ultimamente

Bom, tudo confirmado. Sexta-feira que vem partimos pro Canadá pra visitar a eowynzinha, que não vejo há anos.

Mas além dessa viagem muita coisa anda acontecendo.

Com o fim do inverno os pedidos de couchsurfers começam a chover na minha inbox. Há duas semanas hospedamos um casal de americanas, sorridentes e gentis mas sempre estranhas, como todos os americanos que já acolhemos até agora. Resolvemos que fomos os últimos americanos que hospedamos. Não tenho paciência pra gente que vem dormir na minha casa e não me traz nem um cartão-postal, e, pior, nem deixa um testimonial no site depois. Ingratidão tem limite. Pra compensar, semana passada recebemos um canadense de origem chinesa que é absolutamente um a-mor. Passou três dias com a gente, foi à faculdade comigo assistir a uma aula sobre a máfia, me ajudou a entreter meus colegas de turma que vieram jantar aqui na quinta. Foi embora na sexta, com sua moto BMW comprada na Alemanha e com a qual ele gira pela Europa há três anos. No final da tarde de sexta chegaram dois alemães, um rapaz e uma moça, amigos e colegas de turma: estudam medicina na terra natal e agora estão fazendo quatro meses de internato em cirurgia em Roma. Superfofos, educadéeeeerrimos, curiosos, com aquele italiano arrastado cheio de erres guturais. Almoçaram na Arianna hoje com a gente e foram embora de trem pra Roma. Digamos que foi uma semana intelectualmente muito produtiva, visto que o nível das conversas foi sensivelmente mais alto do que a nossa média aqui no interior do Zaire.

Hoje e amanhã rolam eleições por aqui. Todas as pessoas racionais que eu conheço estão se cagando de medo porque a probabilidade daquele TRASTE do Berlusca voltar ao poder é muito, muito alta. Só pra dar um exemplo do nojo, semana passada, numa entrevista no programa do igualmente nojento e seu baba-ovo particular Bruno Vespa, ele estendeu a mão ao apresentador e disse, está sentindo esse cheiro? É cheiro de santidade.

Sem comentários.

Voltando à quinta-feira, foi um dos jantares mais divertidos que já demos. Meus colegas são muito legais e espertos, apesar de novinhos – eu não estaria sempre com eles na faculdade se fossem idiotas, logicamente – e demos muita, muita risada. Pra mim é particularmente divertido porque eu pra eles sou tipo uma musa inspiradora, sendo (bem) mais velha e vivida e ainda por cima estrangeira – além de interessantíssima, lógico, mas isso ça va sans dire. Tipo assim um role model. Acho estranho porque não sou role model nem pra mim mesma, e além disso tenho uma grande admiração por todos eles, então me sinto realmente honrada. Acharam a casa “maneiríssima” e não adiantou dizer que não é exatamente uma casa “de adulto”, séria, porque os móveis são todos IKEA, vocês sabem, e a decoração não é o que se pode chamar de convencional. Não com um poster do Tin Tin na sala e um mapa do Hobbit no corredor, com aquecedores coloridos e coelhos e patos de pelúcia dividindo espaço com os livros de fantasia e ficção científica na estante, com caixas de som em forma de flor. Mas, resumindo, foi uma noite ótima. Comemos feijão com arroz e farofa e conversamos até as duas da manhã. No dia seguinte amanheci rouca de tanto falar e dar risada.

Estou terminando The Lions of Al-Rassan, do Guy Gavriel Kay, pela terceira vez. Antes dele li The Last Light of the Sun, sempre dele, e que se passa no mesmo mundo. Ele manda MUITO bem, adoro. Depois desse não sei o que vou ler; talvez o livro estranho que o Jim (o canadense chinês) deixou pra mim, com uma dedicatória linda. Mas tenho muita coisa me esperando na estante e pretendo começar alguma coisa que eu sei que vou adorar, pra poder levar pra viagem sem correr o risco de ficar empacada com um livro chato e nenhuma outra alternativa literária. Porque pra mim isso é absolutamente mor-tal.

Maaaaaaaaaaasss… Por último, mas não menos importante, quinta que vem é o aniversário dessa paca que vos escreve. A viagem vai ser comemoração mais do que suficiente, mas pretendo levar brigadeiros pra faculdade – sabe como é, festinha na escola nunca é demais. Como sempre, lembro-vos que a paca simplesmente a-do-ra presentes.

apidêite universitário

Isso aqui tá uma modorra só, né não. Mas é que não tem nada de interessante acontecendo, nada do qual valha a pena falar.

Mas eu vou falar assim mesmo, nem que seja só pra encher o buraco.

