branco (...) com repolho (...); eu e Gianni pedimos peito de frango grelhado com arroz de ervilhas e um outro acompanhamento gostoso, de cogumelos e umas coisas que jamais identificamos nadando num molhinho pálido. Mauro não-Mauro foi de joelho de porco com repolho. Coitado do Mauro, que dividiu o quarto com ele.
Demos muita risada; a equipe da malharia (que pega até mal chamar de malharia; eles só trabalham com cashmere e lã Merinos e apliques de vison verdadeiro e coisas do gênero, e as roupas custam uma fortuna já aos lojistas, imagina pra nós, pobres mortais) é simpática, ainda mais quando a cerveja corre solta. Mas lá pra uma certa hora ninguém se agüentava mais em pé, e fomos nanar.
Ontem Gianni e Chiara vieram aqui em casa à tarde pra resolver a história da viagem. Fizemos as reservas, que hoje foram confirmadas por e-mail. Então o itinerário vai ser assim: eu e eles vamos sair de Roma dia 14 de março. Chegamos em Buenos Aires de manhã cedo, mudamos de aeroporto e pegamos diretamente o vôo pra Foz do Iguaçu (que em espanhol vira a maravilha "Iguazu", socorro). Como o Mirco já viu as cataratas duzentas vezes e não pode ficar mais que uma semana longe da oficina, eu vou antes com os meninos, vemos as cataratas e Itaipu, voltamos pra Buenos Aires dia 18, encontramos o Mirco no aeroporto e vamos diretamente lá pra baixo. Não lembro direito a ordem das paradas, porque honestamente essa não é a viagem dos meus sonhos e não participei ativamente da organização, mas vamos ver El Calafate, Perito Moreno, Ushuaia e coisas assim. Depois voltamos pra Buenos Aires, que o Mirco conhece bem, ficamos ali alguns dias e voltamos pra casa dia 30.
De uma certa maneira me sinto uma traidora, por estar botando os pezinhos tão perto de casa e não passar por lá, mas não tem outro jeito. Pelo menos assim o Mirco tira essa cisma de Patagônia da cabeça, e na próxima vez que formos ao Rio vamos ficar só lá, em vez de catar sarna patagônica pra nos coçar e encolher meu tempo em solo carioca.
Hoje vamos jantar peixe na casa deles e ajustar os últimos detalhes, como reserva de hotel, etc. Eles compraram um guia da Argentina, que só o Lonely Planet tem; fiquei tentada, mas é tão caro quanto o da Irlanda, e perguntar qual dos dois eu escolheria é como perguntar a macaco se quer banana.
Acabamos de comprar bilhetes por € 0,62 (que na verdade, com todos os impostos e coisa e tal, acaba custando uns € 40 por cabeça) pra Eindhoven. Gianni tem um congresso sei lá do que por aquelas bandas e aproveitamos pra ir junto. Não tenho a menor idéia do que exista por lá pra ver, se é que existe. Vamos dia 29 de janeiro e voltamos dia 31, só o fim de semana mesmo.
Se alguém souber de algo interessante pra se ver por ali, por favor me avise!
. Rever as meninas do colégio, no casamento da Dani, depois no aniversário da Mari, e depois ainda no Seu Martim, no Leblon: Mari, Patricia, minha prima Erica, Briza, Alessandra, Bebel Lobo, Manu!!! Manu, que eu não via há séculos e é uma das pessoas mais alto-astral que eu conheço! Cada dia mais bonitona, e hoje ainda é G/O e médica do trabalho. As meninas, respectivamente: Mari trabalha com moda, Patricia tem uma produtora de vídeo, a Erica e a Briza são dentistas (a Erica faz canal e a Briza esqueci), a Alessandra canta pacas. Bom, já sabem: precisando de médicos ou dentistas de qualquer especialidade, é só falar comigo que eu tenho mil ótimas indicações pra dar. É uma das maiores vantagens de ser ex-médica.
Eu e a doutora Manu, o alto-astral em pessoa I.
Doutora Manu, Méri-Gu (o alto-astral em pessoa II), eu e o lanterneiro.
Patricia, minha prima Erica, Bebel Lobo, Mari e eu.
. A escova progressiva. Quéridos, não tenho palavras pra descrever a felicidade de ser lisa, leve e solta. Qualquer que seja a doença que o formol na cabeça possa dar, é dela que eu quero morrer.
. Bater papos filosóficos sobre medicina oriental, acupuntura, ying e yang e outras coisas interessantes mas além da minha compreensão, até altas horas, em frente ao meu prédio, com Huňka e Newlands, depois de chopada + belisquetes (com direito a banana split) no Manuel e Joaquim da Barão com a Farme.
. Ser acordada às seis da manhã por um telefonema da lastminute.com avisando que o vôo do Mirco foi juntado com o meu, e que por isso viajaríamos juntos, ao contrário do que tinha sido inicialmente programado.
. Fazer esteira no play do meu prédio olhando pra vista da Lagoa.
. Comprar calça jeans maravilhosa na Richards e sapatos lindos na Mr Cat pro Mirco a preço de banana pra quem ganha em euro.
. Comer banana de verdade, e não essas porcarias porto-ricanas que se vendem aqui.
. O milkshake de Ovomaltine do Bob’s.
. Shrek 2 no avião de ida, e Mean Girls, aquele com o Pierce Brosnan e Julianne Moore, e 13 Going on 30 no avião de volta.
. Conhecer a dra. Vania, dermatologista, chique e simpática, que deixou o Mirco impressionado como os médicos no Brasil conversam com os pacientes – coisa que na Itália não acontece, nem quando eu digo que sou médica também (o ex nesses casos eu prefiro omitir, claro).
. TODOS os porteiros e amigos e conhecidos pedindo notícias do Legolas.
. Sobremesas decentes nos restaurantes (os doces por aqui são de razoáveis a ruins).
. Já falei da escova progressiva?
. Ver que minha avó está magra, e ótima.
. Receber uma tonelada de amigos da minha mãe lá em casa, e alimentá-los com pasta fatta in casa que eu penei pra fazer com o Mirco, porque nem rolo de macarrão tínhamos e improvisamos com garrafa de vinho mesmo.
A Luciana, de camisa listrada, é uma olftalmologista de primeira. Precisando, é só perguntar.
. Bater perna no centro da cidade.
. Fazer uns trabalhinhos pro Flash e descolar uma graninha extra.
. Receber Newlands, Hiro e sra., Duduzão e sra. lá em casa, e alimentá-los com piadina de speck com queijo prato e milho, e sorvete Gigi.
. Ficar sentada batendo papo nas escadas da praia do Leblon, esperando o tempo passar até a hora de ir ao cinema.
. Os mil livros e roupas que eu amo e já tinha esquecido que tinha, e estavam lá, abandonados num canto do armário e num pedaço da estante.
. Ganhar malas novas e lindas da minha avó.
. O espetacular esquema de buzum com ar condicionado que leva até a estação de metrô da Siqueira Campos.
. A comida da minha avó.
. Rever o pessoal do curso de italiano: Riccardo (marido da Valéria), Serginho, Syrléa/Suely, Lulu de Luxemburgo, Valéria.
***
. Carregar malas pesadérrimas no trem de Roma pra Foligno.
. Ver minhas malas novas e lindas vindo pela esteira do Fiumicino completamente imundas e com as rodinhas já meio tortas.
. Não ter espaço na mala pra trazer todos os mil livros e roupas que eu amo e já tinha esquecido que tinha, e estavam lá, abandonados num canto do armário e num pedaço da estante.
. Bater perna em Ipanema.
. Fazer compras ótimas e baratas com cheque pré na Animale do Bostafogo Praia Shopping.
. Comer muito pão de queijo, muito mesmo.
. Ver amigos do meu irmão de quem eu gosto muito: Bruno, Werther, Ferdinâncio, Carlos. Conhecer a Carol, espertíssima namorada do Werther, que desenha as capas dos CDs da banda.
(meu irmão, eu, Huňka, Mirco, e esse grande bem no foreground é o Brunão, gente boa bagaray.)
***
. Ter que abaixar a cabeça com medo de tiroteio na volta do aeroporto, por causa de uma blitz muito estranha bem em frente à favela da Maré.
. Constatar que algumas coisas não mudam nunca e por isso minha mãe continua sem internet em casa.
. As pessoas horrorosas nas ruas.
. Andar de ônibus.
. Experimentar abacaxi na feira e levá-lo pra casa descascadinho, pingando suco dentro do saco plástico.
. Os feirantes da Nossa Senhora da Paz mexendo com o Mirco: lindo, compra a minha jabuticaba! Lindão, compra manga aqui comigo, ó!
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. O cheiro de mijo de mendigo na rua.
. Flanelinhas.
. Rever minha tia Ilse, meu avô Jayme, meu tio Alfredo e tia Sônia e os meninos.
. Rever o pessoal do Flash, embora eu tenha dado um bolo neles como nunca dei na minha vida.
. Tomar chocolate quente com pão de queijo com o Freddy na Letras & Expressões do Leblon e voltar de 157, cujo percurso ainda conheço como a palma da minha mão.
***
. Ver os outdoors do Brasas dizendo "Saiba Porque o Brasas... etc etc". Só esse porquê errado já seria suficiente pra me mandar pra qualquer outro curso furreca de Inglês.
. Voltar rapidamente a ter a mania de abaixar os pinos das portas assim que entramos no carro.
. O carro da minha mãe, o famoso Alface (eu SEI que alface é feminino, mas nesse caso o artigo combina com o substantivo "carro"), caindo aos pedaços na esperança eterna de ser substituído por outro melhor, que por sua vez depende da compra de outros por parte de outras pessoas.
. Ver mil labradores por metro quadrado e cumprimentar todos eles.
. Poder ver TV a cabo.
. Constatar que algumas coisas não mudam nunca e por isso a Sony continua com aquela babaquice de terças de limão e quintas de moranga.
. Ver a frase "ganhou uma viajem" escrito em letras garrafais na sua TV. Cortesia Sony Entertainment Television.
. Ver o já erudito vocabulário do Mirco aumentar substancialmente: pára com isso, fala baixo, menino, não podje (ele adorou essa frase), quero/não quero, uma água minerau e treish chikabon, homenharanha, sorvetchi, fíume, Autchibéqui, milquishêiqui dji ovomautchíni du Bóbish, Catupiry, maracujá, sapoti, lula, camarão, lagoshta, Seu Zé.
. Ouvir minha mãe tentando falar em espanhol com o Mirco. O detalhe interessante é que ela NÃO FALA espanhol.
. Voltar pra casa bêbada de tanto rir depois de rever dr. Pfaender e dra. Raquel (esses filhos da mãe anteciparam o casamento porque o Pfaender tá grávido, ou pelo menos tão barrigudo como se estivesse, e por isso eu não vou poder ir), dr. Alexandre e dra. Fernanda, e o ex-futuro-doutor Raphael Mulé – respectivamente médico de barriga, G/O, médico de barriga, pediatra, publicitário (?). Tinha ANOS que eu não ria tanto assim. Até agora tenho ataques de riso sozinha quando lembro do Alexandre contando a piada do concurso de pênis (olha como eu sou educada).
No photos, unfortunately.
. Ter engordado uns duzentos quilos.
No photos, obviously.
As listas ficaram muito compridas, então vou dar um alto e um baixo de cada vez, nessa ordem, e quando possível com fotos ilustrativas. Blog didático é isso aí.
. Rever grande parte do pessoal da faculdade no Pizza Park, na Cobal do Humaitá. Na ordem da foto, da esquerda pra direita: dr. Bernardo Lopes, ortopedista, e sua futura senhora, dra. Sabrina Alvim, pediatra; dra. Flavia Pinho, anestesiologista; dr. Rodrigo Buzzatti, ralador no INCA; doutores Claudio e Maria Marta Tortori, pediatras e ex-professores; e por último eu, que não sou nada. Faltou a dra. Yasmine, a.k.a. Djésmine, residente de Neurocirurgia e rainha dos bombeiros, mas vai ser difícil de achar assim na China, hein?
. Andar pela feira Hippie e achar tudo incrivelmente horroroso e absolutamente mal-acabado.
Oi! Estou aqui no trabalho da minha mãe, aproveitando a internet. Eu deveria estar no centro resolvendo umas coisinhas básicas, mas desde ontem estou com uma enxaqueca, coisa que eu nunca tive na vida, que está me dando vontade de chorar.
[Detalhe: tem microondas aqui no escritório e acabaram de fazer pipoca. Surreal.]
Mas comecemos do começo.
A viagem foi OK. Sexta almoçamos pesce na Arianna e dali fomos correndo pra estação, que fica pertinho. Meu trem pra Roma Termini saiu às 14:07, não sem os habituais 5 minutos de atraso, claro. Não sei por qual motivo o trem não era aquele compriiiiido que normalmente é usado pra ir a Roma ou Firenze, porque o movimento de passageiros é grande. Era um trem de só três vagões, um bem velhão mesmo, igual ao que eu pegava quando malhava em Perugia e voltava pra Assis com o trem das nove da noite, cheio dos senegaleses que moram em Perugia e trabalham na fundição em S. Maria. Mas esse pra Roma estava entupido era de chineses. A cada dois minutos um chinês levantava e ia ao banheiro, pra voltar logo depois. Fiquei intrigada, mas não tive coragem de perguntar. Depois pensei no que a Cora relatou depois da sua viagem por aquelas bandas, que os chineses não acham muito legal reter fluidos no organismo, e por isso quando vem a vontade de escarrar, escarram, onde quer que estejam. Não tem outra explicação. TODA HORA um chinês levantava pra ir ao banheiro; a única outra explicação possível seria uma incontinência urinária coletiva que obriga suas vítimas a mijar em dois segundos e voltar correndo pro seu assento no trem. Não, não, eles iam era escarrar mesmo, coisa de segundos, não precisa nem de concentração nem de inspiração literária, ao contrário da necessidade fisiológica número dois.
Chegamos em Roma atrasados e lá fui eu atravessar a estação inteeeeira empurrando o carrinho com as malas, porque os trens que vêm da Umbria descem na plataforma 1 e a navetta pro aeroporto sai da plataforma 26 - diametralmente oposta, claro. Cheguei no último minuto, esbaforida como sempre, e felizmente consegui lugar pra sentar, mas minhas malas ficaram no meio do corredor mesmo, atrapalhando, porque realmente não tinha outro lugar pra botá-las. E chegando no aeroporto foi tudo muito light.
De Roma a Madrid voei de AirEuropa, uma companhia... espanhola. Ai meus sais, a viagem inteira ouvindo aquela gente falando aquela língua medonha... Desço no aeroporto de Madrid, que é imenso e muito bonito (pelo menos a parte que parece ser ou mais nova ou reformada há pouco tempo), e tenho que dar a volta toda outra vez, porque novamente eu desci no terminal, sei lá, F, e meu vôo saía do terminal B. Fiz um check-in tabajara num balcão no meio de um corredor, notei que é permitido fumar em certas zonas do aeroporto, que obviamente ninguém respeita, e continuei até o portão B8, onde fui chamada pelo microfone pra fazer um novo cartão de embarque, não-tabajara. O vôo saiu no horário, mas era um vôo da Varig... Operado pela Pluna. Companhia uruguaia. O que significa DEZ HORAS CERCADA DE GENTE FALANDO ESPANHOL. Juro, achei que fosse morrer. Ao meu lado, no corredor, uma senhora simpática de 76 anos que nasceu na Itália mas morou 55 anos na Argentina e agora mora na Espanha, onde vivem seus dois filhos, há 14 anos. A velhinha era um amor, mas eu não consigo ouvir espanhol por mais de 10 segundos sem me irritar seriamente, e ela obviamente praticamente não falava mais nada de italiano. Pior: eu com fone no ouvido, vendo Shrek 2, e ela querendo conversar! Pelo menos consegui dormir depois do filme, embora tenha acordado várias vezes, até porque rolou um pouco de turbulência.
Os uruguaios são bonitos! As comissárias altas, elegantes, de traços finos e andar elegante. Uma era linda estilo Miss, de verdade. Pena que fala aquela língua hedionda. Quando abre a boca pra perguntar se você quer pollo, com aquele som do LL que não é nem L nem J, mas algo inbetween, imagino que broxante não deve ser pra um homem de bom senso, que, como eu, acha até swahili mais bonito que espanhol. E tinha um comissário que era UM-PI-TÉU, uma coisa de louco! Alto, aloirado, um nariz ma-ga-vi-lho-so. Só precisava lavar os cabelos, mas enfim, vai ver que não deu tempo de tomar banho antes de viajar, né...
A comida: até notei uma certa boa vontade, pois o frango era ao curry com arroz branco, e havia também a opção por massa, que eu escolhi sem pestanejar. Eram cappelletti com recheio de ricota e espinafre, até gostosinhos (eu ADORO comida de avião), mas com molho de... PIMENTÃO. O arroz do frango também tinha pimentão, a minha vizinha comeu e eu vi. Eu tenho verdadeiro horror a pimentão. E honestamente nunca ouvi falar de pimentão combinando bem com massa de recheio leve como ricota e espinafre. Mas enfim, a gente encara de tudo nessa vida quando a fome bate, e comi numa boa - ou quase. Tinha até pãozinho quentinho com Polenghinho, diliça.
Cheguei ao Rio às cinco e meia da manhã e foi só botar o pé no aeroporto e ver a cara das caça-gringos que tinham descido do vôo de Frankfurt pra querer me esconder no trem de pouso do avião da Pluna e voltar correndo pro interior do Haiti. Socorro! A próxima vez que alguém vier dizer que acha brasileiro bonito eu vou mandar dar um pulo no Galeão. Ou então ver o DVD do casamento da FeRnanda, que também foi assustador em alguns momentos.
Como madrugada não é o melhor momento do dia pra passear na Linha Vermelha, minha mãe chegou com minha avó lá pras seis e meia. Cheguei em casa, tirei toda aquela comida das malas, tricotamos um pouco, tomamos café da manhã (pão francês com requeijão e peito de peru defumado, leite com Toddy e duas bananas pratas deliciosas), tomei banho e capotei na cama. Acordei pra almoçar (filé mignon assado no forno com bacon, salada de legumes, arroz e feijão manteiga) e fiquei alternando sono e Sony até umas cinco da tarde, quando fomos ao cabeleireiro em Copacabana alisar a juba e fazer as patas.
Às sete rolou o casamento da Dani, irmã da minha amigona Mari, que estudou comigo desde o Jardim 11, no Andrews. Foi na capela da UFRJ da Praia Vermelha e estava tudo lindo. Eu tava com um tailleur da minha mãe que cheirava a naftalina, porque a viagem foi tão corrida que não deu tempo de arrumar coisa melhor. Vi muitas caras conhecidas do Andrews e encontrei Briza e Patricia; a Briza estudava em outra turma mas a gente tinha amigas em comum, mas mesmo assim me surpreendi dela ter me reconhecido imediatamente, e a Patricia também estudou comigo a vida inteira e é uma figura. Fui com ela e o namorado pra festa, no Rio Vista, lá no alto da torre do Rio Sul (onde um dia foi o Maxim's). Eu nem lembrava que existia aquilo lá, nem lembrava mais da vista deslumbrante. Me diverti horrores. A festa foi divina, dancei a noite inteira com gente que eu não via há anos, bebi caipirinha e prosecco, dancei forró com o tio Morris, pai da noiva, tirei foto com Mari e o namorado Habib, mas em um certo ponto não agüentei mais e fui, de scarpins na mão e meia-calça rasgada nos pés, pegar o taxi pra voltar pra casa. Lembro de bater altos papos com o motorista do taxi, mas não lembro sobre o quê e também não lembro a que horas cheguei em casa. Dormi feito uma pedra mas acordei ontem às oito da manhã.
Tomei meu café, li jornal, encarei uma verdadeira maratona Sony, almocei, dormimos até umas quatro da tarde, e foi nessa hora que a dor de cabeça atacou. Não venham me dizer que é ressaca porque se fosse o caso eu já teria acordado de manhã me sentindo a última das criaturas, e não foi nada disso. Sei que mesmo com a cabeça explodindo pentelhei minha mãe e fomos à Primavera dos Livros, no Jóquei. Conseguimos encontrar a Newlands, batemos um papo, comprei mil livros (nenhum da minha lista, hohoho) mas não dava mais pra mim. Voltamos pra casa, jantamos um risotto ai funghi porcini da Coop que eu trouxe, fiz um bolo de chocolate de caixinha pros amigos do meu irmão, que tavam lá em casa jogando RPG, batemos papo com eles, e antes das dez e meia eu já tava roncando outra vez.
Hoje ainda tive forças pra descer ao play e fazer meia hora de esteira e meia de ergométrica na sala de ginástica. Depois saímos pro Itaú do Rio Sul pra resolver o lance do meu cartão, que bloqueou-se todo depois que eu errei a senha da internet três vezes, e viemos pra cá. Não pretendo fazer mais nada hoje além de dormir e ver TV. Estou péssima.
***
Tudo é muito estranho ainda. As placas dos carros parecem minúsculas perto das italianas, bem maiores. As ruas fedem e são imundas. Eu tinha esquecido da feiúra das pessoas, da miséria constante, do trânsito enlouquecedor, a ponto de botar o de Napoli no chinelo, do carro velho da minha mãe, do gosto da água do filtro de barro, do toque do telefone da cozinha. Esqueci onde ficam os talheres, os lençóis, as calcinhas, embora nada disso tenha sido mudado de lugar desde que fui embora. A chave roda fácil na fechadura da porta da cozinha, ao contrário da nossa em Bastia, que é dura feito pedra. A geladeira está recheada de coisas que eu não via há dois anos e meio. As gavetas têm dimensões diferentes, as camas são mais estreitas, a paisagem deixou de ser familiar, o quadro com o poster do TinTin que o japa me deu eu nem lembrava mais que tinha, meus livros estão espalhadas pela casa porque minha mãe está reorganizando a estante, há prédios novos na rua e mais um subindo na rua sem saída atrás de casa, o computador do meu irmão tem a tela tãaaaao pequena, há cadeiras novas na sala, a revista de domingo do Globo eu não sabia que existia, o feijão com arroz não são tão gostosos quanto eu lembrava, ainda não me reacostumei ao carioquês falado ao meu redor, me faltam palavras pra descrever tanta coisa. Estou numa realidade paralela. O que não é necessariamente bom.
Bom, a manhã vai ser agitada porque tenho ainda últimas coisitchas pra resolver em casa e ainda vou a Perugia pegar as cópias das radiografias do Ettore. Vamos almoçar na Arianna e depois vou de trem até Roma e de lá pego o shuttle (navetta) até o aeroporto. Meu vôo sai às oito da noite.
Como o computador do meu irmão subiu no telhado, aliás, foi subido, porque foi meu próprio irmão que involuntariamente o matou, provavelmente vou dar uma sumida boa daqui. Podem continuar escrevendo, mas saibam que só vou responder quando voltar, dia 13 de outubro. Se for alguma coisa urgente, escrevam pro endereço velho, aquele superleticia arroba libero ponto it. Só peço a cortesia de mandar uma cópia pro pacamanca ponto com, porque senão eu me perco depois e não sei o que já li, o que já respondi, etc. Sim, eu sou chata com essas coisas.
Me ne vado. Arrivederci!
A Varig anda me decepcionando. Além de ter cortado os vôos diretos saindo ou chegando de Roma, forçando todo mundo a parar em Milão, tem essa bosta da bagagem também. Quem sai diretamente de Milão tem direito a DUAS MALAS DE 32 QUILOS. Quem sai de outra cidade tem direito só a UMA DE VINTE QUILOS! E eu, que teria direito a mais dez quilos de lambuja por ser cliente Smiles Prata, nem isso tenho mais! Agora me diz: onde é que eu vou levar todas as piadinas, as tortas, os vinhos, os molhos e tudo o mais?
E a coisa mais ridícula é que eu não aprendo a pedir informações em italiano, quando ligo pra eles. Se peço em Português, quem atende é uma portuguesa, que eu obviamente sofro pra entender.
Resolvemos ir ver La Défence, uma espécie de núcleo executivo todo moderno, com um arco quadradão e modernoso, exatamente na mesma linha do Arco do Triunfo. Alessandro já tinha estado lá e falou que era bem bonito, tem uma loja gigante da Fnac, tem um telão pro pessoal ver as Olimpíadas, vale a pena ver, então resolvemos ir dar uma olhada. Descemos na estação de Charles de Gaule – Étoile, vimos o Arco do Triunfo, e em vez de caminhar na direção dos Champs Elysées, seguimos pela Avenue de la Grande Armée. Levamos séculos pra chegar a La Défence, primeiro porque é longe pacas e segundo por causa da minha mancação. Mas chegamos.
É um lugar lindo, os prédios comerciais altíssimos revestidos de vidro espelhado, mas nada de cafonice. Jardins agradáveis, espelhos d’água (e cachorros nadando neles), restaurantes pra atender o pessoal que trabalha por lá, e lá na praça principal, onde ficam o pavilhão que abriga a Fnac, o shopping center e a estação de metrô e trem, vimos o tal telão e um bando de desocupados assistindo a uma competição qualquer dos Jogos. Como já tava na hora do almoço, fomos catar um lugar pra comer. Entramos no Panamé, se não me engano, de decoração digamos antiquada mas menu interessante. Comi um filé de atum grelhado com batatas fritas picantes, Mirco foi de entrecôte com batatas ao forno. A pizza dos nossos vizinhos de mesa parecia gostosinha, mas era pequena e custava 11 euros, uma afronta! Pagando o mesmo comemos nossas carninhas gostosas, e enquanto degustávamos as batatas desabou um toró lá fora. Uma quantidade de água caindo que eu nunca vi igual. Imagino que as chuvas no Pará sejam assim, estilo opa, a caixa-d’água virou. O pessoal correndo que nem louco, se escondendo onde podia, mas não tinha muita escondeção porque praça é praça, né, as poucas árvores eram jovens ainda e baixas, além do que ficar embaixo de árvore durante tempestade é a maior roubada, vocês sabem. O restaurante é todo de vidro, então a gente almoçou assistindo ao pessoal se encolhendo debaixo da marquise, bundas amassadas contra o vidro bem do seu lado enquanto você come sua sobremesa. Em cinco minutos acabou tudo e todos os desocupados voltaram aos banquinhos de frente ao telão.
Nós fomos dar umas voltas no shopping center, Mirco comprou umas calças jeans e uns suéteres e um par de tênis, e fomos nos juntar aos desocupados. Quando nos sentamos estavam mostrando uma competição de tiro com arco, muito legal. Quando mudaram pra ciclismo indoors, o Mirco começou a sentir sono e foi deitar na mureta da praça, como um mendigo. Eu fiquei lá, sentada no meio daqueles machos todos, atrás de um cabeludo com cara de sujo. Depois do ciclismo veio o judô, com lutas lindas, depois várias disputas de esgrima, e quando um Francês levou uma espadada inesperada o pessoal fez oooooooooooooh e o Mirco acordou. Pegamos o metrô e fomos direto ao supermercado, onde encontramos o Alessandro. Compramos linguiça e creme de leite pra fazer penne alla Norcina, mas não tinha mais penne e acabamos indo de farfalle mesmo. Meio quilo de macarrão De Cecco, que aqui custa uns 80 centavos, lá custa o dobro. Mesmo a massa Barilla, que custa um pouco menos, era cara. Mas era hora de ir pro albergue cozinhar, senão logo ocupavam as únicas duas bocas funcionantes do fogão (no comment) e a gente ficaria chupando o dedo.
Aí começaram as heresias gastronômicas. Na boa, eu acho muito triste alguém não saber cozinhar NADA, mas se você não cozinha NADA, em vez de ir ao supermercado comprar verduras e carne e arroz que você NÃO SABE cozinhar, não é mais fácil comprar um prato pronto que é só esquentar no microondas? Não, jacaré. Ouvimos de tudo nessa noite. O Mirco com a água fervendo e as farfalle nadando lá dentro, chega uma criatura que não sei de onde era, uma mulher com seus 30 anos, e pergunta se ela não podia aproveitar e cozinhar os spaghetti junto, já que o tempo de cozimento era o mesmo. Quando o Mirco perguntou como ela pretendia separar as massas na hora de comer, ela não respondeu. Depois ela perguntou a mim se na água do cozimento o molho já estava misturado. Não é de dar pena? Tudo bem você não ter a mais remota idéia de como se faz um molho, mas bastaria olhar dentro da panela e ver a água incolor pra perceber que não há nada lá dentro além do próprio macarrão que está cozinhando.
Duas mongas francesas, mas de origem claramente magrebina, esquentavam óleo numa frigideira. Muuuito antes do óleo atingir a temperatura certa elas jogaram imensos pedaços de batata crua na frigideira. Perguntei o que elas achavam que estavam fazendo; a resposta, inevitável: batata frita. Aham, respondi. Olha só, fritura tem que ser coisa rápida, o óleo tem que estar bem quente, e os pedaços têm que ser pequenos, senão em vez de fritar eles vão cozinhar no óleo, coisa bem diferente (e bem mais nojenta). Ou vocês cortam as batatas em formato palito ou, se quiserem fazer batata corada, deixam em pedaços maiores, dão uma cozidinha no microondas rapidinho, e depois fritam muito rapidamente. Sacaram? Sim, sim. Mirco precisava da boca do fogão que elas estavam ocupando com a frigideira pra fazer o molho, e perguntou se elas não queriam jantar com a gente e esquecer as batatas, que a essa altura já tinham absorvido mais óleo do que o Zeca Pagodinho absorve cerveja. Elas concordaram e tiraram a frigideira do fogo, e resolveram seguir meus conselhos e jogar fora as já nojentíssimas batatas gordurosas. Diretamente da frigideira quente pro saco plástico, êeeeeeee, derreteu tudo, e elas não entendiam o porquê. Ficaram assistindo ao Mirco cozinhando e ele, percebendo o nível de imbecilidade das duas, perguntou se elas comiam linguiça. Não, somos vegetarianas! Caralhos estampados, você está vendo o Alessandro desmanchar quatro linguiças na panela, custa dizer olha, a gente não come carne? Se o Mirco não tivesse perguntado elas teriam ficado sem jantar. Odeio gente idiota, odeio, odeio. E a coisa ainda piorou: depois de picar as batatas restantes em pedaços microscópicos e cozinhá-los no microondas por tempo demais, e mesmo depois de já terem decidido que jantavam com a gente, e mesmo depois do óleo da frigideira já estar frio, elas jogaram essas batatinhas pequenas e cozidas no óleo. Tipo assim, já fica pronto pra fritar amanhã no jantar.
O alemão (as austríacas já tinham ido embora), John, um mexicano, as gêmeas brasileiras e a mãe delas jantaram com a gente. Foi muito legal, rimos pra caramba, contamos altas histórias. Dormir em albergue é SEMPRE desconfortável, mas esses encontros bizarros só acontecem em albergue, não tem jeito. Onde mais você encontraria um meio-rasta que faz colares de conchas? Onde mais você encontraria uma mula que acha que o molho já vem com a água do macarrão? Onde mais você entraria no seu quarto pra dormir e encontraria um casal de indianos suíços sorridentes, que olham pra você e começam a falar em Francês numa velocidade impressionante? Na verdade ele estava dizendo que tinha queimado a lâmpada do banheiro e se a gente quisesse tomar banho ele emprestava a lanterna. Fica pra amanhã, queridos.
Hoje é o aniversário da minha avó.
Saímos uma meia hora mais cedo do albergue e fomos diretamente ao Louvre. Nem vou falar nada porque realmente não há o que dizer. Rodamos muito, entramos na muvuca pra ver a Mona Lisa, e mais tarde saímos do museu pra catar um lugar pra almoçar. Fomos cair num lugarzinho chamado Le Pelican. Eu tava com vontade de comer crêpe salgado ou então uma quiche de qualquer coisa, e no quadro-negro com os pratos do dia e especialidades da casa havia boas opções tanto de quiche quanto de crêpe, e sentamos, apesar de não parecer lá muito limpinho. Só uma senhora loura e sorridente, enfiada numa jaquetinha cinturada completamente fora de moda, com mangas bufantes, atendia. Botava a mesa, tirava a mesa, pegava os pedidos, trazia os pedidos, fazia a conta, pegava o dinheiro, dava o troco. Sem perder a classe, jamé. Só que nessa lerdeza levamos horas pra comer – e no final das contas não tinha nem a crêpe que eu queria, nem a quiche pela qual eu tinha me interessado, e acabei comendo outra coisa. Mirco foi de omelete mesmo, que é mais seguro.
Uma coisa legal de Paris, e, dizem, da França em geral, é que ninguém fica te enchendo ou fuzilando com o olhar ou dando indiretas pra você sair do restaurante. Se você não pedir a conta, ninguém te traz. Ninguém te expulsa. Você tem toda a calma do mundo pra comer e bater papo. Estranhamente, na Itália não é assim. Digo estranhamente porque o culto à comida aqui é quase uma religião, a cozinha é uma coisa levada muito, muito a sério, e o italiano adora papear, então realmente não entendo por que qualquer refeição em qualquer restaurante aqui dura pouquíssimo. Os pratos vêm voando, mesmo quando tudo é preparado na hora; a conta vem assim que os pratos vazios são retirados, e se você insiste em ficar sentado à mesa logo vem aquela sensação de mal-estar, de estar atrapalhando, ocupando a mesa de quem quer sentar.
Um casal sentado ao nosso lado, numa mesa minúscula como a nossa (outro motivo de reclamação do Mirco, as mesas microscópicas), puxou papo. A senhora era filha de italianos e falava muito bem a língua. O marido arranhava algumas palavras, aprendidas de tanto ouvir os sogros falando alto em italiano :) Foram muito gentis, mas nos deixaram em paz quando chegaram os crêpes de Nutella (que, aliás, poderiam perfeitamente ter sido a base da minha alimentação durante toda essa semana, se não fosse o meu bom senso) e foram embora.
Nós voltamos ao Louvre e terminamos de ver o que faltava. CLARO que eu sei que pra admirar direito tudo o que há lá dentro são necessários vários dias. Mas lembrem-se de que eu NÃO PODIA PARAR EM PÉ, pra admirar nada. Vimos TODAS as salas de TODOS os setores, andares, departamentos, mas tudo correndo, porque senão o sangue descia ao tornozelo direito, não conseguia mais subir por causa do edema, e a dor era verdadeiramente lancinante. Deixo aqui fotos das estátuas de Aníbal e de Júlio Cesar, colocados lado a lado, de um cabeção da Ilha de Páscoa, e de um tríptico medieval muito bonito.
Quando finalmente eu pedi arrego, botamos a carinha pra fora do museu e tava chovendo MOOOITO. Todo mundo parado ali embaixo da entrada esperando a chuva passar pra atravessar a rua e pegar o metrô. Ainda passamos no supermercado antes de voltar pro albergue. Dei uma descansada com os pés pra cima, tomei meu banho complicado e descemos pra jantar.
Ontem o Mirco teve piedade de uns espanhóis que cozinharam o macarrão por meia hora e acabaram comendo uma coisa desforme com pseudomolho de tomate, e convidou os meninos pra jantar com a gente. Só que eles deram o bolo e acabamos oferecendo a pasta que sobrou ao John, americano de 20 anos que estava rodando pela Europa há algumas semanas sem dinheiro nenhum. Ele tinha comprado um pacote de macarrão e uma lata de molho, que deveriam durar a semana inteira. O cara é uma figura, como vocês podem ver. Foi a primeira vez que eu conheci um semi-rasta. Ele explicou que foi um amigo dele quem fez os dreadlocks, levando quatro horas pra fazer metade da cabeça, enquanto ele levou duas horas pra fazer a cabeça inteira do amigo. Mas por que MEIA cabeça? Ele disse que seus dreads eram de inspiração celta (???), que os celtas misturavam mechas normais de cabelo com dreadlocks e trancinhas, mas ele achava muito confuso e resolveu organizar melhor a coisa, por isso fez só meia cabeça. Então tá. Ele pinta, num estilo confuso que eu não entendi direito como é, e disse que tem intenção de ir morar em Praga, porque ele é completamente anti-americano e quer morar na Europa, onde há um melhor relacionamento com a arte. Como Praga é a única capital européia que ainda é economicamente viável pra quem não tem um tostão, como ele, foi a cidade que ele escolheu. In bocca al lupo, John.
Conversamos também com um alemão de língua presa e duas meninas austríacas muito bonitas, e conhecemos duas gêmeas de Florianópolis que estavam passeando na Europa com a mãe, tão simpática quanto elas duas. Marcamos um jantarzão coletivo pra amanhã.
(Na foto vê-se uma sacola cheia de conchinhas, que o John estava tentando furar com aquela tesoura, pra fazer um colar. O Mirco está com os óculos fundo de garrafa do John.)
Queríamos ver o mercado de rua no Jardin des Plantes, na Rue Mouffetard. Descemos na estação Monge e voilà!, provavelmente o mercado também estava de férias, como, aliás, metade das lojas de Paris, porque não tinha nada. Fomos andando, andando, andando, eu mancando, mancando, mancando, e fomos parar no Quartier Latin. Entre os bairros de Jardin des Plantes e Quartier Latin fica o Institut du Monde Arabe (1 rue des Fossés-Saint-Bernard - Place Mohammed V), que eu nem sabia que existia mas o Mirco já conhecia, pelo menos de fora, e tinha passado a manhã toda martelando meus ouvidos pra gente ir ver de perto.
Olha, é inacreditável. Simplesmente um dos edifícios mais lindos que eu já vi na minha vida – e olha que eu não sou muito chegada a coisas modernosas. A fachada sul é formada por 1600 painéis de metal de alta tecnologia, que filtram a luz que entra no prédio. São inspirados nos moucharabiyahs, telas de madeira entalhada que se usam no exterior de edifícios desde o Marrocos até o sudeste asiático (fonte: Le Guide Mondadori – Parigi). O acervo do museu também é lindo, com peças interessantíssimas de todo o mundo árabe. Meu pai e meu avô teriam crises histéricas lá dentro (meu bisavô era sírio).
Saindo dali fomos dar umas voltas. O tempo estava legal, mas soprava um vento estranho. Atravessamos a Ile-St-Louis, ali do lado, onde ouvi um Tico-Tico no Fubá tocado no violino por um velhinho numa ponte, e a Ile de la Cité, passamos pela Pont Neuf e caímos em Saint-Germain-des-Près.
É um bairro muito legal, cheio de lojas fofas e livrarias maneiras, felizmente todas fechadas porque senão teria sido uma frustração só, já que não tenho um tostão pra gastar. Acabamos almoçando por lá mesmo, num restaurantezinho bonitinho chamado Séraphin (5 rue Mabillon), cujo único defeito era a insuportável música dominicana tocando sem parar. Novamente levamos horas pra achar algo decente no menu. Eu fui de salada com filé de frango, que veio linda no prato, estilo morrinho, com tiras de peito de frango estendidas no sentido da altura. Claro que já veio cheia de molhos estranhos. Pra mim, que só como salada sem nada, nem azeite, nem sal, foi meio suplício, mas comi tudo. Mirco pediu umas coisas que nem eu lembro, e que não mataram sua fome mas deram pro gasto. Estávamos cansados de tanto bater perna e pensamos em ir ao cinema, mas o Mirco tava morrendo de sono e queria ir dormir num banco de praça. Só que lá pro final do almoço desabou um toró horroroso, e achamos melhor voltar pro albergue. No caminho paramos pra ver a igreja de Saint-Germain-des-Près, a mais antiga de Paris, e bem do jeito que eu gosto: velhona por fora e pelada por dentro (foto acima). Tivemos que nos abrigar debaixo da marquise de uma banca de jornal pra esperar a chuva passar, depois pegamos o metrô e voltamos. Eu tomei meu banho e fui dar uma descansada com o pé pra cima; Mirco e Alessandro foram ao supermercado comprar cerveja e coisas pro jantar. O Miguel, aquele cardiologista argentino que tínhamos conhecido dois dias antes, tinha combinado de voltar do trabalho às nove da noite e de jantar com a gente, e foi pontualíssimo. Depois de comer ficamos batendo papo até tarde da noite. Foi muito agradável, ele é um cara muito educado e interessante, e o Alessandro também é gente boa. Pena que o Miguel vai embora amanhã.
Quando acordamos o vento uivava lá fora e o céu estava preto, preto. Meu pé doía muito, e por isso resolvemos começar o dia com um programa light: um passeio de ônibus de duas horas, passando pelos principais pontos turísticos de Paris.
E é hora de um aparte: olha, Paris é linda, é culta, é sofisticada, é linda e maravilhosa. O metrô cobre bem a cidade inteira, o tempo de espera é sempre mínimo, os mapas são bem claros e é impossível se perder. Mas PUTA QUE PARIU, UMA ESCADA ROLANTEZINHA DE VEZ EM QUANDO IA BEM, HEIN? De TODAS as estações onde saímos, entramos ou fizemos baldeação, só duas tinham escada rolante, e mesmo assim só até a metade do caminho. As que abrigam mais de uma linha, além das escadas, oferecem quilômetros e mais quilômetros de caminhada. Na boa: como é que faz o aleijado, o acidentado como eu, o velho, o mochileiro, a mulher com sapato desconfortável, o cego, a mãe com o carrinho do bebê, o exausto, o que fez compras, como é que esse povo faz pra se locomover? Numa cidade italiana eu até entendo, afinal a Itália é primeiro mundo e meio, mas pô, em Paris, a cidade mais visitada do mundo, famosa pela sua "vivibilidade", não tem o menor sentido. Sofri como uma condenada, manquei muito por todos aqueles corredores pra mudar de linha, penei com todas aquelas escadas. Mó bola fora. Esse desconforto e os altos preços foram as únicas coisas que odiamos em Paris, de verdade.
Mas então, descemos na estação de Pyramides e fomos direto à Cityrama, agência que organiza vários passeios de ônibus, inclusive pra fora de Paris, no esquema excursão pra velhinho, sabe – com almoço incluído e coisa e tal. Compramos nossos bilhetes e entramos logo no ônibus, que por sorte saía dali a dez minutos. Botei o headphone nas zoreia e fiquei escutando as explicações em italiano. Mirco dormiu durante a primeira hora do passeio, mas acordou quando passávamos em frente à Torre. Chovia horrores mas o passeio foi ótimo; é bem legal pra quem quer ter uma idéia básica da cidade, uma noção básica de orientação. Chato mesmo é o preço: € 24 por pessoa. Ui.
Quando termina o passeio, você pode descer perto do Opéra ou em frente à agência, onde você pegou o ônibus. Descemos no Opéra mas logo tivemos que voltar correndo porque o Mirco tinha deixado a máquina fotográfica dentro do ônibus, e a mulinha da agência me disse, no telefone, que não podia fazer nada porque só tinha ela e outra pessoa na agência àquela hora. Vejam bem: o ônibus estaciona EXATAMENTE em frente à loja. Bastaria a mulinha acenar pro motorista pra ele descer, atravessar a calçada e entrar na agência pra saber o que tava pegando. Mas não, Mustafá, eu fui mancando devagar e o Mirco correndo feito um doido varrido no meio da rua pra chegar ao ônibus antes dele sair de novo, só porque a mulinha não queria abanar os bracinhos pra chamar o motorista. Mas tudo bem, a chuva parou e fomos procurar um lugar pra almoçar.
Aqui começou o problema: eu até acredito que se coma muito bem em Paris, mas nós tivemos uma certa dificuldade. Nesse dia caímos numa armadilha pra turista porque começou a chover de novo e eu, de sandália porque não conseguia usar sapato fechado, tava tremendo de frio, com os pés molhados. Não tinha como escolher; entramos no primeiro restaurante que vimos, que obviamente era uma merda, e obviamente era caríssimo. O problema todo é que o Mirco, como todo italiano, é um porre pra comer. Eu como poucas coisas, mas as coisas das quais gosto eu como até quando são mal preparadas. O Mirco não. Fora que o italiano gosta de comida simples – carne grelhada, massa com pouco molho, nada de cremes mirabolantes. Ou seja, nada de comida francesa. Eu tive graves problemas com a maionese nessa viagem. Porque eu ODEIO maionese. Como acontece com o vinagre e com o chá, só o cheiro da maionese já é suficiente pra me dar ânsia de vômito. E TUDO em Paris tem maionese, até um reles sanduíche de presunto com queijo. Mas tudo bem, fingimos que comemos bem pagando pouco e aproveitamos que a chuva parou de novo e o tempo deu a impressão de que iria firmar pra ir finalmente à Ile de la Cité.
Começamos pela Sainte Chapelle, cujas fotos no guia pareciam lindíssimas. Uma fila imensa. Até aí tudo bem, turista nasceu pra camelar, mesmo sendo complicado pra mim – vocês já entenderam, o pé dói horrivelmente quando eu fico em pé parada. Mas quando vimos que cobravam ingresso, aaaah não, darlings, eu não dou um centavo a nenhuma instituição religiosa, nunca, jamé – digamos que vai contra a minha religião, hohoho ;) Então caminhamos até a Notre-Dame. Que é UM DESBUNDE. E quanto brasileiro! Reconheci vários sotaques, muitos mineiros e alguns paulistas, e uma horripilante família de sotaque nordestino com as roupas mais hediondas que vocês podem imaginar. Claro que não subimos pra ver as gárgulas porque, novamente, cobravam ingresso.
Comemos um crêpe (aliás, crêpe é feminino ou masculino? Não reparei. Mula.) de Nutella ali perto, comprei o básico chaveirinho da torre pra chave do scooter, e fomos à Conciergerie. Basicamente é o lugar onde os condenados à guilhotina esperavam a hora H. Maria Antonieta ficou hospedada lá por uns tempos, tadinha. Há coisas interessantes pra ver, mas não sei se valem os € 6,10 do ingresso. O melhor foi na hora de sair: no guestbook, no alto da página na qual assinamos, algum italiano tinha deixado escrito: "Ma quanto è cara Parigi?!"
A essa altura do campeonato eu já não me aguentava mais em pé, de verdade. O tornozelo inchado e vermelho, com dois sulcos feitos pelas tiras da sandália. Bem pimba mesmo. A chuva tinha parado de vez e resolvemos voltar pro albergue, até porque tínhamos combinado de ir jantar na Flabb e ainda queríamos passar no supermercado pra comprar um vinhozinho. Tomei banho, dormi um pouquinho, peguei nossa sacola de secos e molhados (que continha um quilo de penne Spigadoro, cuja fábrica fica aqui pertinho, em Bastia, e que pertence ao avô de uma ex-namorada do Mirco; duas abobrinhas da horta da Arianna; salmão em lata; uma garrafa de Chardonnay) e saímos. Pra chegar até a Flabb mudamos de linha duas vezes e obviamente nos perdemos quando saímos da estação final, tendo que ligar pra ela, mas chegamos. Flabb acenando da janela feito uma louca e nós dois na rua, eu mancando e o Mirco repetindo "que coisa estranha encontrar uma amiga que você não conhece. Que coisa estranha você TER uma amiga que não conhece."
Vou logo dizendo que o bairro onde ela mora é um docinho, o prédio é uma gracinha, adorei o interno azul do edifício, não gostei de ter que subir até o quarto andar de escada mas só porque estava manca, normalmente não tenho nada contra escadas. O apartamento dela é lindinho, arrumadinho, a cozinha é mínima mas espertamente aproveitada, esquecemos o macarrão no fogo enquanto batíamos papo na sala e tivemos que jogar fora (cof cof cof) e recomeçar porque o Mirco se recusa a comer massa scotta (cozida demais), ela desencavou um copo de requeijão Poços de Caldas light pra botar no macarrão, fofocamos muito, rimos, adorei a Flabb, com certeza a gente teria se conhecido de alguma maneira se tivéssemos ficado no Rio porque ela é exatamente o tipo de amiga que eu prefiro: esperta mas não cruel (de cruel já basta eu, né, por favor), boazinha mas não chata, engraçada, gosta de comer e ler, e a mãe dela tem cachorros lindos! Dei de presente pra ela um livro que eu tô querendo ler há séculos mas não tinha comprado na Itália porque não conseguia descobrir qual era a língua original. Agora já sei, é Francês, por isso vou ter que comprar a tradução mesmo. Em Português chama-se Queimada Viva e foi escrito por uma muçulmana que, claro, foi queimada pelos familiares porque fez alguma coisa que o Corão não aprovava – pediu o divórcio, acho. Vi a entrevista dessa mulher na TV há algum tempo e me interessei pela história. A Flabb me deu Autograph Man, o segundo livro da Zadie Smith (falarei dele mais tarde).
A sobremesa foi petit gateaux com um sorvete de baunilha que era uma coisa de louco. Infelizmente o vinho deixou o Mirco com sono, e eu também estava exausta e com o pé gigantesco de tão inchado, e e achamos melhor picar a mula. Fomos de táxi porque realmente não dava, crianças. Foi deitar a cabeça no travesseiro e chapar.
Ah, não tem foto do encontro porque eu sou a pessoa menos fotogênica do mundo e saí horripilante.
p.s.: Fotos feitas dentro de Notre-Dame. Reparem na última linha do cartaz que pede exorbitantes dois euros por cada velinha (detalhe que UM QUILO dessas velas, na IKEA, custa pouco mais de um euro, se não me engano): Foreign money accepted. Depois neguinho acha que eu sou radical quando digo que a Igreja Católica é simplesmente uma multinacional muito, mas muito bem sucedida. Que nojo, nojo, nojo, nojo.
Acordamos às 8:30 e descemos pra tomar café. Chafé, suco de laranja com gosto de plástico, chocolate quente delicioso, leite quente; pãezinhos com manteiga ou geléia. Nós trouxemos presunto e queijo de casa, principalmente porque as embalagens já estavam abertas e se deixássemos na geladeira a semana inteira, estragar-se-iam (linda mesóclise). Fomos de metrô até o Museu Picasso. Descobri que meu pé dói mais se eu ficar parada em pé, por isso tenho que ficar caminhando o tempo todo, ou então sentadinha com o pé pra cima. Quando gostava muito de um quadro tinha que ficar passeando pra lá e pra cá em frente a ele, pra poder admirar direito. Adorei, apesar de odiar arte extremamente abstrata. Dali demos um pulo até a Place des Vosges, pra decidir aonde ir. Fomos andando até o Beaubourg, demos uma volta no Centre Pompidou, depois no Les Halles e acabamos almoçando perto do Pompidou, num restaurantezinho charmoso, com um cartaz da Bebel Gilberto na porta do banheiro. Comemos bons ravioli de ricota com molho de dois queijos, e Mirco ainda encarou um entrecôte com salada e batata frita.
Dali pegamos o metrô até Montmartre. Conselho de amiga: não pegue o teleférico pra subir até a igreja. Não precisa, e pelo preço do bilhete, € 1,60, fica menos necessário ainda. A igreja, que obviamente é a Sacré-Coeur, é um desbunde de linda. Havia uma estranha mancha vermelha, enorme, na torre direita, que não descobrimos o que era. A vista lá de cima é bonita, e não dá pra deixar de comparar com a vista que se tem de Roma lá do alto daquele diabo de Bolo de Noiva na Piazza Venezia. Paris é clara, Roma é toda em tons de terra (eu particularmente gosto mais da vista de Roma).
A torre só dá pra ver descendo a escadaria e virando à direita, na direção do centro do bairro. A praça é cheia de artistas sujinhos que fazem caricaturas e retratos, alguns cafonas, outros lindíssimos. Mil lojinhas de crepe e de kebab espalhadas por todo o lugar. Paramos pra comer um crepe com Nutella, que ninguém é de ferro, e depois voltamos pro albergue, porque meu pé tava inchado, vermelho e dolorido, bem pimba mesmo. No nosso quarto, um casal de chilenos e um de americanos, todos recém-chegados. Todos na fila do banho. A americana, imensa de gorda, levou horas pra tomar banho. Depois foi o Mirco, que assim que acabou desceu pra preparar o jantar, e depois fui eu.
O que será que leva alguém a construir um banheiro com as seguintes características:
1. Chuveiro daqueles odiosos que você aperta o botão, a água cai por alguns segundos, e depois pára, e você tem que apertar de novo.
2. Pia microscópica com torneira de jato tão forte que depois de escovar os dentes você sai do banheiro parecendo que se mijou nas calças, de tanta água que espirrou na sua cintura e nos seus países baixos.
3. NENHUM gancho ou prateleira pra apoiar shampoo, sabonete, roupas secas, toalhas, nada.
Quando finalmente consegui terminar o banho, com o pé direito apoiado na pia e fazendo acrobacias pra me lavar sem molhar as feridas (e as roupas e a toalha, que eu acabei botando em cima da única cadeira do quarto, devidamente transferida pra dentro do banheiro), eu já tava morrendo de fome. Desci e felizmente o Mirco estava dando o toque final ao macarrão com molho de tomate e ervilha. Enquanto o macarrão cozinhava, fizemos amizade com o Alessandro, italiano de Monza que tava comendo uma lasanha congelada requentada no microondas, comprada no supermercado perto da estação de metrô ali da zona (Hoche). Claro que ele aceitou sem pestanejar a oferta de um segundo round de jantar preparado comme il faut. Uma coreana que já tinha comido dois potinhos de uma coisa muito, muito nojenta com consistência de paté e cor de uma coisa que eu não vou dizer o que é, rodava pra lá e pra cá, morrendo de curiosidade sobre o que o Mirco tinha na panela. Acabou sendo convidada pra jantar também, e ficou emocionadíssima por saber que todos os ingredientes tinham sido trazidos diretamente da Itália e eram genuinamente italianos! Ela já tinha visitado a Inglaterra, a Alemanha (ela também odiou Berlim, esqueci de perguntar se o diploma dela era comprado) e agora estava na França, mas no ano que vem tinha planos de fazer a Europa Meridional – Portugal, Espanha, Itália e Grécia. Meio biruta a menina, tagarela até não poder mais, e apaixonada por um cara que ela conheceu na Inglaterra. Depois do jantar fomos todos ver TV e jogar conversa fora. Conhecemos um argentino que mora na Itália há alguns anos, o Miguel, que é cardiologista e estava em Paris a trabalho – antes que alguém pergunte o que um cardiologista estava fazendo num molambento Albergue da Juventude, eu digo logo que se eu tivesse SEIS filhos também passaria o tempo todo tentando economizar cada centavo, inclusive dormindo em albergues molambentos. A coreana biruta continuava falando sem parar, mais ainda depois de tomar umas cervejas que o Mirco e o Alessandro foram comprar no boteco turco ali do lado, e acabou me emprestando um cartão telefônico pra eu ligar pra Flabb e tentar entender onde ela mora. Achei a voz dela idêntica à de uma amiga da minha mãe chamada Baixinha.
Ali na sala de TV também conheci um geólogo brasiliense que mora no Rio e é muito gente boa, uma paulistana boba que está só há três semanas em Paris aprendendo Francês mas já quer voltar pra casa (e isso porque ela é comissária de bordo e não fala uma palavra de Inglês), e uma oxigenada horrorosa de Fortaleza que está há três meses na França "só na putaria", palavras dela, e acha que consegue transformar um não-visto de turismo em um visto de estudo na Sorbonne. Faz-me rir. Depois que essas duas mongas foram dormir eu fiquei batendo papo com o geólogo, cujo nome nem perguntei, por mais algumas horas. Até que deu uma canseira generalizada na galera e todo mundo foi dormir.
Acordei sozinha às cinco da manhã. Fiquei vendo reprises das Olimpíadas até umas sete, quando consegui pegar no sono outra vez, mas fui acordada às oito com um telefonema: alguém procurando, como sempre, o Doutor Eros, veterinário que um dia já foi o dono do nosso número de telefone. Mirco acabou acordando também e cismou de ir tomar café na rua, coisa que nunca fazemos. Como quase tudo tava fechado, porque em Ferragosto o país inteiro pára, fomos parar lá em Santa Maria, na pasticceria Marinella. Comemos nossos croissants com presunto e queijo, tomamos nossos sucos de fruta, papeamos rapidamente com a Piera, sogra da FeRnanda, que encontramos por lá, e resolvemos dar uma volta na Basílica de S. Maria, porque lá dentro tem um roseiral que eu nem sabia que existia e o Mirco queria me mostrar. Não é nada de extraordinário, são rosas de alguma espécie sem espinho que provavelmente neguinho acha que é milagrosa exatamente por esse motivo. Fiquei impressionada com o tamanho da igreja. Eu só tinha visto a parte interna, normal, onde tem a Porziuncola e onde se celebram as missas, mas claro que nunca fiquei passeando lá pelas entranhas. O negócio é imenso, os corredores são largos, os blocos de pedra são gigantescos – e as portas são todas fechadas, obviamente. Hohoho.
Voltamos pra casa pra fazer as malas, fechar janelas, tirar tudo da tomada, essas coisas chatas pré-viagem. Voltamos a S. Maria, passamos na nossa padaria preferida pra comprar pão e fomos almoçar na Liliana, tia do Mirco. Massa curta com molho de bichos diversos (porco, carneiro e ganso), depois ganso assado com batatas ao forno, que eu dispensei porque tinham muita semente de funcho, que eu odeio com todas as minhas forças. Lá pras duas e quinze partimos. Fui dirigindo porque o Mirco tava morrendo de sono e veio roncando ao meu lado no carro, enquanto o CD player tocava os CDs de música anos 70 que eu gravei pro casamento da Renata.
Ciampino é um aeroporto ótimo. Pequeno, tranquilo, estacionamento idem e idem (mas custa a mesma fortuna que o Fiumicino). Nada de longas distâncias empurrando carrinhos, nada de saídas erradas e placas confusas. Fizemos logo o check-in e ficamos sentados vendo o povo passar.
Uma fila enorme de gente indo a Ibiza. Todos no estilo "fighettone", óculos escuros da moda (ALGUÉM UM DIA VAI TER QUE ME EXPLICAR POR QUE NEGUINHO ACHA SUUUPERFASHION USAR ÓCULOS ESCUROS EM LUGARES FECHADOS), Havaianas com bandeirinha e tudo, calças Capri ou jeans e sandália ou tênis, algumas garotas de cabelo muito obviamente alisado, muita maquiagem, garotões tatuados e artificialmente bronzeados, porque afinal de contas é feio chegar branquelo na praia. Uma louca de saia jeans rasgada, camiseta preta e BOTAS COWBOY. Please. Na fila pro vôo pra Dortmund, um monte de turistas mal vestidos. Muitos policias rodando pelo aeroporto. As meninas sentadas ao nosso lado reclamavam que o vôo pra Ibiza estava atrasado em 4 horas. Crianças louras, inglesas e eslavas, faziam a maior bagunça, correndo ou desenhando com canetinhas coloridas. No banco em frente ao nosso, a Cenoura Celeste, uma ruiva alta e gorda vestida toda de um vaporoso tecido azul-céu. Mais à frente, a Família dos Japoneses Bizarros: a mulher imensa de gorda, com cara de suja e super mal vestida, todas coisas difíceis de ver no caso dos japoneses em geral; o marido macérrimo, de boné, com uma pequena mochila nas costas à qual estavam pendurados 5 chapéus daqueles que os japas adoram, uma caneca de metal e um rolo de fita adesiva transparente. O filho pequeno horroroso, coisa também estranha, porque filhotes de japoneses costumam ser foférrimos. Muitos italianos falando alto, alguns negros bem vestidos, muitos eslavos. Muita confusão.
O vôo saiu vinte minutos antes da hora. Descemos em Beauvais, que fica assim mais ou menos no fim do mundo. É nessas que a RyanAir te phode: a passagem pode até custar uma titica, mas com certeza você vai descer num aeroporto que fica lá no cu do Judas e vai morrer numa graninha de buzum até o centro. Não deu outra: € 10/cabeça pra ir ao centro em um ônibus caindo aos pedaços, apertado, entupido de gente, fedorento, dirigido por um negão educadíssimo que no entanto demonstrava uma certa relutância em pisar direito no acelerador e foi se arrastando até o ponto final, em Porte Maillot.
Deveria ser relativamente simples: pegar o metrô em Porte Maillot, mudar de linha duas vezes e chegar até o Albergue da Juventude de Cité des Sciences. Foi simples, jacaré? Claro que não. As máquinas automáticas de bilhetes estavam quebradas, e àquela hora não havia mais ninguém trabalhando na estação. Voltamos todos pra rua, eu, Mirco e mais um monte de mochileiros irritados e sem saber o que fazer. Passou um ônibus amarelo com um M imenso igual ao M da estação do metrô; subimos sem nem nos perguntarmos pra onde ia, deduzindo que, como a estação de metrô era impraticável, o ônibus nos levaria até a próxima estação. Ledo engano. Ia pro camping, totalmente nada a ver. O motorista foi bonzinho e na volta ao centro parou no meio da rua pra chamar um motorista de táxi que ele conhecia, e explicou aonde queríamos ir. Já era meia-noite e meia e meu pé latejava horrivelmente, pra não falar na incrível necessidade de tomar banho. Vocês acham que o motorista sabia onde tinha que ir? Nãaao, seria simples demais. A bosta do albergue fica lá no fim do mundo, fora do centro, num bairro super baixo-nível, e o motorista nunca tinha passado por lá. Conseguimos chegar mais ou menos perto do albergue, com a ajuda de muitos mapas e do sistema de localização satelitária do carro, mas as ruas nas quais deveríamos virar estavam fechadas pra obras. Levamos séculos pra chegar ao albergue, eu nem sabia mais onde estava de tanta dor no pé. Mas conseguimos nos ajeitar no único beliche livre dos três que ocupam o quarto 304, tomar banho no chuveiro completamente nonsense que só alguém que toma banho uma vez na vida e outra na morte é capaz de projetar, e fui dormir. Mirco ainda arranjou forças pra descer à cozinha pra fazer um sanduíche de atum (a gente sempre viaja com comida na mala). Eu, que sucumbo facilmente à gula mas não à fome, dormi de estômago vazio mesmo. No meio da noite caiu um temporal desgraçado. Alguém levantou pra fechar a janela e evitar uma inundação, mas não sei quem foi.
Muito obrigada a todo mundo que me escreveu desejando melhoras. Não vou responder um por um, pelo menos não agora. Também não vai ter cartão-postal pra ninguém, porque eu não tenho UM TOSTÃO FURADO pra gastar. Vamos almoçar na Arianna e zarpar pra Roma. Nosso vôo sai de Ciampino às sete da noite. Volto sábado que vem, com relatos e fotos, como sempre.
Ciao!
O vôo dos salames partia às dez e dez da manhã, por isso às seis e meia já estávamos na villa entupindo o microônibus de malas. Eu fui dirigindo a Ulysse e a mala do Leo dirigindo o Astra das babás, que não tavam a fim de pilotar.
A viagem foi super light. Pegamos uma estrada menos importante, com menos movimento, e caímos direto no aeroporto, sem passar pelo anel rodoviário de Roma, que é onde a muvuca acontece sempre. Mas e pra descarregar aquele povo todo e aquelas malas todas no aeroporto, já que não dá pra estacionar? Leo falou "larga o carro aí e vem me ajudar", e lá fui eu. Mas depois obviamente rolou um grande estresse com as duas guardas de trânsito que vieram me dizer que nunca tinham visto uma criatura tão cara-de-pau quanto o Leo, que tinha largado o carro quase no meio da rua e desaparecido no aeroporto, pra catar alguém que viesse pegar as malas dos Salames. Eu estava num estado de irritação ímpar, porque o coitado do Paolo teria que dar uma volta enorme pra retornar a Porto Ercole (ele tinha que ir a Volterra, totalmente fora de mão) e nos deixar na villa, onde pegaríamos a outra monovolume e a C3, pra levá-las ao aeroporto novamente e devolvê-las à Avis. Os Salames se despediram, me deram a minha gorjetinha básica que depois o enxerido do Leo quis saber de quanto foi e eu não disse, e foram embora. Mas ainda não dava pra me sentir aliviada, porque 1) ainda não tinha sido paga e 2) ainda não estava na minha casinha.
E aí recomeçaram os perrengues. Porque o filho da puta do Leo, que dormiu em casa todas as noites enquanto eu e Paolo dormíamos na casa de uma velha desconhecida, em vez de ir ao banco de manhã cedo pegar o dinheiro pra pagar o microônibus e a mim, veio de mãos abanando. Quando ele pediu ao Paolo pra ele dar um pulo em Orvietopra pegar o dinheiro, longe pra cacete, onde fica a agência de banco do Leo, o Paolo se irritou de verdade e começou a dizer um monte de desaforos – muito educadamente, porém, porque ele é um lord. Eu fiquei quieta mas tava doida de vontade de vociferar também. No final das contas o Leo ligou pro Renzo, o dono da companhia de ônibus, e concordaram de se encontrar em Orvieto. O que significava que eu teria que voltar a Porto Ercole com o coitado do Paolo, pegar aquela bosta da C3, voltar sozinha até Todi, deixar a C3 no estacionamento do centro commerciale onde eu tinha deixado o meu carro, deixar a chave no tabaccaio do centro commerciale, pegar o meu carro e voltar pra casa. E rezar pro Leo me pagar assim que fosse possível.
Voltei batendo papo com o Paolo e a viagem passou rápido. Despedimo-nos, ele foi embora pra Volterra e eu peguei a estrada que ele me explicou. Dei uma volta danada mas não tinha outro jeito. Passei por um monte de cidades estranhas, atravessei campos, sempre achando que tinha errado o caminho e depois vendo que não, quando a próxima placa pra Viterbo aparecia. Passei por Saturnia e Tuscania e deu uma vontade danada de parar pra ver os castelos, LINDOS. Mas fui indo.
Agora vem a parte boa.
Quando faltavam uns 30 quilômetros pra chegar a Todi, o carro começou a apitar. A anta do Leo não tinha abastecido o carro e o combustível tava no fim. Eu não tinha UM TOSTÃO, e mesmo se tivesse não queria gastar meu dinheiro botando gasolina praquele idiota. Mas o apito ficava cada vez mais insistente e eu tinha que parar em algum lugar. Entrei no primeiro posto de gasolina que vi. Diálogo:
- Encho o tanque?
- Não, deixa eu te explicar. Esse carro é de um filho da puta que encheu o meu saco durante 12 dias de trabalho e ainda não me pagou nem uma grana que ele me devia já antes desses 12 dias. Eu tenho que ir a Todi, onde ele mora, deixar esse carro e pegar o meu pra voltar pra casa, em Perugia. O negócio é o seguinte: eu quero chegar a Todi com MEIA GOTA de gasolina no tanque. Que é pra ele ligar o carro, andar dois metros e parar.
O cara me olhou meio descrente, mas fez uns cálculos de cabeça e sentenciou:
- Dois litros bastam.
Catei umas moedas no porta-níqueis, paguei os dois litros e fui embora pra Todi.
Só que eu não lembrava onde tinha largado o meu carro. Naquele primeiro dia, como eu tinha errado a estrada, acabamos dando umas voltas, e eu me confundi. Sabia que tinha deixado o carro no estacionamento de um centro commerciale, mas não sabia qual era, até porque não tinha nada escrito (se tivesse, eu com certeza lembraria). Rodei, rodei, o carro apitando loucamente de novo, parei num posto de gasolina pra pedir informações mas os caras não souberam me explicar direito, voltei a onde eu achava que era mas não era, e já estava quase chorando de ódio quando vi dois garotos entrando num carro, prontos pra sair do estacionamento. Pulei na frente do carro e expliquei a minha situação, e eles gentilmente se ofereceram pra me levar aonde eles achavam que era o tal centro commerciale. Deixei a C3 estacionada nesse lugar errado e fui com eles. Felizmente achamos o outro estacionamento, que era relativamente longe. Os meninos se ofereceram pra me levar de volta ao estacionamento errado, onde eu pegaria a C3 pra depois deixá-la no estacionamento certo, na vaga deixada pelo meu carro. Pensei bem e decidi que não, obrigada.
A essa altura era uma e meia da tarde e estava tudo fechado, por isso não tinha como deixar a chave da C3 com ninguém. Entrei no meu carro e vim embora.
Conclusão: deixei de presente pro Leo um carro de aluguel estacionado longe, sem uma gota de gasolina, e sem chave. Se eu tivesse programado tudo isso, não teria dado tão certo.
Vim rindo sozinha no carro de Todi até em casa.
**
Leo me pagou só dois dias depois. Não me deu nenhum adicional por ter dirigido todos aqueles quilômetros, coisa que não estava no acordo inicial. Três dias depois eu deixei a chave no bar aqui debaixo de casa e ele veio pegar – de carona com um amigo, porque o carro dele ainda estava na oficina. No dia seguinte me ligou pedindo pra eu falar no telefone com um cliente dele, um americano cujo carro de aluguel tinha morrido no meio da estrada, perto de Napoli. Ele me pagou por essas três ligações internacionais, do meu celular ao celular do americano? Não preciso nem responder.
O que ele não sabe é que eu venho mantendo contato regular com a garota da agência de turismo dos EUA, que organizou a viagem dos Salames. E já deixei bem claro que eu trabalho SOZINHA.
Às onze da manhã passamos na villa pra pegar a família. Leo chegou às onze e meia e fomos direto a uma praia chamada Lido di Giannella (Giannella é uma das duas restingas que ligam o Monte Argentario ao continente). É uma praia mais ou menos particular, teoricamente pertencente ao hotel de mesmo nome, mas o Leo deu um jeito e eles ficaram lá debaixo do guarda-sol e estirados nas espreguiçadeiras – tudo a pagamento, obviamente. Eu fiquei no ônibus lendo Andrea Camilleri enquanto o Paolo foi almoçar no restaurante em frente à praia. Foi ficando tarde e eu fui ao restaurante também, ver se os Salames já tinham acabado de comer e queriam ir embora, mas quem disse que alguém conseguia mandar as crianças pra casa depois do macarrão com manteiga nosso de cada dia? Tinham todos voltado pra areia depois do almoço, e eu acabei ficando por ali mesmo. E foi aí que conheci o Ulisse, dono do restaurante Da Ulisse (muito criativo. Strada Provinciale Giannella, km 3 – Albinia (GR). 0564.820214. Especialidade: frutos do mar grelhados). O cara é uma figuraça, cabelo tipo black power, camisa pólo amarelo-ovo, shorts brancos, ritmo lento, voz idem. Não sei de onde ele é, provavelmente de Roma, decididamente não toscano. Vi uns artigos de jornal emoldurados na parede e não consegui entender de onde eram, até que ele veio explicar: ele tem um restaurante em Cuba e outro em Brisbane, Austrália, que aparentemente faz muito sucesso. Ulisse adora viajar e vai ao Brasil todo ano. Praticamente me obrigou a provar o vino della casa, que ele mesmo produz, e é realmente ótimo. Ficou pau da vida porque eu não tinha almoçado, e não dava mais tempo porque os Salames já tavam saindo da areia. Mas deixou o cartão de visitas com a foto dele no fundo, em cinza, que infelizmente não vai dar pra ver direito se eu escanear, porque é uma comédia. Despedimo-nos e picamos a mula.
Deixamos os Salames na villa e fomos pra casa. Tomei banho e fiquei batendo papo com a senhora Teresa, que costura pra fora e consertou minha saia preta que tinha descosturado na lateral direita. Lá pras sete da noite eu e Paolo fomos de microônibus até a villa levá-los pra jantar fora. Leo queria levá-los ao chiquérrimo restaurante do Pellicano, mas falamos com o maître pelo telefone e ele se recusou terminantemente a aceitar crianças menores de 12 anos (o Leo tinha mentido pra ele antes, dizendo que todas as 7 crianças estavam na faixa dos 12. Na verdade só duas estavam.), a cozinhar peito de frango pra elas, e principalmente a fazer macarrão com manteiga pra eles. Aliás, quase desligou na minha cara quando eu falei, suspirando adequadamente, que as crianças estavam comendo macarrão com manteiga há 11 dias. Bom, então, Leo arranjou esse outro restaurante chamado La Sirena (ou A Sereia. Viale Caravaggio, 87/89. 0564.835032), de frente pra praia, e lá fomos nós. Eu fui num outro carro, porque era o aniversário de uma das Salaminhas e tinham comprado uma torta surpresa, que eu levei escondida até o restaurante e entreguei na cozinha, pra ser servida de sobremesa. Eu e Paolo, irritadíssimos com o Leo, comemos lá mesmo e botamos na conta dele. Menu: risoto de camarão com curry, rana pescatrice (é um peixe feio pra burro) no forno com batatas, um vinho branco de Avellino, cidade que fica perto de Napoli, e de sobremesa sorvete de nozes feito por eles mesmos. Tudo delicioso, impecável, o serviço ótimo; os proprietários, super simpáticos, vieram nos dizer que também têm um outro restaurante ali perto, especializado em carnes (La Locanda del Caravaggio – Via San Paolo della Croce, 6. Porto Ercole (GR). 0564.833078. Pertinho da colina dos javalis).
Felizes da vida com a barriga cheia, deixamos a família na villa e fomos dormir.
A região onde estamos se chama Maremma. Um dia já foi uma área pantanosa, praticamente inabitável, insalubre, cheia de mosquitos e com grande incidência de malária (lembram que eu escrevi antes que Caravaggio morreu em Porto Ercole, e provavelmente de malária?). A coisa só foi melhorar lá pra 1700 e bolinha, com a família Lorena da Áustria, que depois da morte de Gian Gastone Medici, em 1734, começou a ajeitar essa vasta região. A terra se revelou fértil e generosa, como certamente tinha sido um dia, na época dos etruscos (sempre eles).
Pitigliano fica em cima de um bloco de pedra chamada tuffo, um tipo de magma vulcânico. Vêem-se cavernas e túneis escavados no tuffo, pelos etruscos. Provavelmente eram usados como tumbas ou com outras finalidades funerárias, já que as únicas estruturas sólidas e duradouras deixadas por eles eram tumbas, urnas funerárias e coisas do gênero. Eles se preocupavam muito mais com a vida após a morte do que com a vida antes da morte, e por isso não há sequer uma casinha etrusca pro pessoal estudar. Provavelmente as casas eram construídas com materiais perecíveis como madeira, palha, etc. Hoje esses túneis e cavernas são usados como cantinas e despensas.
Um dos aspectos mais interessantes de Pitigliano é a sua mistura com a história dos judeus na Itália. Por um longo período, a comunidade judaica de Pitigliano foi bem importante. Em épocas de perseguição de judeus, a cidade serviu de refúgio pros perseguidos. A comunidade judaica chegou a representar 20% da população da cidade, em 1850 – um caso único na Itália. Depois da unificação italiana, em 1871, os judeus foram emancipados e, livres pra ir aonde quisessem, foram deixando a cidade, mudando-se pra outras áreas mais prósperas. Nos anos 30, na época da propaganda anti-semita, os judeus de Pitigliano sobreviveram muito bem, obrigada.
Hoje não há mais uma comunidade judaica em Pitigliano (vou falar disso mais adiante), mas a herança cultural permaneceu. A sinagoga foi restaurada, e a padaria kosher já pode ser visitada novamente. Também há um grande cemitério judeu.
A cidade de Pitigliano é famosa pelo vinho branco, o Bianco di Pitigliano, do qual comprei duas garrafas. Já abrimos uma e o vinho é realmente delicioso. Também fazem vinho kosher, que dizem que é uma porcaria mas o pessoal compra por curiosidade mesmo.
28 de junho
A partida da família estava prevista pras onze da manhã. Acordei cedo e fiquei enrolando, lendo, vendo TV, falando com o Mirco no telefone. Paolo ligou me chamando pra tomar café no bar; fui. Passamos nos correios pra enviar uns cartões-postais, demos umas voltas pra matar o tempo e finalmente fomos à villa pegar os Salames.
A estrada pra Pitigliano é cheia de curvas, e na última delas o Paolo parou pra gente tirar foto – e pra retomar o fôlego, porque a cidade é LINDA. Vista assim, de uma colina oposta, é de arregalar os olhos mesmo. Linda, e super diferente. Ficamos lá babando e fotografando e depois entramos na cidade. Já era hora do almoço e enfiamos os Salames numa pizzaria.
Os Salames queriam ir ao museu judaico, mas naquele dia estava fechado, sabe-se lá por quê. Leo conseguiu falar com a diretora e convencê-la a abri-lo por algumas horas, só pra nós. Enquanto ele ia lá buscar a velhinha, eu e os Salames fomos dar umas voltas.
Achei a cidade bem parecida com Perugia, cheia de becos, arcos, ladeiras. O mais estranho é olhar por cima das muralhas e perceber que você está plantado numa plataforma de pedra. Muito verde ao redor, uma cascata ao longe, linda paisagem, e um calor de matar. Voltamos à praça principal e as crianças foram tomar sorvete. Logo chega a mala do Leo com a velhinha curadora do museu, uma senhora judia de 350 anos e óculos fundo de garrafa. Entramos no bairro judaico e, passando por um arco, descemos até o tal museu, que nada mais é do que a parte funcional do bairro judaico – onde ficavam a padaria, a cantina, etc. Mas vamos com calma.
Ela foi explicando tudo com muita tranquilidade, falando sem parar, mal dando tempo pra eu traduzir pros Salames. Vimos a sala dos banhos rituais, praticados principalmente pelas mulheres menstruadas, antes do casamento, ou nos 45 dias depois de um parto. Segundo ela, tudo isso está escrito na Bíblia (abstenho-me de comentar). A água que sobrava dos banhos descia através de um buraco no chão e ia parar lá nos tanques onde se curtia couro. Também vimos o forno da padaria, fotos daquele pão furadinho judeu cujo nome eu esqueci e que tem cara de ser bom pra caramba, os tanques de tingimento de couro e tecidos, a cantina onde até hoje se armazenam barris de vinho kosher.
A velhinha falou que hoje só vivem mais 3 judeus em Pitigliano, além dela, mas como a sinagoga deles é uma das únicas 5 da Toscana, muitas festas religiosas são celebradas nela – aliás, no dia seguinte iria rolar um casamento básico.
A sinagoga já sofreu muito, coitada. É pequena mas charmosinha, e chega-se até ela através de um terraço onde, um dia, ficava uma biblioteca. Hoje não há mais teto e o terraço é a céu aberto mesmo. Um grande pedaço do teto da sinagoga caiu nos anos 60. Aparentemente o tuffo não é o tipo de terreno mais estável do mundo, e quando resolve se acomodar balança tudo o que está em cima, e foi numa dessas que o teto desabou. Hoje as pinturas no teto são claramente modernas demais, o azul das escritas é cafona, o dourado é excessivamente artificial. Ainda há uma parte do templo reservada pras mulheres, que em teoria não podem assistir aos rituais junto com os homens (não vou comentar, é melhor). Uma cortina numa das paredes cobre a mini-sala que guarda o livro sagrado deles. Bem no meio do templo, uma estrutura de madeira avermelhada, de onde são conduzidas as cerimônias. Tudo muito bem cuidado, limpo e sobretudo interessante. Pena que a velhinha tinha uma reunião na prefeitura e tinha que ir embora.
Poderíamos ter saído pelo portão da sinagoga, que dá pra rua, mas não queríamos que nenhum outro turista nos visse, já que em teoria não deveríamos estar ali. Por isso descemos tudo de novo e saímos por onde entramos. Os Salames nos despacharam, como sempre, e eu voltei pra onde tínhamos marcado com o Paolo de nos esperar. Leo se mandou pra Porto Ercole, pra procurar uma praia decente pra eles, que queriam um lugar de areia e não rochas, e sem topless. Como ainda estava cedo, entrei numa loja pra comprar um vinho e fiquei batendo papo com o proprietário, um grisalho bonitão e simpático que reclamou da falta de vocação pra self-marketing da Maremma, ao contrário do resto da Toscana. Logo depois que saí da loja os Salames voltaram do passeio e tocamos de volta a Porto Ercole.
A viagem não foi fácil. Paramos 3 vezes pra várias das crianças fazerem várias necessidades fisiológicas: duas vezes no mato, e uma num bar. Deixamos o pessoal em casa, Leo se mandou pra Todi e eu fui dormir.
O Monte Argentario (algo como Monte de Prata) provavelmente um dia já foi uma ilha, que acabou se ligando à costa tirrênica através das estranhas restingas de Feniglia e Giannella, formadas pelo acúmulo de detritos transportados pelos rios e pelas correntes marinhas. Hoje a região controlada pelo Comune di Monte Argentario inclui as cidadezinhas de Porto Santo Stefano, onde fica a sede principal, e Porto Ercole, que seria uma fração do Comune (assim com Cipresso, onde eu moro, é uma fraçao do Comune di Bastia Umbra).
Sobre Porto Ercole, a única coisa interessante que eu achei no site do Comune é que foi lá que morreu Caravaggio, provavelmente de malaria.
27 de junho
Acordamos cedo e tomamos café da manhã no quarto. Na noite anterior tínhamos visto um treco pendurado na maçaneta; era um pré-pedido de café da manhã, pra gente preencher. Bem cedo um funcionário passa pra recolher, anota os pedidos e no horário selecionado os rapazes te levam a comida. Lindo. Pedimos morangos, pão fresco, torradas, geléias, manteiga, chocolate quente, cereais. Não sobrou quase nada ;)
Fomos diretamente à villa e de lá levamos a mulher do Salame, Morena Simpática e sua filha e mais Salaminha 1 e Blonde Teenager pra passear. As babás ficaram com o resto das crianças e os machos da casa. Leo foi dirigindo a Ulysse e eu a Citroen C3 que ele alugou pra substituir sua Alfa batida. Aliás, que carro ruinzinho de dirigir! O pára-brisas é estranho, tem uma curvatura bizarra que distorce um pouco a visão; o motor dá pena, o carro não anda, o ar condicionado não condiciona nada. Mas tudo bem. Fomos até Porto Santo Stefano, pras meninas fazerem compras nas barraquinhas da feirinha do calçadão. Enquanto esperávamos por elas fui analisando a paisagem.
Eu achei uma bosta. Sabe Rio das Ostras entupida de farofeiros? Carros estacionados em tudo que é lugar, casas velhas e feias, casas velhas e feias que viraram pousadas improvisadas, lojas cafonas, a inevitável molambice que acompanha a vida na praia, trânsito absolutamente impossível, restaurantes com mesas na varanda, onde o pessoal que passa na rua vê você comendo (eu DETESTO esse tipo de restaurante). Gostei não. Um calor desgraçado, um sol que queimava a moleira, e as malucas passeando no calçadão comprando camisetinhas tye-die e colares de plástico.
Voltamos pra villa, e de lá o Leo foi encontrar o Massimo, administrador da villa de S. Gimignano, numa cidadezinha ali perto. Morena Simpática tinha esquecido um saquinho de jóias na outra villa, que a faxineira achou e deu pro Massimo. Eu aproveitei pra encontrar o Paolo, o novo motorista do novo microônibus, que tava esperando em frente à villa porque às 14:30 teríamos que passar lá pra levar o povo pra visitar uma das fortalezas espanholas da cidade e depois Cala Galera, uma marina famosa (eu adorei foi o nome, Cala Galera... Lindo!). Larguei a C3 na garagem da villa, botei minhas malas no ônibus e fomos até o centro da cidade, à casa onde iríamos dormir.
O lance era o seguinte: a senhora Teresa, viúva, mora num grande apartamento no centro de Porto Ercole com uma mãe solteira e seu filho adolescente, que pagam aluguel, e aluga os outros dois quartos do apartamento a turistas, no verão. O prédio cheira a mofo e o elevador é dos anos 50, daqueles que tem portas duplas que você tem que abrir e fechar manualmente. Então é assim, ó: eu e Paolo ficamos hospedados na casa de uma velha que não conhecíamos, num apartamento cheio de coisas velhas, santinhos e flores secas na parede, e dividindo um banheiro. Pelo menos o Paolo é super educado, a senhora Teresa é simpática e me deixou usar a geladeira dela. Nos quartos tem televisão e a cama é de casal, os travesseiros são confortáveis, não bate sol da tarde e por isso dormi fresquinha.
Descansamos até a hora de sair, e às 14:30 lá estávamos nós na villa. Só que ninguém queria sair da piscina, e mandaram a gente voltar às 17:30, pra dar uma volta em Porto Ercole (dispensaram as fortalezas e Cala Galera porque tava quente demais). Voltamos pra casa da senhora Teresa. Vi Charmed, dormi um pouquinho, comi um sanduíche e voltamos pra villa. Dessa vez todo mundo tava prontinho pra sair, e fomos pro centro. Paolo estacionou lá nos cafundós do Judas e Leo veio nos encontrar. Quis dar umas voltas antes de ir pegar o pessoal, e fomos a Cala Galera, que não tem nada de mais, é só uma marina chique. Depois paramos no centro. Ele foi comer pizza num lugar chamado El Merendero (Viale Caravaggio, 61 – 329.5656786 – é um número de celular). Deixei-o lá comendo de boca aberta e subi a pé até a parte antiga da cidade.
Não tem nada de particular, só meia dúzia de casas em vielas apertadas e uma praça bobinha, mas uma vista estupenda.
Vi uma escadaria e fui subindo, até dar de cara com umas velhinhas sentadas em cadeiras, do lado de fora de uma casa. Perguntei onde terminava a escadaria, e elas disseram que ia até uma das fortalezas, e que era uma bela subida mas a vista compensava. Respirei fundo e continuei subindo, ora degraus, ora ladeira, ora trilha no meio do mato. De vez em quando via um pedaço de mar azul entre as plantas espinhudas, que arranharam meus braços várias vezes durante o percurso. E no fim da trilha eu vi...
...eu vi uma menina que estava sentada na pedra, tirando as sobrancelhas. Com ela, uma dálmata e um vira-lata chato, Aldo, que pentelhava a dálmata sem parar. A vista era de tirar o pouco fôlego que tinha sobrado depois da subida pesada. A outra fortaleza na colina oposta, os barcos lá embaixo no cais, a avenida à beira-mar, os Salames tomando sorvete sentados em bancos na avenida, o microônibus azul do Paolo manobrando lá longe... E ao meu lado a menina que tirava a sobrancelha. Achei surreal demais e resolvi ir embora. No caminho parei pra conversar com as velhinhas sentadas fora de casa, que contaram que na cidade velha, no inverno, só ficam 30 habitantes. O resto da população é formado por romanos que têm casa de veraneio lá e só aparecem 3 meses por ano.
Desci novamente à cidade nova e Leo me deixou em casa. Tomei banho, vi um pouco de televisão e às nove fui a pé até o calçadão, pra encontrar os Salames que saíam do restaurante onde o Leo os tinha levado pra jantar. Dizem que comeram muito bem, mas como os donos são antipáticos não vou dar o endereço. Eles ainda foram tomar sorvete, depois levamos todo mundo pra casa de ônibus enquanto o Leo se mandou de novo, e fui fazer companhia ao Paolo, que tava com fome e queria uma pizza. Fomos parar no Merendero de novo. O Massimo, dono do lugar, é bonitão e super simpático. Diz o Paolo que a pizza é ótima. Não sei, não comi nada.
Quando voltamos e fomos estacionar o ônibus num terreno baldio no fim da rua, damos de cara com um bando de javalis que passeavam entre os carros estacionados ao pé da colina! Levei um susto danado, era a última coisa que eu esperava encontrar ali, a dois metros do centro nervoso de Porto Ercole. Depois descobrimos que o padeiro todo dia passava ali à mesma hora pra dar restos de pão e cascas de frutas pros javalis, que, não sendo bobos nem nada, todo santo dia descem pontualmente do bosque na colina pra jantar.
Esse dia surreal me cansou. Voltei pra casa e chapei.
Acordei cedo, fiz as malas, tirei os lençóis da cama, e tava quietinha lendo quando toca o celular do Leo. Era a Ruivona, mas como ele, além de não entender nada de Inglês, ainda tava dormindo, não entendeu o que ela queria e achou que era urgente. Veio me chamar e saímos completamente esbaforidos. Quando eu reclamei que não tinha dado tempo nem de escovar os dentes (na verdade foi um verdão que eu joguei, porque ele não escovou os dentes NENHUMA vez durante a viagem inteira), ele começou a discutir dizendo que eu era chata, que tinha complexo de... Não terminou a frase, porque batemos num carro que vinha vindo da direção de S. Gimignano. Ele tinha olhado pra direita e não vinha ninguém, mas esqueceu de olhar pra esquerda e saiu meio desembestado. Sorte que a mulher, que entrou em pânico e começou a chorar e tremer, vinha devagar, até porque a estrada é cheia de curvas e não dá pra ir a mais de 50 km/h. Eu bati o joelho no painel, mas ficou só meio vermelho. As topadas que eu dou por aí doem muito mais. Atrás da mulher vinha um furgão da polícia penitenciária (tem um presídio enorme em S. Gimignano); o policial parou pra ajudar e acabou que era um amigo da mulher, ligou pro marido pra contar o acontecido e coisa e tal.
E aqui vou ser muito honesta: ao contrário do Leo, eu vi a mulher vindo da esquerda. Eu vi que íamos bater, vi que não seria nada sério porque ela vinha muuuuito devagar. Teria dado tempo de avisar ao Leo pra pisar no freio. Mas eu não avisei, voluntariamente. Achei que ele merecia essa. E não me arrependo.
Um carro que veio depois e tinha que subir pra Racciano parou ali, porque o carro do Leo tava bloqueando a estrada. Pedi uma carona e fui com ele até a villa ver o que a Ruivona queria. No final das contas nem tinha sido a Ruivona, mas a Filipinona, que tinha mandado uma calça branca da Banana Republic pra lavar a seco no hotel e a calça veio encardida. Peguei a Ulysse e fui até o hotel ver o que tinha acontecido. A menina da recepção, com quem eu já tinha batido papo outras vezes quando fui encontrar as meninas lá, explicou que o tecido era misto, com três tipos de fibras, entre sintéticas e naturais, e tecidos assim devem ser lavados à mão, e não a seco, como estava escrito na etiqueta, senão absorvem os produtos químicos e acabam manchando. Ela já tinha trabalhado em lavanderia e disse que já tinha visto acontecer a mesma coisa antes. No final das contas não teve jeito: não quiseram dar o dinheiro da garota de volta nem a pau. Também nem me esforcei muito porque não dava tempo; tinha que voltar logo pra villa pra ajudar a botar as malas no ônibus e nos carros, pra ir a Porto Ercole. Ainda passei em Racciano pra pegar as minhas malas. Leo já tava indo pra villa com Michele, que tinha ficado de passar lá pra me pegar.
Todo mundo e todas as malas no ônibus, lá fomos nós pra costa da Maremma, o pedaço da Toscana onde fica Porto Ercole. Fui dirigindo a Ulysse, Leo dirigindo a minivan Ford, e as babás dirigindo o Astra delas. Paramos pra almoçar numa trattoria de beira de estrada. As meninas me convidaram pra almoçar na mesa delas no terraço; aceitei, enquanto o Leo e o Michele almoçaram dentro do restaurante. Comi spaghetti com mariscos mas não tava lá essas coisas. As crianças comeram, pra variar, macarrão com manteiga, pra tristeza do garçom e do proprietário. Lá pelas 4 da tarde chegamos a Porto Ercole. Largamos as coisas na casa, que é maravilhosa e tem vista pro famoso Isolotto (abaixo), mas tem uma decoração moderna que eu detesto, e fomos inspecionar a praia.
Aqui, uma nova mentira: tinham dito que havia uma praia particular pros Salames, mas a praia mais próxima ficava a dez minutos de caminhada obrigatória, e de particular não tinha nada. Além disso era minúscula, de pedras e não de areia, e cheia de mulher fazendo topless. Os Salames não gostaram e ficamos de achar outra praia pra eles mais tarde. Leo voltou pra casa dele pra levar o carro pro mecânico e me deixou com as babás, sem lugar pra dormir. As babás ficaram num resort ma-ra-vi-lho-so, Il Pellicano, e cismaram que eu tinha que jantar no restaurante do hotel com elas e depois me levariam ao centro da cidade, onde o Leo finalmente arrumou um quarto pra mim, na casa de uma senhora que aluga quartos pra turistas. Eu tava irritada e não tava com a menor fome, mas o maître encheu tanto o saco que acabei jantando com elas. O lugar é chiquérrimo, janta-se de frente pro mar azul, os mosquitos jantam você, a comida é carérrima, e nós três todas molambas e suadas destoando completamente do resto dos comensais, mas foda-se. O menu:
Não pedimos antipasto, mas eles trouxeram um mini-antipasto assim mesmo. Tratava-se de um creme de cenoura delicioso no fundo de um prato lindo, com uma bolinha minúscula de ricota com pistache por cima. Delicadíssimo e gostosíssimo. Pãezinhos quentes, recém-assados, com azeite siciliano que vinha num mini-bule de porcelana branca.
De primo eu e a Filipinona pedimos tagliolini (tipo talharim) feitos à mão com molho de lagosta. A massa veio enroladinha em forma de ninho, pousado sobre um creme de ervilhas deeeeeeeeelicioooooooooooso. Pousado no prato, um enfeite de nero di seppia (a tinta preta das lulas), uma delícia. Ruivona foi de tagliolini com molho de lentilhas e tomilho, que tavam com uma cara ótima também.
De secondo fui de sogliola (solha, um peixe), um pedaço infelizmente minúsculo, grelhada com ervas numa caminha de batatas assadas cortadas em cubinhos minúsculos. As babás foram, claro, de frango. Que obsessão essa dos americanos com frango, putz! Mas o golpe mais doloroso pro maître, que era viado afetado, foi a Coca-cola que elas pediram. Lagosta com Coca-cola!!! O homem quase chorou de tristeza. Eu fui mais educada e pedi um copo de vinho branco do Friuli, divino.
Resolvemos pedir a sobremesa. Eu e Filipinona pedimos uma chamada Cioccolato, cuja foto vocês podem ver abaixo (aquela é obviamente a Ruivona, comendo sua sobremesa de abacaxi caramelado). O Cioccolato era um cilindro de chocolate amargo com sementes de gergelim, e dentro um creme quente de chocolate. No outro canto do prato, uma colherada de mousse de chocolate. E uma espiral de chocolate meio-amargo no meio do prato, pra enfeitar (e pra comer também, que eu não desperdiço nada quando se trata de cacau).
Mas antes da sobremesa veio a pré-sobremesa: uma bolinha de mousse de côco num canto, uma colherada de sorvete de maracujá com abacaxi no outro, sobre uma caminha de côco caramelado. Um fio de caramelo ligando as duas coisas.
E depois teve a pós-sobremesa: mini-pães de especiarias, minimicrotortas de limão com uma amora em cima, mini-enroladinhos de canela. Nem sei quanto custou essa brincadeira toda; quem pagou foi a Filipinona, com o cartão de crédito do Salame.
A essa altura elas não queriam que eu fosse embora. Fomos à recepção pedir pra botar outra cama no quarto delas, mas o cara falou que já tava tarde e não dava mais. Resolvemos que eu ia dormir lá assim mesmo, nem que fosse escondida, mas antes queriam ir nadar na piscina. Eu não tinha trazido roupa de banho, até porque não tenho, mas a Filipinona me emprestou shorts e uma camisetinha de lycra e lá fomos nós nadar na piscina térmica de água do mar. Ficamos nadando sob as estrelas e batendo papo até meia-noite. Foi uma das coisas mais legais que já me aconteceram na vida, de verdade. Fazia mais ou menos três anos que eu não nadava. Eu adoro piscina, mas não gosto da idéia de ter que ir a uma piscina pública pra nadar, que é o único jeito aqui onde eu moro. Essa piscina do hotel era linda, a água tava morninha apesar do ar frio fora, tava tudo escuro em volta mas escutávamos a música do pianista do restaurante, e as meninas são muito legais e divertidas (além de terem me contado várias fofocas úteis, que guardei pra mim). Só fomos embora porque começou a esfriar. Subimos, enroladas em roupões, tomamos banho, improvisei uma cama com as almofadas das poltronas, ligamos o ar condicionado e fomos dormir.
Não sei nada sobre Castellina in Chianti. Foi uma escolha de última hora e não tive tempo de pesquisar. Também não estou com vontade de traduzir o texto do site do Comune, porque é super mal escrito. Quem tiver curiosidade, que vá lá dar uma zoiada.
25 de junho
Acordei cedo e fiquei enrolando na cama, lendo. A mala do Leo bateu na minha porta pra me acordar, apesar deu já ter dito a ele mil vezes que acordo cedo todo dia e não preciso dele como despertador. Troquei de roupa e quando fui à cozinha tomar café dei de cara com ele na janela, de toalha enrolada na cintura, aquela psoríase toda nas costas, nos braços, nas pernas, socorroooooooooooooooooooooo! Sabe AAAAA visão do inferno? Então. Saí correndo pra tomar banho e quando voltei pra finalmente tomar café ele felizmente já estava vestido. Decidi não dar nenhum ataque de pelanca pra não piorar as coisas, mas só pelo susto (e pela falta de respeito total e absoluta) da toalha e da psoríase ele merecia uma panelada na cabeça. Mas tudo bem, tudo bem. O que não se faz por um punhado de euros...
Fomos pro internet point catar uma cantina pros Salames visitarem, depois sentamos nos banquinhos no piazzale logo em frente, enquanto o Leo telefonava tentando marcar uma visita à maldita cantina. Encontramos duas velhas birutérrimas, uma italiana que mora na Inglaterra e uma alemã que já morou lá também mas voltou a viver em Berlim (que ela odeia, diga-se de passagem, hohoho). Falavam sem parar, contando velhas histórias de viagem, mostrando fotos antigas, dando conselhos ("você tem muita cara de árabe, minha filha, assim fica difícil não ser discriminada aqui na Europa"), tirando fotos. Deram uma canseira danada na gente, mas conseguimos escapar depois que o Leo conseguiu convencer uma cantina que ele dizia que era chiquérrima a receber os Salames assim, em cima da hora.
Fomos pra villa meio-dia e de lá pra Volpaia, cidadezinha no Chianti onde fica a tal cantina supostamente famosa, Castello di Volpaia. No final das contas não era nem famosa nem chiquérrima, mas enfim. A menina que explicou o tour era da Calabria e falava um Inglês tão sofrível que eu tinha que retraduzir tudo o que ela dizia. Explicou que toda a cidadezinha de Volpaia pertence à família dona da cantina, que a comprou há algumas gerações. Vimos os pequenos armazéns de vinho e de azeite, ouvimos as explicações sobre a colheita, os tipos de vinho e de azeitona, etcétera e tal, e finalmente começamos a degustação. Até as crianças provaram o vinho, que era realmente muito bom. A calabresa era muito simpática e tinha preparado uma mesa linda, com pão tostado, molhinho de tomate com orégano, pecorino em pedacinhos, pra acompanhar os vinhos. Saí meio zonza porque pra variar estava de estômago vazio, mas contente por ter provado vinhos ótimos que eu nunca teria dinheiro pra comprar.
E dali fomos a Castellina in Chianti. Há várias outras cidades lindas por ali; passamos pelo delicioso centro de Radda in Chianti e vimos placas pra Panzano, onde trabalha a irmã do Mirco no verão. Mas eles cismaram com Castellina, fazer o quê. A cidade é uma gracinha mas fizemos um tour a jato porque as crianças já tavam de saco cheio de ver fortalezas, castelos e coisas velhas. Paramos numa loja de artesanato em papel e madeira e comprei um novo diário, lindo, de capa de couro e folhas cor creme, feito à mão. Não havia nem uma sorveteria decente na cidade, e resolvemos voltar. Um cervo atravessou a estrada na nossa frente, as crianças ficaram doidas!
Os Salames estavam com fome e paramos no Sovestro de novo pra jantar. Sentei à mesa com Michele e Leo, que dividiram um prato de tripa. Eu fiquei só olhando; além de estar sem fome a visão daquela tripa me dava engulhos. Acabei me irritando de novo com o Leo, simplesmente porque eu não gosto de pegar sol e ele acha que não pegar sol, como eu faço (palavras dele), faz mal. Ainda teve a cara-de-pau de dizer que eu sou pálida como um cadáver. Sua mula, eu respondi, aqui na Itália todo mundo acha que eu sou crioula e pergunta de onde veio o meu bronzeado, e você vem dizer que eu sou pálida só pra justificar uma maluquice da tua cabeça? Se liga! Eu não gosto de sol e não fico bem bronzeada, dá licença deu não gostar de sol e achar que não fico bem bronzeada? Fora que é impossível ter uma vida normal e conseguir, ao mesmo tempo, se esconder tanto do sol a ponto de ficar doente, como ele diz. Só de ficar esperando na fila da Rita verdureira na praça eu já metabolizo toda a vitamina D da qual preciso, tá um calor do cacete, o sol brilha inclemente. Putz, que cara chato! Ainda me chamou de cafone, que seria algo como tosca, mal educada, brega, grossa. Nesse ponto não resisti e dei uma risada ENORME. Ele saiu pra fumar, irritadíssimo, e eu comentei com o Michele que pra mim cafone é quem tem psoríase, caspa, mau hálito, junta saliva no canto da boca quando fala, come de boca aberta, fala berrando, mente pros clientes, usa a mesma camisa horrorosa três dias seguidos no verão, passeia de toalha na cintura na frente de uma mulher comprometida com a qual ele não tem a menor intimidade, atrasa pagamentos, faz piadas idiotas, fuma sem pedir licença. Tudo ao mesmo tempo. Michele engasgou de tanto rir.
E assim acabou meu dia.
Background histórico
San Gimignano fica no alto de uma colina (334 metros), a 56 km ao sul de Florença e a uma hora de Siena, dominando o vale do rio Elsa com suas torres. O nome da cidade vem do Bispo de Modena, San Gimignano, que, dizem, salvou a vila das hordas bárbaras. Já foi uma pequena vila etrusca (200 – 300 a.C.), mas sua vida como cidade propriamente dita começou mesmo no século XX, quando o Bispo de Volterra deu autorização para abrir um mercado semanal. A cidade enriqueceu e se desenvolveu bastante durante a Idade Média graças à via Francigena, uma rota de peregrinação e comércio que passava exatamente ali e ligava a principal estrada entre Roma e os Alpes e a estrada que ligava o coração da Toscana à república marítima de Pisa e à costa oeste do que hoje é a Itália. Sinais dessa prosperidade são as igrejas e monastérios ricamente adornados. No ano de 998 os habitantes começaram a construir os primeiros muros. A proteção oferecida pelos muros começou a atrair tanto camponeses quanto a nobreza feudal, e a cidade foi ficando mais importante, apesar das lutas de poder entre o Bispo de Volterra, que representava o poder da Igreja, contra a nobreza feudal e mais tarde contra o Conselho Municipal, que obviamente eram contra o bedelho da Igreja na política e na economia e apoiavam o Sacro Imperador Romano. Devido a lutas internas pelo poder, a cidade acabou dividindo-se em duas facções, uma liderada pela família Ardinghelli (Guelfos) e outra pela família Salvucci (Ghibellinos). No final das contas o Bispo levou a melhor. Em 1199 San Gimignano tornou-se um município livre, mas teve que jurar lealdade ao tal bispo, tendo que lugar contra os Bispos de Volterra e das cidades em torno. Dois anos depois, foi construído o segundo anel de muros. O tal bispo era um ótimo administrador, oferecendo incentivos a quem construia suas casas e lojas na parte de dentro da cidade murada. Claro que, quanto mais segura (leia-se murada) uma cidade, mais as pessoas se interessavam em ir viver e trabalhar lá, e os mercadores logo logo aproveitaram, também porque San Gimignano era o maior produtor italiano de açafrão, planta que cresce às margens do rio Elsa. Exportavam até para a Holanda.
Mas o século XIII não foi nada pacífico e San Gimignano mudou de mão algumas vezes (em 1250 os Florentinos destruíram as muralhas para que a cidade atraísse menos os Pisanos. Os Seneses as reconstruíram em 1261), mas isso não impediu a construção das torres das famílias patrícias, que controlavam a cidade. A construção das torres já havia começado desde o século XI. Um decreto dizia que ninguém tinha autorização para construir uma torre mais alta do que a torre do Comune, e por isso as famílias mais ricas decidiram partir pra quantidade, contruindo torres gêmeas. Já foram 72 as casas-torres, de até 50 metros de altura. Hoje são só 14. A arquitetura da cidade monstra influências misturadas dos estilos de Pisa, Siena e Florença, até porque uma lei determinava a altura e a largura máximas de casas e lojas, e pra se diferenciar dos vizinhos, já que as medidas eram as mesmas, o pessoal começou a botar a mão na massa em termos de criatividade.
Em maio de 1300 Dante Alighieri visitou San Gimignano como Embaixador da Liga Guelfa na Toscana (Dante era danado, adoro ele). Em 1348 rolou aquela peste negra braba na Europa e a população de S. Gimignano também foi reduzida drasticamente, em cerca 75% - sobraram umas 7000 pessoas, o mesmo número de habitantes de hoje. A cidade entrou em crise e em 1353 teve que se submeter à poderosa Florença.
Quando começou o salto econômico que transformou a Itália em uma das maiores potências econômicas mundiais, as estradas da Via Francigena que passavam por ali perderam importância para outras estradas que passavam por outros vales, e San Gimignano ficou, felizmente, isolada dos grandes centros industriais que pululavam ao longo das ferrovias, láaaaa embaixo. Hoje há gente tentando reviver os grandes tempos do açafrão, mas o produto mais famoso de S. Gimignano é a vernaccia, um vinho branco (que eu infelizmente não consegui provar) que dizem que é maravilhoso, e lendas contam que suas uvas foram introduzidas pelos etruscos. Pela sua importância histórica, foi o primeiro vinho italiano a ganhar o selo DOC (denominazione di origine controllata, um selo de qualidade).
24 de junho
Mirco saiu cedo, às 6:30. Eu fiquei meio lendo, meio dormindo, reacordando, até umas nove da manhã. Fui a pé até a cidade, que a gente mal tinha visto no primeiro dia, eu e as babás. Entrei pelo piazzale dei Martiri di Montemaggio, que está em obras. Ali fica a porta principal, a Porta San Giovanni, construída pelos seneses em 1261.
Segui pela Via San Giovanni, onde almoçamos no primeiro dia, passei pelo Arco dei Becci e fui cair na Piazza della Cisterna (a foto tá lá no segundo dia da viagem). Fiquei lá bundeando, depois fui dar uma olhada na fortaleza, que no verão vira teatro a céu aberto. A vista lá de cima é estupenda; as torres mais altas ficam ali pertinho, mas paga-se pra entrar.
Eu queria subir na Torre Grossa (grosso em italiano quer dizer grande, em todas as dimensões, e não só grosso em termos de espessura ou diâmetro) mas tive um ataque de pão-durismo e resolvi deixar pra outra vez. Pelo mesmo motivo não entrei no Duomo. Tem cabimento igreja cobrar pra entrar? Pode ter as obras de arte mais lindas do mundo, mas um templo é um templo, pombas! Fiquei tão irritada quando vi que tinha que pagar o ingresso que fui bater perna, entrar em lojas, visitar oficinas de artesanato, comprar cartão-postal.
Dali a pouco a mala do Leo ligou, dizendo que já tinha chegado. Fui encontrá-lo na porta principal, depois voltamos à Piazza della Cisterna, onde tava rolando o mercado semanal. Leo comprou galinha-d’angola (faraona) assada e pimentões grelhados pra levar pra casa, e fomos procurar um internet café. Fizemos o que tinha que fazer e ele foi embora. A essa altura já eram umas 3 da tarde e eu fui almoçar sorvete de maracujá na piazza del Duomo, embaixo de uns arcos, na sombra. Fiquei batendo papo com uns padovanos que estavam ali tomando sorvete, depois ataquei High Fidelity (Nick Hornby, uma das coisas mais legais que eu já li na minha vida) e de repente começou um burburinho ali na praça. Era dia de casamento e um noivo muito nervoso, DE GRAVATA IMPERDOAVELMENTE COR-DE-ROSA, passeava pra lá e pra cá, tirava fotos, era cumprimentado pelos amigos. Um casal recém-casado saiu da igreja; a noiva era uma morena bonita com um vestido super simples, o noivo também era bonitão. Até que chegou a noiva do cara da gravata rosa. Chegou num carro antigo, como vocês podem ver, e o vestido dela dava até medo de tão feio: meio saia, meio calça transparente, blusa transparente cheia de botões e com um colarinho imenso, uma coisa horrorosa. Como o cara também não era lá essas coisas, ficou tudo ótimo.
Uma menina pequenininha mas com cara de esperta, no colo do pai, ao meu lado, repetia "eu quero ver a noiva!", enquanto a mãe explicava que aquela ali de branco era a noiva – claro que a garota não entendia, só repetia o que os outros diziam em torno dela. Achei tão engraçado que puxei papo. Quantos anos você tem? Ela estendeu três dedinhos e me disse, toda séria: mas a Ilaria tem 8. A mãe explicou que Ilaria era uma prima dela. A família era de Genova, muito simpática, e depois de tirar umas fotos dos noivos, foram embora continuar o tour.
Mais tarde o Leo ligou de novo, estava na cidade. A Mulher do Salame tinha pedido pra ele vir buscar as mil sacolas de compras, e eu fui com ele deixá-las na villa. Depois fomos levar os adultos a um restaurante no centro e ficamos esperando na pizzaria do Francesco. Levamos os Salames pra casa e fomos dormir.
Todo mundo conhece Florença, então não vou ficar enchendo o saco de vocês com fatos históricos. Eu também conheço Florença, e adoro, mas o dia foi corrido e não deu tempo de rodar.
Basicamente Leo partiu cedo pra lá, pra comprar os ingressos pro Palazzo Ufizzi (onde fica a Vênus de Botticelli) senão os Salames teriam que pegar fila, e Salame milionário não pega fila, jamé. Michele veio me pegar de ônibus no pé da ladeira que leva a Racciano, onde fica a nossa casinha, e fomos pra villa. As crianças vieram reclamando de sono, que algum alarme disparou durante a noite e não deixou ninguém dormir. Liguei pro Massimo e ele garantiu que a casa não tinha NENHUM alarme. Falei pra ele ir lá do mesmo jeito dar uma olhada, aproveitar que o Salame ficou em casa com o Salaminho mais novo e perguntar de onde vinha o barulho. Mais tarde ficamos sabendo que não era, obviamente, alarme nenhum, mas um walkie-talkie da Salaminha mais velha que tinha ficado esquecido numa mochila, a bateria descarregou e por isso ficava apitando. Agora eu pergunto: onze pessoas numa casa, um apito que não deixa ninguém dormir e NINGUÉM teve a brilhante idéia de ir procurar e eliminar a fonte do barulho, em vez de sair reclamando de um alarme que ninguém viu, porque não existe?
Mas enfim. A viagem a Florença foi tranquila; pegamos um pouco de engarrafamento mas nada comparado à hora do rush em Roma ou Milão. Leo nos encontrou no checkpoint dos ônibus (em algumas cidades italianas agora é assim, os ônibus têm que pagar pra entrar, e custa caro pra cacete) e dali Michele nos deixou num ponto qualquer de um Lungarno, de onde fomos a pé até o centro. Já expliquei aqui mas reexplico: as avenidas que correm ao longo de um rio ganham o nome Lungo(nomedorio) + o nome da rua. Como em Roma, onde há várias avenidas chamadas Lungotevere Fulano de Tal, Lungotevere Cicrano da Silva. Em Florença são Lungarno, já que o rio que corta a cidade é o Arno, lindo.
Então. Botamos os Salames dentro do Uffizi e fomos procurar lugar pra estacionar. Como NCC é bom mas não é infalível, e Florença não é muito grande e por isso não tem muito lugar pra estacionar, Leo achou melhor ficar no carro enquanto eu ia almoçar. Comi num self-service horrível perto do Ponte Vecchio, uma porção minúscula de cappelletti industrializados com presunto e ervilhas, ao preço mata-turista de 7 euros! Um primo de qualidade, aqui na Umbria e mesmo na Toscana, fora dos grandes centros turísticos, não passa de 6,50, 7 euros, isso se tiver um tartufo ou cogumelo porcino no meio (são ingredientes caros). Fiquei passada, mas como não tava com fome e só comi pra não desmaiar na rua, não reclamei.
Terminado o passeio no museu, levamos os Salames pra almoçar na Buca dell’Orafo, restaurante tradicional sempre ali na zona de Ponte Vecchio. Eu fiquei esperando, sentada num murinho ali do lado, lendo Lullaby (que é ótimo, por sinal). Dali eles foram fazer compras na rua chique de Florença, onde ficam as lojas de griffes famosas. Eu e Leo ficamos rodando de carro, pra não perdê-los de vista, quando de repente toca o meu celular. Era a Giuseppina, a cozinheira, perguntando se os Salames realmente tinham cancelado o jantar de sexta-feira à noite (eles decidiram ir jantar fora pra não ter que arrumar nada na cozinha depois). Respondi que sim, e ela aproveitou pra perguntar se eu sabia o que ela tinha que fazer pra pegar a grana dela. Perguntei ao Leo, do meu lado, e ele disse que era pra ligar pro Massimo, que entraria em contato com a agência em Londres, já que nos não tínhamos nada a ver com a história. Dois minutos depois me ligam de Londres. Levei um susto, porque eles mal sabem que eu existo, o Leo não é bobo e jamais deu nenhum telefone ou email meu pra eles, e eu, eticamente, nunca entrei em contato também. O cara, muito simpático e falando italiano muito bem, perguntou o porquê do cancelamento, que tipo de gente era, se a Giuseppina podia falar desse assunto grana com eles e coisa e tal. Lógico que ele ligou pra mim e não pro Leo; se sou eu que falo Inglês e converso com eles, pra quem mais ele vai ligar? Leo desconfiou e perguntou quem era. Quando eu falei ele arrancou o telefone da minha mão, desconversou e desligou – e ai começou o escarcéu. Ficou puto porque:
1. Eu dei confiança pra Giuseppina, coisa que não deveria ter feito, segundo ele, porque ela não tem classe, tem cabelo no sovaco e um filho rastafari (mas pelo menos não come de boca aberta que nem você, nem tem tanta psoríase que o chão do carro fica coberto de pele morta, pensei). Dei tanta confiança (isso porque nos nos vimos só 2 vezes!) que ela teve o topete de dar meu número de celular pra terceiros! E daí, retruquei. O numero é meu, eu dou a quem quiser, ela não deu o meu número a um cafetão ou traficante de drogas ou chefe da máfia, simplesmente a uma agência que PEDIU o número porque precisava de informações que só eu sabia dar. Qual é o problema?
2. Eu reclamo quando ele enche o meu saco com aquelas famosas piadas idiotas. Mandei-o tomar no cu, com todas as letras, e comecei a berrar também. As pessoas na rua passaram a nos olhar, dois loucos se esgoelando dentro do carro.
3. Eu não fui profissional ao fazer amizade logo de cara com a Giuseppina. Respondi que realmente eu não sou profissional, já que esse é o primeiro trabalho desse tipo que eu faço, e ele sabia disso. E que eu faço amizade com quem eu quiser, não tenho culpa de ser simpática, extrovertida e maravilhosamente interessante.
4. Eu não tinha nada que me meter no assunto pagamento da cozinheira, porque não é da nossa alçada. Respondi que eu não me meti em assunto nenhum, e se ele era surdo e não me ouviu dizendo à Giuseppina pra ligar pro Massimo, coisa que ele mesmo mandou fazer, o problema era dele.
E foi aí que ele se traiu, soltando um "Mas agora a agência tem o seu telefone!" exasperado. Aaaaaaaaaaaaaahn, eu fiz, então é esse o problema, Catatau... Pois é, agora que eles têm meu telefone vou excrusive mandar meu currículo, que mal tem. Não tenho contrato de exclusividade nem com você nem com ninguém, tô cagando pro seu conceito de ética, encheu demais o meu saco, chega!
Felizmente avistamos os Salames, que tinham acabado as compras e queriam ir ao museu da Accademia ver o Davi. Lá pras sete eles saíram, entramos no ônibus e fomos embora. O meu estado de irritação era tão grande que eu não conseguia nem falar, só rosnava. Pra piorar, a mala do Leo tinha me ligado tantas mil vezes durante o dia, pra repetir as mesmas coisas e se certificar de que os dois boçais, eu e Michele, não tínhamos feito nenhuma cagada, que a bateria do celular acabou toda, mesmo tendo ficado toda a noite anterior carregando. O Mirco tava vindo jantar comigo em San Gimignano, mas, lemming como eu, já tinha dado mil voltas e não sabia como chegar – e não conseguia falar comigo porque o celular tava mortinho. Acabei botando o lanterneiro pra falar com o Michele no telefone dele, tadinho, e nos encontramos no restaurante Da Pode, no Hotel Sovestro (località Sovestro, 63 – San Gimignano. Tel. 0577.943089), onde os Salames já tinham jantado uma vez, e adorado o frango deles. Jantamos juntos, nós três (o Leo felizmente fugiu pra Todi outra vez), e botamos tudo na conta do Leo. Michele foi levar o povo embora e eu e Mirco fomos pra casa. Uma lebre e seu filhotinho atravessaram a estrada na nossa frente, na ladeira pra Racciano. Tirei foto, mas ficou escura. Sorry.
Background histórico
A cidade de Volterra tem mais ou menos uns três mil anos de história. Há evidências de TODOS os periodos históricos desde os primeiros habitantes, o que confere à cidade um aspecto artistico único. A antiguidade dos muros, a imponente Porta dell'Arco Etrusco abaixo, a Necrópolis de Marmini e os inúmeros achados arqueológicos conservados no Museo Etrusco, como a famosa estatueta L'Ombra della Sera abaixo, as urnas funerárias e jóias finamente trabalhadas são testemunhas do período etrusco. O Teatro di Vallebona é do período de Augusto, o que sugere a importância de Volterra durante o domínio romano.
Hoje a cidade conserva sobretudo um aspecto medieval, não somente pelos muros do século XII mas também pela estrutura urbana, de ruas estreitas, palácios, casas-torre e igrejas. O Paolo, motorista do segundo ônibus (que vocês ainda não conhecem), é de Volterra e me contou um monte de coisas interessantes sobre a cidade. Basicamente morar numa casa-torre era demonstração de potência econômica e de status social. S. Gimignano chegou a ter 72 delas – hoje são 11, se não me engano. Volterra tinha bem menos torres, mas tinha. Hoje não sobrou nenhuma, porque quando foi conquistada por Pisa, que hoje é a província à qual pertence Volterra, suas torres foram literalmente capadas, prática comum na época. Quem ganha corta as torres de quem perde, que assim fica de mãos abanando em termos de status. Ele também falou que Volterra, originalmente Velathri (que nome lindo!!!), foi a mais importante cidade etrusca, dominando toda a área ao redor.
O Renascimento teve grande importância na cidade, mas não alterou seu caráter medieval. Desse período são a Fortezza Medicea (foto abaixo), que, acreditem, hoje é um presídio de segurança média, e o Convento di San Girolamo.
A cidade tem uma tradição longuíssima de artesanato em alabastro. As lojas e estúdios de alabastro são infinitos e alguns trabalhos são realmente lindíssimos. Os cacarecos pra turista ainda são relativamente poucos, ao contrário de Assis. Paolo falou que, ao contrário da terra de São Francisco, há uma lei contra quem pendura cacarecos fora das lojas, por isso a cidade parece muito mais organizada e limpinha, menos poluída visualmente. Eu comprei um potinho de alabastro branco com uma florzinha em bronze na tampa, pra Arianna, e um outro também com apliques em bronze pra minha tia Ilse, que adora esses trequinhos.
22 de junho
Em vez de me deixar em paz, lendo, Leo me fez ir com ele até o escritório do Massimo, em Larniano, ao lado da villa dos Salames, pra tentar achar o bendito microônibus. Eles estavam sem telefone, por isso Massimo nos levou a Poggibonsi, cidade maiorzinha, mais funcional e menos turística ali perto, onde fica o escritório central da empresa onde ele trabalha. O proprietário dessa villa di Larniano e de outras é um certo Senhor Niccolai, que de operário passou a dono de uma empresa de trailers – aqueles que neguinho usa pra viajar gastando pouco (pouco uma ova, porque um trailer custa MUITA grana). A empresa vende e aluga trailers – no caso do aluguel, os maiores clientes são prostitutas da área, que alugam por um dia (ou noite) pra ter um lugar pra levar os clientes. Homem esperto e de muita visão, seu Niccolai comprou, há séculos, antes do boom da Toscana, um monte de antigas ville a preços ridículos, reestruturou todas e hoje valem uma grana preta – e rendem mais ainda, visto que ele não é bobo e vender, não vende nada, só aluga pra turistas endinheirados. Então lá estamos nós no escritório em Poggibonsi ligando pra todos os transportadores, taxistas e alugadores de carro e ônibus da província. Levamos a manhã inteira nisso, e eu, entediada, abri meu diário e comecei a escrever. Lá vem a besta do Leo encher meu saco:
- O que que você tá escrevendo?
- Um diário.
- Você escreve um diário?
- Sim.
- Nossa, você é uma brasileira muito atípica.
- Por que, porque sei ler e escrever melhor que você? Leo, na boa, se você continuar enchendo o meu saco com essas idiotices eu vou me irritar seriamente. E você NÃO QUER ME VER IRRITADA SERIAMENTE. Nem eu quero me ver irritada seriamente. Pára de me torrar a paciência.
Começamos a discutir ali mesmo – aliás, ele berrava e eu nem tchum, continuava no meu diário. Ele tem essa mania idiota de fazer piadas bestas sobre o Brasil, país que, conforme fiz questão de lembrar-lhe várias vezes, ele não conhece. ODEIOOOOOO gente que brinca com coisas que não conhece nem de longe. No final das contas a briga acabou porque ligaram de uma companhia confirmando um ônibus de 29 lugares pra meio-dia e meia, hora em que a gente deveria ir pegar os Salames na villa. Eles queriam um ônibus maior do que o que foi pegá-los no aeroporto, que segundo eles pulava demais (engraçado que mesmo pulando eles dormiram a viagem toda...), então esse de 29 era perfeito. Lá fomos eu e Massimo inspecionar o tal ônibus, cujo proprietário se chama Renzo. Achamos que servia, apesar de não ser muito bonitinho, ser pintado em cores cafonas e não ser exatamente novo. Mas só tinha ele mesmo, então fomos à villa pegar a galera.
O motorista se chamava Michele e era um amor, um docinho. Pequenininho, dentes completamente acavalados, tímido, era só uma das crianças dar buongiorrrrrno, Michael! pra ele que ele ficava todo vermelho. Foi dirigindo devagarzinho, já sabendo que ali todo mundo tinha mania de enjoar e vomitar, até porque comem sem parar dentro do ônibus, e que o Salame não gosta de ônibus que pula. Nesse ritmo caramujo levamos séculos pra chegar a Volterra, mas eu gostei logo de cara. Desembarcamos a família na entrada da cidade e fomos almoçar, eu e a mala do Leo (o Michele tinha que ficar no ônibus, no estacionamento um pouco fora da cidade), num restaurante muito fofo chamado Web & Wine (Via Porta all’Arco, 11/13. Tel. 0588.81531). Leo comeu pizza mas eu não almocei, tava doida pra dar umas voltas pela cidade. Deixei o pentelho lá imprimindo e-mails no restaurante e fui dar os meus rolés.
Volterra é LINDA. É turística, sim, mas manteve a qualidade de vida. As lojas são foférrimas, super bem cuidadas, as vitrines de um incrível bom gosto, as embalagens dos produtos são lindas, as ruas são limpas, as pessoas são simpáticas. Um amor, um bijoux de cidade, fiquei louca! A piazza del Comune lembra muito a de Arezzo, mas é vários séculos mais antiga, como fez questão de frisar o Paolo. Eu não queria encontrar com os Salames na rua, pra não parecer que eu estava me divertindo às custas deles, por isso evitei o Museo Etrusco. Mas pretendo voltar a Volterra com calma e passar horas no museu e várias outras rodando pelas ruelas.
Encontrei, num beco, uma livraria chamada Lorien. Jacaré entrou? Eu também. Achei vários livros em língua original, coisas atuais, muitos livros da minha wishlist, muitas coisas fofas, e acabei comprando Lullaby, do Palahniuk, e outras coisas bubus, algumas das quais estão em processo de envelopamento e expedição pra Newlands, mas não contem pra ela não. Tirei várias fotos, a maioria escura e feia, comprei mil cartões-postais, fui aos correios expedir todos, comprei os potinhos de alabastro, voltei pra entrada da cidade e mais tarde a família chegou e fomos embora.
Largamos o povo na villa, onde eles iam jantar a comida da Giuseppina, e fomos de Alfa até a pizzaria do Francesco, ver o fatídico jogo Itália x Bulgaria. Quando estávamos estacionando ouvi a seguinte frase: "em francês também se diz assim..." e logo identifiquei a fonte. Eram cinco brasileiros sentados a uma mesa do lado de fora. Cinco engenheiros, na Itália a trabalho, todos de Santa Catarina e muito simpáticos. Ficamos horas batendo papo, e foi nessa que descobri que o Francesco falava português. Quando subi pro segundo andar, onde o Leo tinha sentado porque tinha telão, ele já tava no fim da pizza. O papo com os meninos tinha sido tão legal (talvez pra eles não, porque eu falei pra caramba, até ficar com sede) que a fome até voltou e comi uma lasanha básica. Depois do jogo fomos dormir que ninguém é de ferro.
Background histórico
Os símbolos de Siena são a balzana (um escudo preto e branco) e a loba amamentando os gêmeos Rômulo e Remo – o mesmo símbolo de Roma. De acordo com uma antiga lenda, Siena teria sido fundada por dois filhos de Remo, Senius e Aschius, que, ao deixar Roma, levaram com eles uma estátua da loba, roubada de um templo de Apolo. Eles teriam se estabelecido nas colinas toscanas. Senius tinha um cavalo branco e Aschius um cavalo preto, o que explicaria a escolha das cores da cidade.
A área onde fica Siena provavelmente já era habitada desde a época etrusca (séculos VII – V a.C.), mas os romanos fundaram Siena como uma colônia militar (Sena Julia) nos tempos do imperador Otaviano Augusto (27 a.C. – 14 a.C). Durante o período de dominação romana, a cidade se desenvolveu muito pouco economicamente, porque estava longe das rotas de comunicação mais importantes, que eram a Via Aurelia a oeste, seguindo a costa do mar Tirreno, e a Via Cassia a leste, que atravessa o vale do Chiana e o vale do rio Arno. Mais tarde, lá pelo século IV d.C., a cidade começou a crescer, juntamente com o Cristianismo, que ali se desenvolveu, dizem, com S. Ansano.
Os Longobardos invadiram a Itália em 568 d.C. e trouxeram muita prosperidade à cidade, que alargou suas fronteiras, roubando Rapolano, Sinalunga e Asciano da rival Arezzo. Essas cidades até hoje pertencem à província de Siena. Além disso, as áreas em torno da Aurelia e da Cassia estavam se deteriorando, e com isso Siena se viu em uma situação importante, em meio a uma nova linha de comunicação: a via Francigena. No século VII, Carlos Magno derrotou os Longobardos e Siena passou a ser domínio francês. Foi nesse período que nasceu a nobreza senese, bem do coração de famílias longobardas e francesas.
Depois de alguns séculos de calmaria econômica, política e cultural, a cidade voltou a crescer, a partir do ano 1100. Lentamente Siena voltou a expandir seus limites e foi ali que começaram as primeiras brigas com Florença, cidade guelfa (anti-imperial, ou seja, a favor da mistura Igreja-Estado, enquanto que Siena era ghibellina, pró-imperial, ou seja, os papas não têm que meter o bedelho na política). A partir do século XIII a cidade se tornou um centro urbano propriamente dito. Nessa época nasceram os primeiros bancos (o Monte dei Paschi di Siena é o mais famoso, fundado mais tarde, em 1492, se não me engano, e que é uma das potências bancárias da Itália. A agência aqui de S. Maria é bem bonitinha.) e um grande hospital, Santa Maria della Scala, que existe até hoje. Infelizmente Florença acabou levando a melhor e Siena se rendeu ao seu domínio, mas a partir daí a cidade conheceu um longo período de paz, durante o qual nasceu a escola senese de arte. No século XIV a cidade entrou em decadência outra vez, em parte por causa da peste que tinha abalado a Europa em 1348, e nesse mesmo período a religião ganhava cada vez mais força. São dessa época personagens famosos como Santa Catarina de Siena e São Bernardino de Siena.
Durante o Renascimento Siena voltou ao seu esplendor, especialmente na vida cultural: a escola senese passou a integrar os novos estilos florentinos de pintura e escultura, e houve muitas novidades também na área da arquitetura. Lógico que depois desse período veio uma nova onda de decadência, de opressão por parte dos franceses e dos Habsburgos, e as guerras contra Florença não paravam, até que a cidade caiu nas mãos dos espanhóis (Felipe II), que em 1557 vendeu a cidade a Cosmo I da família Medici, um nobre florentino. E assim Siena passou a fazer parte do Grão-Ducado da Toscana, perdendo sua independência política mas mantendo a independência administrativa.
No século XII foram fundadas a Universidade de Siena e as academias de artes e ciências. Também foi nessa época que a tradição do Palio di Siena foi consolidada. As contrade (os bairros, digamos) passaram a ganhar importância e a rivalidade entre elas também foi crescendo, coisas que se observam claramente ainda hoje, na época do Palio e fora dela também.
E quando a Itália deixou de ser um amontoado de reinos, cidades-estado e outras coisas estranhas e passou a ser um Estado, Siena, obviamente, foi simplesmente incorporada e virou a província que hoje é.
21 de junho
Acordei cedo, como sempre, mas dessa vez quem me acordou foi o Leo, aos berros no telefone. Felizmente ele saiu de casa às 8:30 pra levar a Renault pra Florença e pegar o outro carro pro Salame. Novamente esperei que ele saísse pra finalmente ir tomar meu banho, comer meus grissini e continuar minha leitura. O dia estava lindo, mas soprava um vento frio sem parar. Deveríamos chegar à villa às 11 já com o novo carro pra acompanhar a família a Siena, mas Leo chegou depois das onze pra me buscar. Eu fui dirigindo o novo monovolume, um Fiat Ulysse, e ele foi com a Alfa. Botamos todo mundo nos carros, eu fui com Leo e todos os outros machos no Ulysse e a Morena Simpática foi com o resto da mulherada dirigindo o Ford. Tivemos que parar no caminho porque a Blonde Teenager, coitadinha, não aguentou as mil curvas da estrada e vomitou feio. Mas chegamos vivos a Siena.
Largamos a família sozinha, como sempre, e fomos estacionar na Piazza dell’Indipendenza, bem ao lado da famosa Piazza del Campo. E aqui cabe uma explicação teórica. O Leo é como se fosse um taxista de luxo, que entra na categoria NCC (noleggio con conducente, ou carro alugado com motorista), o que lhe dá acesso às áreas ZTL (zona traffico limitado), onde normalmente carros não podem passar. Só que a licença NCC se refere ao carro, e não ao motorista. Ou seja, quem tem autorização pra entrar em ZTL é a Alfa, e não o Leo dirigindo outros carros. Só fui entender isso mais tarde, porque deixamos os carros na praça e fomos a um internet café pra eu traduzir uns emails pra ele, e quando voltamos um policial tava lá todo feliz multando os dois monovolumes. Leo ficou puto da vida, dizendo que era muito azar porque ele conhecia todos os policiais de Siena e justo nesse dia que tinha clientes importantes e ele tinha se afastado um minuto dos carros, lá vem um policial que ele não conhece fazer multas que ele não merecia (aham). Rolou uma confusão danada porque ele não queria abrir os carros pra pegar os documentos, já que a autorização NCC tava no nome dele e nos documentos da Avis no porta-luvas dos carros estavam, obviamente, os nomes de membros da família Salame, que eram quem deveria dirigir, em vez do Leo. O policial queria porque queria ver os documentos, o Leo argumentando ridiculamente que não podia invadir a propriedade de outras pessoas, porque os carros estavam no nome dos clientes e não no seu, o policial perguntando então comé que ele tava com as chaves dos carros se não eram dele, acabaram chamando outros dois policiais da central, e no final o Leo ganhou duas multas, e escapou por pouco de levar uma terceira por desacato à autoridade. Achei Ó-TE-MO.
Ficamos o dia inteiro pastando na praça. Eu conheço Siena e não tava a fim de passear, preferi ficar por ali mesmo, lendo e me esquivando do Leo. Mais tarde o Salame ligou dizendo que eles queriam jantar em Siena mesmo, mas tinha que ser cedo, por causa das crianças. Pra achar um restaurante que abrisse às seis e meia da tarde pra fazer macarrão com manteiga e frango grelhado pra um bando de americanos foi um parto, do qual fiz questão de não participar, já antecipando que eu não receberia nem um obrigado, quanto mais uma graninha extra, por fazer gentilezas que não estavam no programa. Fiquei quietinha sentada no carro, protegida do vento frio, lendo meu livrinho e comendo uma focaccia de alecrim, que foi meu almoço às 4 da tarde (lembrem-se que a raiva é a única coisa que me tira a fome, e o Leo me irritou MUITO desde o primeiro minuto desse trabalho). Encontrado o bendito restaurante e encaminhados os Salames, Leo entrou no carro comigo e cismou de bater papo, contando, com seu hálito de esgoto, coisas sobre a sua vida pelas quais eu não tinha o mínimo interesse e não fiz nenhuma pergunta. Ele diz que trabalhou 18 anos em rádio e por isso fala berrando. Que delícia.
A parte mais deliciosa veio depois: a Morena Simpática tava cansada e não queria dirigir. Quem foi dar uma de motorista? Euzinha. Não me levem a mal, eu ADORO dirigir, mas se devo dirigir profissionalmente, ainda mais com a GIGANTESCA responsabilidade de ter gente desse calibre dentro do carro, quero ganhar mais por isso, e quero, principalmente, saber que haverá a possibilidade de ter que fazê-lo, antes do trabalho começar, em vez de ser pega de surpresa. Mas tudo bem, fora um caminhão-jamanta que quase nos matou na estrada porque não nos deu a preferência, que era nossa, não aconteceu nada de grave. Largamos o pessoal na villa e fomos jantar.
Comemos no único restaurante que achamos aberto em S. Gimignano: Il Trovatore (Via dei Fossi, 17. Tel. 0577.942240), muito bonitinho e simpático, com Tosca rolando no telão. Comemos pici (pronúncia pitchi. São iguais aos strangozzi umbros, que são spaghetti super grossos e de farinha de grão duro, ficam super al dente) alle briciole, ou seja, com tomates-cereja e farinha de rosca por cima (briciole quer dizer migalhas de pão). Durante o jantar ligamos (liguei) pros EUA pra falar com a assistente pessoal do Salame, porque o dinheiro que deveria ter chegado ao banco do Leo não dava sinais de vida, e ele precisava pagar a Avis. Também tinha o lance do microônibus, que às onze da noite, quando deixamos os Salames na villa, a Mulher do Salame cismou que queria pro dia seguinte, pra eles viajarem todos juntos. Precisávamos de autorização pra pagar por esse ônibus, que não estava no contrato inicial com o Leo. Os Salames não lidam com dinheiro, quem administra essas coisas é essa assistente pessoal do Salame, que nos implorou pra nem tocar no assunto grana com eles – é uma preocupação que eles não querem ter. No final ela deu carta branca pra usar o número de cartão de crédito deles pra comprar, alugar e obter qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, que eles desejassem. Então tá.
Exaustos, fomos pra casa dormir.
(Vou falar mais da cidade e botar fotos mais à frente, nesse dia a gente não viu quase nada porque não deu tempo. E não reparem na qualidade péssima das fotos. Eu sou péssima fotógrafa, por isso prefiro comprar cartões-postais.)
Acordei cedo, como sempre, mas não ousei botar o nariz pra fora até o Leo sair de casa. Fiquei lá, deitadinha lendo meu livrinho, ouvindo todos os rumores corporais dele no banheiro, a torneira aberta por horas a fio, os passos pesados arrastando os chinelos, o pigarro, o assoar do nariz, os resmungos, o telefone que tocou e ele respondeu aos berros, os arrotos ocasionais, uma fineza só. Quando ouvi o estrondo da porta da frente batendo e o barulho do carro indo embora, levantei, fiz a cama e fui tomar banho, fingindo não notar o estado lamentável do banheiro – coisa de quem não tem nem bom senso, nem uma companheira em casa pra dizer Leo, VAI SECAR O CHÃO DO BANHEIRO, PORRA, nem respeito pela pessoa com a qual ele é forçado a dividir o banheiro nesse momento. Comi uns grissini di alecrim de café da manhã sentada na cama, olhando pela janela. O tempo estava esquisito, um vento super forte, nuvens que passavam correndo, escondendo e mostrando o sol. Tomei coragem e saí.
Eu tinha marcado com as babás de encontrá-las no hotel delas às onze. A família tinha nos dispensado; queriam ver a cidade sozinhos, sem babás, guias ou intérpretes. Fui a pé ao hotel, porque adoro caminhar, a paisagem é linda, é só uma colina de distância, e porque não tinha outro jeito mesmo, já que Leo saiu com o carro. Calculei mal o tempo e acabei chegando cedo demais. A recepcionista simpática me disse que elas tinham saído pra jantar na noite anterior e chegado muito tarde. Pronto, pensei, vou ficar esperando aqui até meio-dia e meia. Mas tadinhas, às onze e meia desceram, sorridentes, e fomos a pé até a cidade, que é linda.
Claro que fomos direto almoçar, que já era hora. Entramos no primeiro restaurante que vimos, Taverna Paradiso (de Raffaela Scialò; Via S. Giovanni, 6. Tel 0577.940302), bem no início da ladeira que leva à Piazza della Cisterna.
O restaurante era microscópico, e a proprietária estava usando um lindo vestido do Renascimento, cor de vinho, e penteado de época também. Pedimos bruschette e depois cavatelli (uma massa curta que parece um nhoque pequeno com um corte longitudinal) alla Medici, ou seja, com bacon, molho de tomate e nozes – uma delícia. As meninas comeram tiramisù de sobremesa, batemos papo com a proprietária e saímos. Fomos dar uma volta na praça: tavam passando os Cavalieri di Santa Fina, a outra santa padroeira da cidade. Os cavaleiros são esses coloridos e armados de lança, à esquerda na foto, mas mal dá pra ver, eu sei.
Tomamos sorvete de maracujá e chocolate na Piazza della Cisterna, demos uma voltinha rápida por alguns becos e voltamos pra pegar o carro na garagem do hotel, porque elas tinham que estar na villa às três da tarde, pra dar uma geral na casa e ver se a família precisava de alguma coisa.
Chegamos à villa, botamos roupas pra lavar, arrumamos umas telhas pra fazer peso no varal de chão, que senão o vento levava embora, e ficamos batendo papo sentadas nas espreguiçadeiras da piscina. Dali a pouco o Leo liga dizendo que o Salame tinha ligado pra ele reclamando de alguma coisa do carro, mas ele, obviamente, não tinha entendido o que era. Liguei pro Salame (ele, a mulher e cada uma das babás ganhou um celular novo especialmente pra essa viagem) e ele explicou que tinha uma luz esquisita acesa no painel e ele não sabia o que era, e que volta e meia alguma coisa apitava, mas ele também não sabia o que era, porque as mensagens no painel eram, obviamente, em italiano. Como o carro andava sem problemas, concordamos que eu ficaria na villa esperando por ele (como se eu pudesse sair dali, sem carro...) pra tentar descobrir o que era. Uma hora depois eles chegam: o problema era na Renault. Peguei o carro e fui até a cidade mas não piscou nem apitou nada. Voltei e encontrei Ruivona já pronta dentro da Astra, de saída pra um mercadinho pra comprar umas coisinhas pras crianças. Lá fomos nós de novo pra cidade, ao único alimentari aberto, comprar as tais coisinhas: iogurte, manteiga de amendoim (que, obviamente, não tinha), coca-cola, água mineral, brioches, Nutella, manteiga, papel laminado, pregadores, um papel higiênico mais macio do que o que tinha na villa, essas coisas. Levamos horas porque toda hora o Salame ligava pra Ruivona pra adicionar alguma coisa à lista. Finalmente voltamos à villa, e às 8 da noite Ilaria, simpática co-administradora da villa, fez a cortesia de levá-los pra jantar na cidade, já que o Leo tinha ido resolver a vida dele sei lá onde e eu, além de estar a pé, não sabia onde ficava o restaurante. Eu fui jantar com as meninas num outro hotel-restaurante perto do hotel delas. Fiz elas provarem a ribollita, aquela sopa de verduras e leguminosas com pão dentro, típica da Toscana e absolutamente deliciosa, comeram pão com provolone derretido, eu fui de spaghetti com crustáceos, a Ruivona encarou um filé mignon com berinjela, abobrinha, batata e pimentão na grelha, e a Filipinona foi de frango com aspargos. Voltamos todas à villa, onde o Leo tinha acabado de chegar, e dali eu fui dirigindo a Renault atrás dele com a Alfa, porque no final das contas o Salame queria porque queria mudar de carro e a companhia de aluguel fica em Florença, por isso a substituição teria que rolar na manhã seguinte, bem cedo. Leo queria comer; fomos a uma pizzaria, La Taverna del Granducato (Viale Roma, 6. Tel 0577.907049. Falar com o Francesco, que é casado com uma brasileira e fala Português muito bem), onde tive que suportar a companhia do Leo por mais de uma hora enquanto ele atacava umas carnes na brasa com salada. Chegando em casa, tomei um super banho e fui mimir.
Leo é uma mala sem alça. Ele aluga carros pra turistas americanos e ingleses, e na maioria das vezes vai buscá-los no aeroporto e os leva pro hotel ou pra villa alugada. Na verdade esse "transfer" é a sua especialidade. Não poderia ser de outro modo, já que ele não fala quase nada de Inglês e é completamente desprovido de classe, e por isso fica limitado a dirigir o carro mesmo. Eu fui chamada pra trabalhar como intérprete, quebra-galhos ocasional e boa companhia.
Ele trabalha, na maioria das vezes, com clientes de uma conceituada agência de aluguel de ville (lembrem-se que o plural em italiano não tem s), com sede em Londres. Esse grupo que acompanhamos na Toscana nesses 12 dias é composto de 13 pessoas, que fizeram contato com a agência de Londres através da agência de turismo deles nos EUA. Não posso dizer nem o nome da família nem o da cidade onde moram, porque é gente MUITO rica e conhecida. Digamos que a família se chama Xis. Essas 13 pessoas são: o Salame, filho do poderoso patriarca Mr. Xis (quando um homem é um bundão, em italiano, se diz que è un salame. Bundão como esse eu nunca vi, por isso o apelido), a Mulher do Salame, os Quatro Filhos dos Salames (digamos Salaminhos 1, 2, 3 e 4, em ordem cronológica), a melhor amiga da Mulher do Salame, que chamaremos de Morena Simpática, sua única filha, que chamaremos de Sardenta Sorridente, dois dos três filhos do seu segundo marido (ela ficou viúva quando estava grávida de 8 meses da Sardenta Sorridente, e anos depois casou com um viúvo com 3 filhos), que chamaremos de Moreninho e de Blonde Teenager, o melhor amigo do Salame, doravante chamado Super Stronzo, e as duas baby-sitters, que chamaremos de Ruivona e Filipinona (o motivo do aumentativo é puramente estético – a Ruivona é ENORME e a Filipinona, de origem obviamente filipina, é bem, bem gordinha). A família Xis tem tanto, mas tanto, mas tanto dinheiro que eu não consigo nem explicar. Mas vou dar exemplos ao longo dos posts e vocês vão entender o nível dessa gente.
A família Xis alugou uma villa em Larniano, uma colina pertencente a San Gimignano, província de Siena. Na Toscana quase tudo que é colina tem um nome, como se cada uma fosse um bairro, todos pertencentes à cidade principal. A villa di Larniano é simplesmente uma torre construída no ano 1000. Isso mesmo que vocês leram, ano 1000.
É bem grande, tem um monte de quartos, um monte de banheiros, máquina de lavar louça e máquina de lavar roupa, piscina imensa, quadra de tênis, cozinha confortável, salões e mais salões, TV com DVD player. As babás ficaram hospedadas num hotel 4 estrelas na entrada da cidade.
Os carros de aluguel eram 3: duas monovolumes (uma Renault Espace modernérrima, com cartão em vez de chave, e uma Ford cujo modelo esqueci) e uma Opel Astra pras babás.
Os Salames não trabalham, seus filhos não vão à escola mas são homeschooled (e as babás, ambas de formação pedagógica, ajudam, juntamente com os infinitos professores particulares). O Super Stronzo é arquiteto e antipático. A Morena Simpática é ex-bailarina e coreógrafa, elegante, linda, super sorridente. O velho Mr. Xis é um dos maiores acionistas de uma das mais importantes publicações dos EUA, e tem tantas, mas tantas empresas que um dia resolveu dar uma de presente ao melhor amigo de cada filho. O Super Stronzo se encarregou de falir a que ele ganhou.
Os Salames têm casa na Suíça, em um outro lugar dos EUA onde passam o verão inteiro, e em outros lugares que eu já esqueci. São muito religiosos e seriamente envolvidos com a sua igreja, que não sei qual é porque esse assunto realmente não me interessa.
Background completo, vamos ao relato propriamente dito...
Sábado, 19 de junho
Acordei super cedo e saí de casa antes das seis e meia. Fui até Todi encontrar o Leo e o microônibus. Logo de cara já me irritei: quando perguntei onde deveria sair da estrada, ele falou "pega a saída de Todi". Só que Todi tem duas saídas, uma chamada Todi-Orvieto, que é meio lateral à cidade, e outra chamada Todi-San Damiano, que fica bem de frente pra Todi, e foi onde eu saí. Liguei pra ele pra avisar onde eu estava, e seguiu-se o seguinte diálogo:
Leo: Por que você saiu em San Damiano?
Leticia: Porque você é super esperto e sabe dar indicações muito bem, e mesmo sabendo que eu não conheço NADA de Todi nem se preocupou em dizer qual saída pegar. Super legal, adorei. Adoro me perder.
Tudo bem, ele veio me buscar, demos a volta toda de novo. Deixei o carro estacionado em frente a um centro commerciale, subi no microônibus, cujo motorista se chamava Massimo, e fomos pro aeroporto de Roma. Leo foi pegar outros clientes no centro de Todi, que teriam que ir ao aeroporto também – dois coelhos com uma porrada só.
Chegamos cedo demais. Fiquei uma hora batendo papo com o Massimo no ônibus, sem entender quase nada – ele é de uma cidadezinha minúscula perto do Lago Trasimeno e tem um sotaque horrível, além de ser super bronco, o que invariavelmente atrapalha a dicção. A hora da chegada do vôo dos Salames foi se aproximando, e eu fui ao portão de chegada esperar, com aquele cartazinho ridículo na mão, escrito Family Xis. Nunca imaginei que um dia fosse passar por uma situação dessas. Ao meu redor, amontoados num canto do portão de desembarque, mil outros Leos, cada um com seu cartazinho escrito à mão e com grafia errada, enchiam o saco dos passageiros que saíam perguntando que vôo era aquele que tinha acabado de aterrissar. O monitor avisava que o vôo dos Salames estava desembarcando, e nada do Leo chegar. Chegou, todo suado, praticamente junto com eles. Um bando de crianças louras e sorridentes, e TRILHÕESSSSSSSSSS de malas enormes, do tipo que cabem dois cadáveres dentro, confortavelmente instalados. Cumprimentos, apertos de mão, carregamos o ônibus de malas, todo mundo sobiu, Leo montou na sua Alfa preta, e lá fomos nós pra Todi, onde íamos parar pra almoçar.
A viagem a Todi é tranquila; alguns minutos de bate-papo desconfortável e formal intercalados com meias-horas de sono. Em Todi almoçamos no La Mulinella (Località Pontenaia - Todi (PG) - 075.8944779), os Salames numa mesa linda no jardim, embaixo de uma árvore, e eu com o Massimo, no ar condicionado dentro do restaurante. Comi tagliatelle com molho de ganso, super bem feito. Eles fazem um pão com nozes que é de comer chorando. As crianças Salame comeram macarrão com manteiga – sacrilégio, italiano odeia manteiga. A Mulher do Salame conseguiu convencer o garçom a trazer um cappuccino pra ela em plena hora do almoço, coisa incrível, já que normalmente os italianos são extremamente puristas quando se fala de comida, e quase sempre se recusam a cometer heresias alimentares, não interessa quem está pedindo. Mas ela lançou um sorriso de Mulher de Salame Milionário e o garçom trouxe o cappuccino, não sem revirar os olhos, claro.
Acabado o almoço, era hora de tocar pra San Gimignano. Leo me veio com a novidade: eu tinha que levar o carro das babás até a Toscana, coisa que não estava prevista nos nossos acordos iniciais. Esse carro já deveria estar em Larniano, com os outros dois, e em momento nenhum se falou em Leticia dirigindo. Mas, como não tinha outro jeito, lá fui eu dirigindo a Opel Astra – carrão, aliás, motor tinindo, ar condicionado super power.
A viagem foi um saco. As estradas depois da saída pra Siena estão em obras há anos e o tráfego corre em uma única fila em cada direção. Levamos séculos pra chegar a S. Gimignano, mas pelo menos a paisagem é bonita. E vi uma coisa insólita, num lugar insólito: um velho pastor de ovelhas, de cajado e tudo, sentado à sombra de uma árvore, enquanto os carneiros pastavam num pedaço de campo às margens da autostrada Roma-Firenze, uma das mais movimentadas do país. Eu tinha decorado o número do quilômetro, mas não anotei e agora esqueci. Mas a imagem incongruente ficou gravada na minha cabeça, e vai ser uma das últimas a sumir se um dia eu tiver Alzheimer.
Chegando à villa, as crianças foram direto trocar de roupa e pular na piscina. Na cozinha encontrei a Giuseppina, toscana de sovaco cabeludo que prepara refeições a domicílio pra turistas endinheirados, com a ajuda do filho rastafari Simone. O jantar daquele dia estava na grande mesa do terraço: como antipasto, bruschette de berinjela e de tomate e lindos barquinhos de massa recheados com creme de abobrinha e flor de abobrinha. De primo, spaghetti com molho de tomate fresco, e de secondo, asas e coxas de frango assadas. Vinho branco e água mineral. Claro que ninguém comeu nada, porque tinham se entupido de besteira no ônibus. Giuseppina ficou puta da vida, mas disfarçou bem. Nós ficamos resolvendo os últimos pepinos com o Massimo, administrador da villa – providenciando mais toalhas, aprendendo a mexer na máquina de lavar roupa, etc. Fomos até o hotel das babás (Relais Santa Chiara - Via Matteotti, 15 - S. Gimignano (SI) 0577.940701), que nos seguiram no Astra, e depois finalmente nos dirigimos a Racciano, uma outra colina ali perto onde eu e Leo ficamos hospedados numa outra casa do mesmo dono da Villa di Larniano. A casa era minúscula, dois quartos, um banheiro, uma sala/cozinha e um rustico embaixo, com lareira e uma mini-cozinha. A minusculidade da casa foi um IMENSO motivo de irritação: não tenho a MENORRRRRRRRR intimidade com o Leo e dividir aquela casa microscópica, e, pior, dividir banheiro com ele, foi uma das piores experiências da minha vida. Mas enfim.
O bom da casa é a vista: Racciano fica numa posição exatamente oposta à colina onde fica S. Gimignano, por isso da janela da cozinha dava pra ver as torres da cidade:
Leo saiu pra comer pizza. Eu fiquei em casa lendo A Brief History of Time e acabei adormecendo, mas acordei com ele chegando em casa. Ele mora sozinho há anos e, sem ter ninguém que dê uns toques de vez em quando, foi ficando incrivelmente barulhento, fala e resmunga sozinho, fala alto, deixa a torneira aberta enquanto vai beber água na cozinha, um PORREEEEEEEEEE. Também não toma banho todo dia e não vi nem sombra de escova de dentes.
sexta-feira, 5 março
Saímos de casa às quinze pras dez da manhã. O vôo saía às 13:45 do aeroporto de Pisa, mas é bem longinho daqui, por isso tanta antecipação. Mesmo assim chegamos na lata, mal deu tempo de comer alguma coisa antes de embarcar. Na nossa frente, na fila do embarque, uma bicha velha beijava seu companheiro, que ficou em Pisa. Tava tão ocupado se agarrando que simplesmente tinha se esquecido de fazer o check-in, e queria embarcar só com o numero da reserva eletrônica! Levou um esporro da mulherzinha que fica dando instruções ao pessoal tapado da fila.
Viajamos com a BasiqAir, companhia low-fare holandesa. A bicha velha sentou no corredor, na fila à minha esquerda. Na fila à frente dele, duas holandesas e um bebê que chorou muito no início do vôo. As duas conversaram o vôo todo e davam tanta risada que todo mundo já tava rindo junto com elas. De repente, um cheiro de cocô no avião – a mãe do bebê resolveu trocar a fralda do garoto ali no banco, um fedor pavoroso, e a amiga só rindo, rindo, gargalhando. Dei muita risada também :) Na fila à frente delas, um casal de velhos holandeses e uma mulher-macho holandesa. Essa foi uma das últimas a embarcar, e, não achando mais lugar nos bagageiros próximos a onde ela estava sentada, acabou botando sua bagagem de mão no bagageiro bem em cima de mim. Ela veio pegar uma sacola de sanduíche e quando voltou pro seu lugar acho que pisou no pé do velho, que deu um grito de dor tão alto que todo mundo no avião parou pra ver o que ela. Começou então uma discussão estranhíssima em holandês, a coitada da mulher pedindo mil desculpas e tudo mais. Durou uns 2 minutos. Depois começaram a conversar amigavelmente e logo logo já estavam rindo do incidente. A senhora holandesa sentada do lado do Mirco, na janela, tinha comprado uma máquina de café espresso tão grande que não conseguia botar em lugar nenhum. Ajudamos a coitada a espremer o caixote no bagageiro cinco fileiras atrás, e ela ficou só sorrisos a viagem toda. Gosto desses holandeses; são simpáticos.
Rob, o namorado da Stefania, estava nos esperando no aeroporto de Schiphol. Stefania estava vindo de trem de Rotterdam e estava ligeiramente atrasada, como sempre. Demos umas voltinhas, cumprimentamos três afghan hounds que estavam com os donos esperando o filho deles que chegava de viagem, e fomos pegar o carro. Eram quatro da tarde, e decidimos aproveitar o resto da tardinha pra visitar Amsterdam correndo, já que estávamos lá mesmo.
Olha... AMEI. AMEEEEEEEEEEEI. A cidade é DIVINA. A arquitetura é uma coisa de louco: as casas são longas e estreitas e com amplas janelas tanto na frente quanto atrás, o tijolinho é o material mais usado, de todas as cores, formatos e combinações possíveis. Praticamente não existem persianas e são raras as cortinas: o máximo de privacidade é uma faixa de vidro opaco no meio da janela, ou tipo um quadro de vitrais coloridos apoiado na vidraça ou suspenso do teto através de correntinhas. De qualquer forma, dá sempre pra ver a janela do fundo da casa, que invariavelmente dá pra um jardinzinho fofo. Todo mundo bota alguma coisa bonita na janela: na maioria dos casos belíssimos vasos de flores, mas também vi gatos (de verdade e não), réplicas de veleiros, esculturas. A impressão que dá é que o pessoal bota essas coisas bonitas pra adoçar os olhos de quem passa na rua. O engraçado é que, apesar as janelas dando diretamente pra rua, e assim tão expostas, tão amplas, tão nuas, em momento nenhum tive uma impressão de invasão. As pessoas passam e olham porque é bonito, mas não ficam tentando ver lá dentro, fuxicando. Por outro lado, quem está do lado de dentro não tá nem aí: trabalham em seus computadores, tomam chá, brincam com os gatos, sem dar a menor bola pra quem está passando e olhando.
As casas ao longo dos canais são ligeiramente inclinadas pra frente, e têm um negócio perpendicular à parede, lá no alto, onde são instaladas roldanas quando há necessidade de levar móveis pra dentro ou pra fora de casa. Toda essa maluquice tem uma explicação, não menos maluca: como as escadas internas das casas são incrivelmente apertadas, perpendiculares e com degraus estreitos, não há mesinha de cabeceira no mundo que consiga passar por elas, quanto mais um sofá! Por isso as mudanças são feitas pelo lado de fora.
As ruas são limpíssimas e as bicicletas passam pra lá e pra cá sem incomodar ninguém. A quantidade de imigrantes é impressionante: segundo o Rob, são quase 40% da população da cidade. Há restaurantes e lojas especializadas de tudo que é nacionalidade: dos onipresentes turcos aos do Suriname. O cheiro de comida no ar muda a cada dez metros, dependendo do tipo de restaurante em frente ao qual você está passando.
Essa é o buraco pra correspondência na porta de uma casa em Rotterdam: o dono da casa colou um adesivo que explica o tipo de publicidade que ele quer ou não receber. Ja (sim) pra vendedores porta-a-porta, e nee (não) pra panfletos em geral. Muitas casas têm adesivos nee pras duas coisas. É sempre o mesmo adesivo; deve ser comprado em papelaria. Achei bem legal. Aqui na Itália muita gente cola um bilhetinho na caixa de correspondência de casa, dizendo que panfletos não são bem-vindos. Não é necessário dizer que tais bilhetinhos são solenemente ignorados pelos distribuidores de panfletos.
Passamos pelo bairro da luz vermelha. Casas de show pornô mostram muito, digamos, graficamente, em grandes fotografias, o tipo de espetáculo que oferecem. As prostitutas nas vitrines em neon vermelho falam no celular pra se distrair enquanto se exibem de sutiã e calcinha. A maior parte delas, previsivelmente, é imigrante, feia e gorda.
A noite vai caindo e os interiores das casas vão se iluminando. A cidade fica transparente: pelas grandes janelas vê-se perfeitamente tudo que está lá dentro. Muito estranho, muito bonito, muito tranqüilo.
Infelizmente não deu pra ver nada direito. O Rob é altíssimo e pernilongo e anda muito rápido (e olha que eu também ando quase correndo, mas não dá pra competir com aquelas pernas enormes). Além disso já estava escuro e chovendo, e as lojas fecham cedo, no final das contas não entramos em lugar nenhum, só demos umas (mil) voltas a pé mesmo. Mas valeu cada bolha no pé. Quero voltar com mais calma, na primavera ou no verão.
Pegamos a estrada e fomos pra Rotterdam, onde o Rob mora. Deixamos as malas em casa e fomos jantar no restaurante de um amigo dele. Veio outro casal de amigos, a Petra, filha de mãe tailandesa e pai também oriental, e René, muito simpático. A comida não era lá essas coisas, mas fazer o quê... Acho que estou ficando chata que nem os italianos. Tudo o que eu experimento de novidade eu acho uma porcaria e não trocaria por um bom prato de massa nem por todo o dinheiro do mundo. Mirco pediu risoto de legumes e uma carne, mas o cozinheiro achou estranho pedir as duas coisas (aqui na Itália seriam dois pratos separados, um primo e um secondo), achou que era comida demais e resolveu, por contra própria, juntar tudo no mesmo prato, em porções reduzidas. Engraçado foi que eu também fiquei indignada ;) A gente se acostuma a tudo nessa vida.
Estávamos cansados e morrendo de sono, então voltamos logo pra casa. O Rob é meio alternativo, e a casa dele é cheia de coisas esquisitas, o telefone fica no chão, o colchão idem, há quadros estranhos nas paredes. Mas ao mesmo tempo é muito legal. Stefania espalhou suas ervinhas aromáticas pela casa toda. E obviamente não faltam os vasos nas janelas.
sábado, 6 de março
Eu e Mirco acordamos cedo e com fome. Lá fora nevava sem parar, mas mesmo assim volta e meia passava um maluco de bicicleta embaixo da janela.
Ficamos batendo papo esperando alguém se levantar, mas tanto o Rob quanto a Stefania são meio lentos pra acordar, então descemos e fomos tomar café. Quando estávamos terminando a Stefania desceu, juntou-se a nós, trocou de roupa e fomos dar um passeio a pé, pra aproveitar que a neve tinha parado de cair (o tempo é muito louco por aquelas bandas, cruzes). Fomos ao supermercado, onde compramos várias coisas que nem sei o que são mas tinham embalagens lindas, e à farmácia. Quando voltamos o Rob já estava de pé e pronto pra sair. Pegamos o carro e fomos até a área portuária de Rotterdam. Vimos as casas-cubo, horripilantes – mas até nelas neguinho bota flor na janela, não tem jeito.
Paramos num barzinho pro Mirco comer alguma coisa, que já era tarde, e depois fomos até a central do Spido, um barcão que faz um tour do porto. Achei muito pouco turístico porque porto é porto, pombas, é um saco de ver, mas até que deram algumas informações importantes: vimos um galpão-frigorífero IMENSO onde armazenam suco de laranja, quase todo vindo do Brasil; fiquei sabendo que o porto de Rotterdam é o maior do mundo em volume de carga e descarga de petróleo; e fiquei boba com o nível de automatização da coisa. Fiquei com a impressão de que nós no Brasil estamos anos-luz atrás.
Voltamos pro centro e fomos pra um barzinho enorme, de pé direito altíssimo, super descolado e cool, chamado Dudok. Comemos uns belisquetes, alguns super picantes mas deliciosos, uns croquetes de carne típicos da Holanda, e pedaços de um queijo típico holandês que gruda no céu da boca. Àquela altura do campeonato já eram seis e meia, e não nos restava nada além de voltar pra casa e nos preparar pro jantar duas horas depois, num restaurante de comida da Indonésia que o Rob tinha reservado.
O tal restaurante é o seguinte... Achei a comida uma merda, mas já falei que estou virando xenófoba alimentar feito os italianos, então não levem muito em conta a minha opinião. Nós pedimos uma coisa chamada rijsttafel, palavra holandesa (não me perguntem a pronúncia, que língua miserável esse holandês! É bonito de ler, cheio de duplas vogais esquisitas, mas falada é pior que alemão, vou te dizer) que significa mesa de arroz. Em teoria seria uma combinação de vários tipos de arroz, mas é uma combinação de vários pratos da culinária da Indonésia. Claro que ninguém come assim na Indonésia, mas a coisa foi pegando e acabou virando um clássico em todos os restaurantes desse tipo na Holanda. A rijsttafel é mais um exemplo de bobeira adaptativa, como o biscoito chinês da sorte que não é chinês coisa nenhuma mas uma invenção americana que acabou colando.
A comida é TODA picante. Não havia NADA de não-picante em toda a mesa – e olha que eram 22 pratos. Muitas coisas agridoces, combinações bizarras (que tal côco frito com vagem?), um molho de amendoim que é uma das coisas mais horríveis que eu já experimentei na vida. Acabou que comemos pouquíssimo; eu e Mirco porque não gostamos de nada e Stefania porque é vegetariana. Rob mandou ver. A conta veio tão picante quanto os pratos. Fomos dormir sonhando com um prato de pasta al pomodoro e basilico, tão simples e tão maravilhoso.
domingo, 7 de março
Chovia muito, MUITO, quando acordamos. Eu acordei cedo com as crianças do vizinho de cima, que marcham pra lá e pra cá pela casa o dia todo. Tomamos banho e descemos pra tomar café. Começamos a ver Como Água para Chocolate em DVD enquanto o Rob não descia (que filme bobo!) e acabamos saindo sem ver o final. Fomos procurar moinhos e acabamos indo parar em Kinderkijk, não muito longe de Rotterdam. A paisagem é de tirar o fôlego, e ainda demos sorte que o sol deu uma saidinha e cheguei até a tirar as luvas e o cachecol em alguns momentos. Claro que sem vento os moinhos não giram, mas considerando o clima, foi melhor assim. Se estivesse ventando eu não teria saído do carro nem por um milhão de moinhos cravejados de diamantes.
Pois é, então, os moinhos. São lindos, lindos, lindos. Há moinhos velhos e novos, todos limpos, pintadinhos, habitados, com jardinzinhos atrás, com patinhos nos canais. Originalmente eram usados pra bombear a água, eterna inimiga dos Países Baixos, de volta pros rios, tornando assim habitáveis, cultiváveis ou pastáveis terras que de outro modo estariam sempre submersas. Alguns moinhos são abertos ao público na primavera. Mais uma razão pra voltar...
Passamos na casa do Fred, irmão do Rob. Ele é decorador e tem um jardim japonês muito maneiro. Digo maneiro e não bonito porque eu detesto a estética oriental. Mas o cara caprichou nos bonsais e nas carpas, e o efeito ficou bárbaro. Dentro de casa, a coleção de peças de arte em vidro do cara, toda exposta com lampadinhas embaixo! A casa parece um museu! E cada peça de vidro que dava até medo, de tão feia. Alguns belos vasos de Murano, mas a maioria uma droga contemporânea que eu não botaria na minha casa nem se me pagassem. Nenhum grão de poeira em lugar nenhum da casa. A mulher, SUPER simpática apesar da pesadíssima maquiagem, veio nos receber com uma calça de couro justa (veja bem, esse casal tem uns 45 anos), botas de salto alto e uma malha preta com bordados brancos na frente. Eles estavam esperando uns amigos pra irem juntos a uma mostra de peças em vidro. Quando chegam os tais amigos, surprise! A mulher com a mesma malha da dona da casa, calça de couro e bota de salto! Demos muita risada, porque a coisa não foi combinada, nem elas sabiam que a outra tinha uma malha igual! Ficamos lá ainda enrolando um pouco, morrendo de medo de respirar mais forte e fazer cair alguma preciosa e horripilante escultura de vidro, e fomos embora.
Fomos procurar um lugar pra comer antes de ir pra Bruxelas, de onde saía o nosso vôo pela Ryan Air. Acabamos indo parar em Dordrecht, clássica cidadezinha holandesa com as clássicas casinhas de tijolinho e os clássicos vasos de flores nas janelas. O único lugar aberto era tipo um diner. A dona falou que nos tínhamos que comer correndo e ir embora, porque o lugar estava reservado pra um aniversário a partir das duas e meia. Tudo bem, só que a comida não chegava nunca! Os donos da festa todos emperequitados, correndo pra lá e pra cá botando as mesas, ajeitando enfeites, espalhando bandejas com salgadinhos, e nos bem no meio do salão, esperando nossos croquetes com batata frita. Depois de horas a comida chegou, e saímos correndo assim que terminamos.
Dormi no carro no caminho pra Bruxelas, mas do pouco que vi da estrada o estilo arquitetônico muda muito pouco entre um país e outro. O aeroporto de Charleroi é microscópico e estava cheio de gente esquisita. Muitos mochileiros americanos, que hoje podem perfeitamente rodar a Europa com as companhias aéreas low-fare, em vez de usar o trem.
O avião era novinho, a tripulação simpática, e o único lugar vazio era a poltrona do meu lado. Consegui me esticar e tirar uma sonequinha que depois veio a ser providencial, porque levamos séculos pra chegar em casa. Toda vez que voltamos da Toscana erramos a saída de Firenze que temos que pegar, e dessa vez não foi diferente. Demos uma volta danada. Ainda por cima teve um acidente muito grave bem antes da nossa saída pro anel rodoviário de Bettolle-Perugia, e ficamos parados 40 minutos ouvindo música e sem saber o que estava acontecendo. Chegamos em casa quase meia-noite, fizemos um risoto Knorr e fomos dormir.
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Engraçado como o conceito de casa é relativo, subjetivo, mutável, diáfano, instável, momentâneo, provisório. Só sossego quando começo a ver as placas de lugares conhecidos: Foligno, Gubbio, Assisi, Terni. Quando saio da Toscana e entro na Umbria já me sinto em casa; vou observando a já familiar paisagem do Lago Trasimeno, as saídas pras belas cidades em torno ao lago, primeiro Tuoro, depois Magione, Passignano, e logo depois já estamos em Corciano. À esquerda vejo a gigantesca concessionária Fratelli Montagna, que enriqueceram vendendo Ford, Mazda e Jaguar; depois a concessionária Ferrari e Maserati, ao lado da Casa del Lampadario e da fábrica de brinquedos; à direita o Warner Village, os cinemas do centro commerciale Gherlinda. Começam as saídas pra Perugia: Ferro di Cavallo, Madonna Alta, San Faustino, Prepo, Piscille, todas conhecidas, amigas, familiares. Entre uma saída e outra, entre um túnel e outro, vemos as torres e as luzes de Perugia nas colinas. Depois vem a saída pra feia Ponte San Giovanni, que também leva a Torgiano, formando um trevo perigoso perto da concessionária Mercedes-Smart e da loja de eletrodomésticos. Continuamos na direção de Assis, e passamos à direita do centro commerciale Collestrada, onde fica o Ipercoop, hipermercado onde adoramos fazer compras. Continuamos na pista da direita, ignoramos a saída pra Ospedalicchio e pro mini-aeroporto de Santo Egidio (perto de Ripa, onde a FeRnanda vai morar), oba, tamos chegando, à esquerda a Scai, revendedora de tratores, à direita mais à frente a Scarpe & Scarpe (Sapatos & Sapatos), a loja com o letreiro mais horrendo do mundo, depois a Divani & Divani (Sofás & Sofás), a Conbipel, loja de roupas onde trabalha a dona do nosso apartamento, a Metro, um supermercado tipo Makro. Pegamos a saída Bastia Umbra Nord, giramos à esquerda pra pegar a Via Cipresso, cujas transversais todas têm nomes de capitais européias: Vienna, Londra, Mosca (Moscou), e a nossa, que fica em frente à via Lisbona, onde aliás mora o Fabrizio o Louco. Chegamos em casa.
Home is where the heart is. Mesmo.
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Quanto mais eu giro por aqui, quanto mais coisas bonitas e civilizadas eu vejo, mais eu me convenço de que o Brasil é uma merda. É uma merda enorme, fedorenta, petrificada no tempo e no espaço. É uma merda porque poderia ser, de verdade, o melhor país do mundo pra se viver, uma potência mundial que os outros países não teriam nem vontade de invejar porque somos legais, alegres, criativos, comemos bem, falamos uma língua linda. Mas não é, e esse desperdício é incrivelmente irritante.. O Brasil é um país de merda, que suga e inutiliza todos os esforços dos pouquíssimos felizardos que tiveram a imensa sorte de ter recebido, além de uma boa educação formal, uma boa educação em casa, e querem mudar as coisas. A gente nada, nada, nada e morre na praia, exausto, sfinito. O resto, a massa, acha tudo ótimo. Todo mundo fala que uma coisa legal no Brasil é que o brasileiro ri sempre, mesmo estando na merda. Não acho isso nada legal, muito pelo contrário. Um pouco de revolta nos faria muito bem. Mas somos preguiçosos, acomodados, pacíficos demais, índios demais. Basta uma bunda rebolativa pra esquecer os sapos que engolimos todo dia, toda hora, o tempo todo. O Brasil é uma sanguessuga. Uma sanguessuga muito da desgraçada, porque a gente sente saudade dela quando está longe.
Mas eu acho que o Brasil não tem jeito. O prognóstico de um país cujo povo acha super normal jogar lixo na rua é sombrio, muito sombrio.
Há muito tempo eu vejo rituais com olhos distantes, antropológicos. Vejo velhas tradições com um interesse curioso, e não sem uma certa compaixão. Entendo a necessidade de marcar a importância de certas coisas com rituais, festinhas, símbolos, palavras especiais. Mas não consigo fazer parte disso, não consigo me imaginar participando ativamente de uma coisa dessas. Consigo entender a importância de uma coisa, de um ato, de uma data, sem necessidade desses “bookmarks” culturais. Não preciso de um padre fingindo que bebe o sangue de Cristo pra me lembrar que a gente tem que tentar ser legal com os vizinhos. Nem de usar calcinha vermelha no Ano-Novo, como se faz aqui na Itália, pra atrair boa sorte. Vejam que não tô falando só dos rituais religiosos. E olha que pra mim religião é uma das coisas mais idiotas que existem no mundo, embora eu entenda seu valor como educador, no passado (hoje virou manipulador de massas, mas deixemos pra lá). Não sei, talvez eu esteja ficando mentalmente velha, mas cada vez mais acho esse tipo de coisa típico de gente ignorante e portadora daquele célebre problema já citado aqui no paca: olhar e não ver.
Isso tudo como preâmbulo pro Natal na Sérvia. Eles são ortodoxos, religião da qual eu nunca soube nada (e continuo sabendo muito pouco, e honestamente querendo saber menos ainda).
O Natal deles é comemorado no dia 7 de janeiro. Na véspera os homens vão ao bosque cortar galhos de carvalho. Diz-se que quem acha o galho mais “folhudo” terá mais riqueza, abundância e filhos em casa. Curioso, interessante, né? Mas não dá pra deixar de ter pena desses homens que vão pro bosque coberto de neve, num frio do cacete, armados (porque eles derrubam os galhos com tiros de espingarda), bêbados, e voltam pra casa exaustos, comem carne de porco até morrer e vão dormir. No final das contas acaba sendo somente uma tradição besta, patética e sem sentido.
Esses da foto ai em cima são o Mika, irmão do garoto que trabalha na oficina do Mirco, e o Ivan, cunhado dele.
Estão vendo s lápide preta à esquerda do Mika? Há um cemitério muito antigo no meio do bosque. Segundo o Mika, é completamente abandonado, e volta e meia um cachorro de caça ou um javali esfomeado desenterra a mão ou o pé de um cadáver. Não há cercas nem muros, nem ninguém tomando conta, assim como o pequeno cemitério de Majilovac. As lápides negras são bonitas, mas dão um ar incrivelmente lúgubre ao lugar, ainda mais assim, brotando do meio da neve. Na manhã de Natal fomos levar velinhas ao cemitério.
Mika e Jelena, antes de acendê-las, beijam as fotos dos antepassados enterrados ali. As fotos são todas iguais: as mulheres de lenço na cabeça e os homens de bigodão. Todos sérios, austeros. Jelena beija inclusive as fotos dos antepassados do Mika, gente que ela não chegou a conhecer (aliás, nem ele), mas que através do matrimônio passou a ser sua família também.
Outra tradição deles é fazer a ceia de Natal sobre uma camada de palha no chão, pra relembrar a origem humilde de Jesus. À parte o fato de que eu não acredito em Jesus, qual é o sentido disso? Você relembra a Sua origem humilde, e depois? Se no resto do ano você não come em cima da palha, isso significa que nos outros 364 dias do ano você nem pensa nele e não se comporta como cristão? O fato de você comer sobre a palha no Natal te transforma numa pessoa melhor? Eu acho que não. Acho que comer sobre a palha dá só coceira na bunda, e basta.
Na casa onde nos hospedamos eles não comem sobre a palha, mas o homem da família sai pra buscar sacos de palha que depois serão depositados sob a mesa de jantar. Antes de entrar em casa com a palha ele bate na porta três vezes. A esposa abre, ele entra, recita umas coisas às quais a mulher responde:
- Jesus nasceu.
- Sim, Jesus nasceu.
- Todo o mundo está sereno, e chove. [não esquecer o simbolismo camponês dessa frase: se não chove, não há colheita.]
Pronto: palha debaixo da mesa, a mulher-escrava bota a mesa e começa o jantar.
Durante o dia as mulheres-escravas, nesse caso a famosa avó que não descobrimos onde dormia, assam vários tipos de pão. Na verdade é uma massa única, mas os pães têm formatos diversos: de bichos, de plantas, de coração, etc. Antes de começar a comer beija-se e acende-se uma vela, que fica num castiçal cafona no meio da mesa. O patriarca da família, nesse caso o pai do Momo, diz uma prece, corta um pedaço de cada pão e o molha no vinho. Cada um da mesa come um pedaço de pão com vinho (horrível). O patriarca acente uma velha lanterna com umas pedrinhas de incenso, reza de novo, benediz a família, estende o braço, sua mulher-escrava vem correndo recolher o queimador de incenso, e antes mesmo que ela volte à mesa ele dá ordem de começar a comer.
Assim como na tradição clássica cristã (eu acho), não se come carne no Natal, mas peixe. O jantar começa com uma deliciosa sopa de frutos do mar muito bem temperada. Depois vem o arroz com aipo (unidos venceremos mas gostoso), salada de feijão branco com cebola e salsinha, peixe frito (horrívellllllllll... peixe de lago, todo escamoso e ossudo parecendo um fóssil) e os famosos e odiosos pepinos/pimentões/cenouras em conserva.
Depois do jantar, os pratos devem ficar na mesa até o dia seguinte, esperando o nascimento de Cristo. Resisti à tentaçao de perguntar como assim, Bial?.
Dorme-se cedo porque no dia seguinte o almoço tem que ser antes do meio-dia, sabe-se lá por quê. Antes do almoço rola o mesmo ritual da ceia, com o incenso, as preces, etc.
Tem um detalhe a mais: assa-se (leia-se a mulher-escrava assa) uma polenta redonda, já marcada em pedaços pra cortar, como uma pizza. Os pedaços são distribuidos a partir do mais jovem sentado à mesa, e cada pedaço tem uma coisa dentro, simbolizando coisas diferentes: o Mirco e o Mika acharam moedas, simbolizando dinheiro, é claro; eu, um pedacinho de madeira, simbolizando casa; Jelena um raminho de planta, simbolizando uma boa colheita; Zorika uma semente de abóbora, que segundo ela não significa nada.
Vem a sopa de legumes, sempre deliciosa. Depois o patriarca pega um pãozão com formato de panetone, com um raminho de flores secas espetado no alto.
Ele corta o pão pela metade, mas sem separar as partes. Rega o pão com vinho.
Depois ele e o outro homem da casa, o Momo, separam as metades; diz-se que comandará a família durante o ano aquele cuja metade ficar com as folhas secas. Unem-se as metades de novo e gira-se o pão três vezes; a cada giro faz-se o sinal da cruz e cada um dos homems beija as duas metades.
Continua a comilança: trouxinhas de repolho com carne moída defumada e arroz (de-li-ci-o-sas, comi até morrer), carne de porco e carneiro (claro), peru defumado com molho de cogumelos (delícia!), pickles, beterraba (eca eca eca eca), a salada de feijão da noite anterior. Milhões de brindes, um a cada cinco minutos e meio, em média. E o tempo todo aquela maldita música de festa junina tocando no rádio.
Mas então: eu acho tudo isso incrivelmente primitivo. Não tive vontade de rir, e mesmo que tivesse não teria rido porque seria falta de respeito, e apesar de achar tudo muito ridículo, respeito a seriedade com a qual eles participam de tudo isso. Mas acho primitivo mesmo, coisa de homem das cavernas que pinta o boi na parede achando que isso vai ajudá-lo a caçar o boi na pradaria. Sei lá, acho muito mais válido ficar quieto, não ficar girando e beijando pão, e tentar se comportar bem durante o ano inteiro do que fazer toda essa papagaiada só nas ocasiões especiais e ser desonesto ou chato de galochas, como foi nosso anfitrião-empurrador-de-comidas nessa viagem.
Claro que o fato de alguém participar de rituais ou ser religioso não significa automaticamente que ele não é boa pessoa no resto do ano. Mas sabe aquela história do cão que ladra e não morde? Sempre achei que quem anuncia demais, prega demais, catequisa demais, no final das contas fica cego pras próprias chatices. Fora o tempo que se perde com esses simbolismos, tempo esse que poderia ser melhor empregado em coisas mais úteis. Repito que não há um só livro nessa casa, e nem no apartamento deles aqui na Itália. A meu ver, isso é MUITO assustador.
Mais um “veranico”. Depois de uma semana gelada, o último weekend foi super light em termos de temperatura, e por enquanto o clima ainda é de inverno carioca, super tabajara. Anteontem de manhã fui aos correios, só de pullover de lã sobre a malha, e senti calor. De tarde fui correr (na verdade correr um pouco e caminhar muito, porque estou super fora de forma), de camiseta de manga curta. Como é bom poder ir à varanda pendurar as roupas no varal e voltar com as mãos inteiras, em vez de duras, congeladas e insensíveis!
Mas acho que a coisa não dura. Olhando pela janela agora cedinho só vejo um paredão branco de neblina. Merda.
Essas são as fotos do tombo do Mirco domingo, no quintal da Arianna. Foi querer brincar de cabo-de-guerra com meu cachorro e se estabacou de costas no chão. Não consegui tirar nenhuma foto dele já no chão. Estava ocupada me sbudellando (algo como “eviscerando”) de rir.
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Anteontem fomos ao Ipercoop, o supermercadão aqui da área, pra nos distrair, e acabei comprando uma maquininha de fazer pasta, igual à da Franzoca. Comprei também o famoso rolo de macarrão, e uma tábua de madeira pra preparar a massa, já que a minha mesa hedionda é porosa demais pra fazer qualquer coisa com farinha, vai ficar tudo imundo. Ainda essa semana pretendo fazer um macarrão qualquer. Depois digo como ficou e dou a receita.
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Aquela planta comprida que no Brasil se chama Espada de São Jorge aqui na Itália se chama Lingua di Suocera (língua de sogra). Vivendo e aprendendo.
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E a penúltima parte da epopéia sérvia: o mercado de Majilovac. Sabe feiras medievais, ao aberto, com lama no chão e as coisas mais estapafúrdias expostas ao público? É assim. Vendem porcos, sapatos, chapéus, colheres de pau, trenós, galinhas, peças de carro, gasolina, chocolate, binóculos, cigarro, roupas de couro, roupas de couro falso, bandejas em inox, meias (comprei várias), facões, relíquias de guerra, brinquedos tabajara, vestidos de gala, cestos de vime, móveis, carneiros, ferramentas, temperos, água mineral de origem duvidosa, bebidas alcoólicas de tudo que é tipo, pneus, maquiagem, canetas coloridas, perfumes falsos, malas e bolsas, enfeites de Natal. Entre outras coisas. Só não vendem livros.
Que depressão esse mercado! Aquela lama no chão, os carros estacionados de qualquer jeito, gente feia e encasacada caminhando carrancuda pra lá e pra cá, gesticulando com os vendedores; as roupas incrivelmente cafonas penduradas nas araras; todo mundo fumando sem parar; os vendedores botando a mercadoria em amassadíssimos sacos plásticos de supermercado antes de dar aos clientes; gente vindo fazer compras de TRATOR; gente com casaco de pele falsa; gente experimentando sapato ali mesmo, em pé na lama; senhoras comprando brocas pra furadeira e correia pro motor do carro; crianças querendo brincar com os porcos e galinhas... Caramba, é outro planeta mesmo. Chegamos em casa cansados de tanto ver coisa estranha e feia. E as únicas coisas que eu comprei em todo esse tempo na Sérvia foram nesse mercado: alguns pares de meias coloridas (listradas de vermelho e branco, listradas de amarelo, branco, preto e verde, preta com bolinhas azuis, listrada de lilás, verde, amarelo, azul e laranja, e uma listrada em tons de cinza e azul com o desenho do Tigrão), um batom fedorento mas bonitinho, e uma bolsa horrível em couro fake pra Carmen, que é de uma cafonice ímpar. Só.
Sei que em Belgrado com certeza teríamos visto coisas bonitas, e não falo só de coisas pra comprar. Dizem que a cidade é bonita, e vimos algumas pontes interessantes no caminho até lá na volta pra casa, mas infelizmente o tempo e o clima não permitiram. Não posso nem dizer que ficará pra próxima, porque espero veementemente que não haja uma próxima. Programa de índio assim de novo, nunca mais.
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No começo de março vamos a Rotterdam visitar a irmã do Mirco que tá morando lá. Ela quem vai pagar as passagens, porque eu não tenho dinheiro pra ir nem na esquina...
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E pra não perder o hábito, fotos cachorrais. Esse é um vizinho da Arianna que tem vários microcães. No domingo passou lá pra visitar, e levou toda a trupe.
Mister Legolas fazendo pose blasé:
E todo feliz com seu galho no meio do mato:
Vamos lá.
Como foram oito dias de não fazer absolutamente NADA, nem de ver absolutamente NADA de interessante, não vou fazer um relato da viagem, mas das minhas opiniões sobre a cidade que visitei. Sei que uma cidadezinha de 2000 habitantes, cuja maioria mora em outros países europeus e só volta pra lá no Natal, na Páscoa e no verão, não basta pra julgar um país inteiro. Não conhecemos Belgrado – a neve e o gelo na estrada não permitiram. Dizem que é bonita, mas eu juro que a essa altura do campeonato não acredito.
Vou colocar a pronúncia das palavras entre parênteses. A sílaba tônica, quando eu souber qual é, evidencio em negrito.
O lugar
Pra quem não lembra, a Sérvia é um dos muitos países fodidos que apareceram depois da fragmentação da ex-Iugoslávia. Os outros países são Croácia, Montenegro, Macedonia, Bósnia Herzegovina, e Eslovênia. A Croácia parece ser o mais civilizado, provavelmente porque tem uma longa costa, que é destino de férias de muitos italianos. Boa parte desse litoral croata um dia pertenceu à república de Venezia, e muitas cidades têm nomes em italiano.
Sérvia, na língua eslava, se diz Srbija (Srbía).
Nós ficamos em Majilovac (Maiílovats), a uma hora de Belgrado. Tem uma rua principal, dois bares, dois mercadinhos, um cemitério, e mais nada. A rua principal é a única asfaltada; todas as outras são um lamaçal só, e impraticáveis a pé. As casas são grandes, muito grandes, espalhafatosas, cafonamente luxuosas. Todas pertencem a gente que deixou a Sérvia e mora na Itália, na Áustria, na Alemanha. Os muros e cercas são TODOS, TODOS tortos, em pelo menos uma das três dimensões.
Eu lembro que achava as casas estranhas mas custei a entender o que estava errado: há um excesso de janelas, de colunas, arcos, varandas, meias-águas. Parece que há uma competição entre os vizinhos: aaaah, a minha casa tem mais janelas que a suaaaaaa... As cores? Vimos casas azuis, amarelo-canário, rosa, lilás. LILÁS.
São todas casas complicadas; as janelas são desniveladas, denunciando a quantidade de andares dispostos loucamente dentro das casas. Tem sempre um anexo, um andar adicionado depois da casa pronta, uma outra casinha dentro do quintal, essas coisas estranhas. Mil portas, portinhas, corredores, escadas, passagens.
Os carros são todos velhos, a não ser os do pessoal que mora fora, e os melhores têm placa da Áustria. Ninguém usa cinto de segurança.
Fuma-se em tudo que é lugar, até no cinema – ah, não, no cinema só é permitido fumar nos intervalos... Como se a fumaça não ficasse ali acumulando. Coisa ridícula. Fumante é idiota em qualquer lugar do mundo. Não há sistema de circulação de ar em lugar nenhum. Do lado de fora do bar não é possivel reconhecer quem está dentro, por causa da fumaça. Dois minutos são o suficiente pros olhos começarem a lacrimejar (nós contamos o tempo, não é paranóia anti-tabagista minha). Respirei mais fumaça nesses 8 dias do que em toda a minha vida.
O lugar civilizado mais próximo é Požarevac (Pojarevats; o ž tem um som entre o z e o j), a 17 quilômetros de Majilovac, e cidade natal do Milosevic.
A cidade é grandinha, tem um pouco de tudo – pouco mesmo. As ruas SEMPRE enlamaçadas, mesmo as asfaltadas. As lojas são de uma cafonice ímpar, não importa o que vendam: móveis, eletrodomésticos, roupas, joias, é tudo horroroso. As vitrines são todas empoeiradas, os logotipos e as fontes são antiquados, é um lugar que parou no tempo.
O único cinema não é exatamente um cinema, mas uma locadora de vídeo, aliás bem completinha, com uma pequena sala de projeção. Mostram um filme por semana, e há poltronas com mesinhas onde você pode comer e beber enquanto assiste ao filme. Saída de segurança? Nem pensar. Três blackouts enquanto assistíamos a Scary Movie 3. O filme da semana que vem é o Retorno do Rei – o rei só nao retornou ainda aqui no Burundi, impressionante. Só dia 22 mesmo.
Indo na direção oposta, há uma outra cidadezinha chamada Veliko Gradište (velico gradishte), que é bem mais bonitinha, mas não tem praticamente nada além de uma bela vista pro Danúbio e pra Romênia, ali pertinho. Ali perto há um lago, Srebrno Jezero (lago de prata, srebrno iezero), com muitas mansões de verão em volta, bares, restaurantes, hotéis, que teoricamente ficam lotados durante o verão. O lago é artificial, formado a partir de um desvio do Danúbio, que passa por Belgrado e por várias cidadezinhas do interior.
Mirco foi cortar o cabelo e fazer a barba duas vezes em Gradište. O barbeiro tem um quiosque com duas cadeiras e uma pia (não cuba pra lavar a cabeça, pia mesmo). Há duas ajudantes, que estão ali pra aprender a profissão. Há três cadeiras pra quem está esperando a sua vez. Fuma-se o tempo todo. Enquanto esperamos, fomos tomar um café no bar-hotel Vegas, de propriedade de mafiosos locais. Quando chegou a nossa vez, a estagiária mais nova atravessou a rua e veio nos chamar. O cara trabalha rápido, é muito eficiente, e só cobra 110 Dinar (mais ou menos 3 euros).
A língua
Eles falam uma língua eslava, difícil de explicar com que coisa se parece. Muitas palavras terminadas em vogal, mas também muitos encontros consonantais malucos, pra nós impronunciáveis. Escreve-se tanto em alfabeto latino, com aqueles acentos doidos sobre (ou sob) as consoantes, lembrando o turco, quanto em alfabeto cirílico, que é belíssimo. A língua eslava não tem nada a ver com o russo, mas a maioria da população entende russo porque foi obrigada a estudá-lo por 4 anos na escola.
Pequeno micro-mini-dicionário sintético-reduzido sérvio-português:
Da – sim
Ne (né) – não
Živeli (jiveli) – tchin tchin (eles brindam O TEMPO TODO)
Polako – devagar
Malo – pouco
Veliko – grande
Kokoska – galinha
Porcil – porco
Hvala (rvala) – obrigado
...continua...
Mas claro que Pisa, que vimos antes de ir pro aeroporto embarcar, também é bonita.
Ah nao, tem foto do muro também, mas agora nao dah tempo de editar que to indo trabalhar na loja do maluco. Entao.
Cartazinho indicando o limao verde brasileiro num supermercado em Berlim:
A unica foto do centro de Berlim, a horripilante Aleksanderplatz.
Fotos de Hamburgo:
um prédio feio caindo aos pedaços bem na rua dos restaurantes badalados, onde jantamos num restaurante portugues na primeira noite.
No dia seguinte fizemos um passeio no lago, que é muito bonito.
O centro é mais ou menos assim:
Impressionante a quantidade de gente que me escreveu enchendo o saco porque eu nao gostei da Alemanha. Ninguem nunca ouviu falar que gosto nao se discute? Porra, achei Berlim uma droga sim, é problema meu, por que toda essa encheçao de saco? Nao tenho o direito de achar uma cidade horrorosa, suja, fedorenta, e as pessoas igualmente horrorosas, sujas e fedorentas? Cade a liberdade de expressao? Eu, hein...
Pode ser que eu tenha ido aos lugares errados. Tipo, Lubeck é linda. Dizem que Munich é linda. Nao deu tempo pra ir, e também nao teria dinheiro, porque as passagens de onibus e trem custam uma fortuna, praticamente tres vezes os preços das passagens aqui na Italia. Pode ser que tenha me faltado alguém que morasse em Berlim pra me mostrar as coisas bonitas de lah. Mas posso dizer que rodei bastante, fomos em praticamente tudo que é lugar que o guia turistico indicava, e achamos TUDO uma merda, fora o Tiergarten, que é bonito, mas é soh um parque, nada mais. Alias, nao foi soh opiniao nossa, mas de mais um bando de gente que estava no mesmo albergue - gente de tudo que é lugar do mundo, diga-se de passagem, e que achou Berlim uma droga. Varias pessoas inclusive foram embora mais cedo do que tinham programado, indo pra fora de Berlim, ou continuando o tour da Europa que muitos estavam fazendo.
Neguinho pode espernear, me encher o saco, me mandar spam, me telefonar torrando a paciencia, me chamar de futil (quer dizer que ter uma opiniao ruim sobre um lugar significa ser futil?), achar erro de Portugues que eu nao cometi, dizer que eu sou feia, que eu tenho cara de peixe morto, que as lambretas italianas sao muito piores do que o metro alemao, pode dizer o que quiser. Continuo achando Berlim uma merda, e nao tenho a menor intençao de voltar.
E, na boa: prefiro mil vezes viver numa cidade de transito confuso e lambretas assassinas mas onde pelo menos as pessoas sorriem pra voce, puxam conversa, gesticulam se nao conseguem se fazer entender, comem muito bem, cantam enquanto trabalham ou caminham na rua, onde as crianças de colo nao franzem a testa pra voce (como nos vimos umas quatro vezes na rua e no metro, em Hamburgo e em Berlim: crianças DE COLO ou no carrinho FRANZINDO A TESTA e encarando sério. Medo.), onde a mulherzinha do metro diz "next stop, Barberini" pros turistas entenderem, prefiro tudo isso do que a organizaçao do metro alemao. Um pouco de caos às vezes é bom; pelo menos é mais divertido, e se a gente nao se diverte, entao tah vivendo errado.
Olha, vou dizer umas coisas assim basicas, as primeiras impressoes. Sei que generalizar eh feio e blah blah blah, mas as vezes eh util tambem, entao vou generalizar fazendo uma comparacao entre italianos e alemaes. Os alemaes...
- Sao incrivelmente mais feios que os italianos
- Se vestem incrivelmente pior do que os italianos
- Andam muito mais de bicicleta do que os italianos
- Fumam tanto quanto ou mais que os italianos (que idiotas)
- Bebem muito, o tempo todo, eh uma coisa impressionante
- Comem incrivelmente mal
- Tem uma vida muito mais cara; o preco da agua mineral eh tao alto que eu soh nao choro porque se choro me desidrato, e preciso de mais agua
- Falam a lingua mais feia do mundo, depois do Holandes (Espanhol nao conta, porque nao eh lingua, eh aberracao da natureza)
- Tem o z e o y trocados no teclado
As impressoes sobre Berlin:
FEIA. E nao eh feia soh porque eh um gigantesco canteiro de obras nao, eh porque eh feia mermo. Os predios que estao senso construidos sao horrorosos. As pessoas sao horrorosas, desleixadas, completamente molambentas, fedorentas. As ruas sao sujas. O metro funciona super bem, mas eh confuso pra quem nao conhece nada de alemao. NINGUEM FALA INGLES EM LUGAR NENHUM, NEM TEM NADA ESCRITO EM INGLES EM LUGAR NENHUM, NEM DENTRO DOS MUSEUS. A quantidade de gente estranha eh colossal: bebados, drogados, hippies, malucos, punks, punks, punks, invariavelmente acompanhados de cachorros de olhar doce, gente em estado de catatonia por alcool e/ou droga, sabe gente que fica parada em peh com o olhar perdido, sem fazer nada? Tem duzias.
O nosso albergue fica num bairro turco, entao as pessoas tem mais ou menos a mesma cara, mas indo pro centro voce comeca a ver gente de tudo que eh lugar. Muito, mas muito estranho ser servida num Burger King na esquina do famoso Zoologico de Berlin por uma chinesa de cara oleosa falando alemao. Eh uma lingua tao feia que qualquer um fica feio soh de abrir a boca pra dar bom dia em alemao. Mas os imigrantes, que nao tem a cara inexpressiva dos alemaes, embora normalmente sejam igualmente feios, ficam mais feios ainda falando essa lingua desgracada.
Eh uma cidade que dah pena. Decadente eh a palavra que me vem a (crase) cabeca. Me sinto dentro daquele livro da christiane f. drogada e prostituida. Algumas estacoes de metro tem toda a pinta de que viram abrigo de punks drogados durante a noite. E com aquele bando de gente feia e mal vestida, gorda, despenteada, sem nem um minimo de vaidade, tudo fica mais feio ainda. As mulheres tem cara e jeito de homem, e os homens sao sempre esquisitos - quando sao homens; a quantidade de gays eh impressionante.
Hoje rodamos a peh no centro um pouco, no Tiergarten, onde tem aquela famosa estatua dourada de um anjo. Sentamos na grama pra descansar e depois de um certo tempo notamos que soh tinha homem deitado na grama pegando sol... e muitos pelados, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Levantam, tomam uma chuveirada, lavam o bilau ali na frente de todo mundo, sem nenhum problema! Soh quando nos levantamos e todos comecaram a olhar pro Mirco eh que nos demos conta que provavelmente estavamos na secao gay do parque. Nada contra, mas gente flertando nua eh um pouco demais pra minha mente levemente conservadora...
Nao vimos absolutamente nada de interessante. O metro eh incrivelmente quente, fedorento, as janelas dos vagoes totalmente arranhadas a chave. A famosa Aleksanderplatz eh horrorosa, com aquela torre de TV horripilante no meio, e sempre toda aquela gente feia e esquisita se embebedando de cerveja pelos cantos e aqueles punks fedorentos pedindo dinheiro. Resumindo: eh tudo muito feio, e infelizmente nao podemos fazer nada: nosso voo parte sabado de manha de Lubeck, no norte da Alemanha. Amanha ainda dormimos aqui porque jah pagamos o albergo, mas sexta-feira cedinho vamos pra Lubeck, que pelo menos tem mar e tem cara de ser mais bonitinha...
Saimos de casa cedo pra ir a Pisa. Como chegamos cedo, paramos pra tirar umas fotos da torre torta - basico. Depois corremos pro aeroporto, que eh pequenininho e quase no meio da cidade (conseguimos ateh estacionar o carro na rua, pra nao pagar estacionamento), e de lah fomos com a Ryan Air pra Lubeck, no norte da Alemanha, no mar Baltico. Dali um onibus nos levou ateh Hamburgo, nos deixou na estacao de onibus, de lah pegamos o metro, complicadissimo, comemos uma coisa estranha na rua e chegamos ao albergue, de onde estou teclando agora. Estamos cansados e ainda nao vimos nada, ateh porque eh domingo e tudo eh meio parado, mas jah posso afirmar tres coisas:
- as pessoas sao moooooooooooito feiasssssssssss
- as pessoas sao MUITO estranhas
- as pessoas bebem MOOOOOITO
quando der escrevo de novo. beijos.