Falei das provas da faculdade, mas não entrei em detalhes. O primeiro detalhe é o resultado da terceira prova, de Informatica Generale I: 19/30, colando. Porque a parte de múltipla escolha era ridícula, tipo “o que acontece quando você clica numa célula de Excel? a) ela fica mais escurinha b) ela fica amarela c) a borda fica mais escura d) aparece uma cruzinha”, mas a parte discursiva pedia a descrição dos módulos de um sistema operativo. E como o meu interesse por computadores é o mesmo que por funções do segundo grau, é lógico que eu não tinha estudado nada. Como também não freqüentei as aulas, porque o horário era o mesmo de uma aula do segundo ano, não tinha nem a minha supermemória pra me ajudar. Então colei – eu e todo mundo; a sala estava uma zona. Mas como também não tenho muita paciência com prova, e normalmente sou a primeira a sair, em vez de esperar a alma gentil ao meu lado terminar de copiar toda a sua resposta gigante da folha de caderno escondida entre as coxas e a cadeira preferi escrever só os pontos mais generalizados que ela fez o favor de me ditar antes de escrever a sua própria resposta, e não dei mais explicações. Fui mesmo a primeira a sair e voltei pra casa lendo FotR no ônibus.

A prova de Linguistica Italiana II foi um porre porque a professora é chatíssima, devagar quase parando, com uma vozinha de garotinha (uma coisa que eu ODEIOOOOOOOOOOOO) e a mania de rir dos seus próprios comentários, que logicamente não são engraçados. Em vez de fazer meia dúzia de perguntas simples e mandar o examinando pra casa, ela ficou com cada estudante PELO MENOS vinte minutos. Considerando que éramos muitos, muitos mesmo, a coisa se prolongou até as seis e meia da tarde (começou às onze). E metade dos alunos foi deslocada pro dia seguinte. O mais legal é que se você for esperto nem precisa estudar, porque você passa o dia inteiro sentado numa sala ouvindo a professora fazer mais ou menos as mesmas perguntas a todo mundo, e as mesmas respostas de todos os alunos (aqueles bem preparados, lógico). De tanto ouvir, você acaba aprendendo, mesmo que não tenha estudado porcaria nenhuma. Eu tinha freqüentado metade das aulas (desisti da outra metade quando percebi que eram todas rigorosamente iguais umas às outras, e ainda por cima exatamente idênticas aos capítulos do livro, exemplos iguais e tudo) e também tinha estudado, porque vocês sabem que eu sou doente e gosto de gramática, lingüística, semântica etc. Ela não dá trinta pra ninguém. Tudo o que ela perguntou eu respondi, só não soube dar um exemplo de uma classificação idiota de um parâmetro de textos argumentativos, mas mesmo assim fiquei feliz com o meu 27. Não se esqueçam que eu sou a única que trabalha de verdade na turma inteira; os poucos colegas que têm emprego trabalham só nos fins de semana, servindo pizza. Então tá ótimo.

A prova de Linguistica Generale foi ótima. O professor é um amor mas é muuuuuuuuuuuuuito confuso. Mas o livro que ele escolheu é ótimo e eu AMO a matéria, então foi um prazer estudar. Tirei 26 na prova e resolvi tentar aumentar a nota fazendo a prova oral. Pra isso li o livro extra do programa, Patterns of the Mind, de Jackendoff, um dos cobras da lingüística moderna (mas um patamar abaixo de Chomski, logicamente). O livro é MUITO, MUITO, MUITO maneiro. Uma das coisas mais legais que eu já li, e não é porque eu sou doente e gosto desses assuntos bizarros. É escrito MUITO bem e se lê como um romance, praticamente. Fala-se do processo da fala, de como as crianças aprendem a falar, dos experimentos que se fazem pra provar esse ou aquele ponto, das afasias estranhas, da American Sign Language e de como o seu estudo ajudou a compreender o conceito de gramática mental, entre outras coisas. Recomendo altamente, mesmo que você tenha pela lingüística o mesmo interesse que eu tenho sobre a descrição dos sistemas operativos.

Mas essa lenga-lenga universitária toda foi só pra introduzir o conceito que vocês já tão carecas de saber, que é o quão merda é o sistema educacional italiano. Já começa pelo maldito libretto, a caderneta, onde o professor anota a notinha do aluninho. Não existe isso em nenhum outro lugar do mundo, até onde eu sei, e os alunos italianos que vão estudar em outros países da Europa dentro do projeto Erasmus (do qual eu não posso participar porque não sou cidadã européia, senão eu não estaria mais aqui, lógico) são sacaneados lindamente por isso. Depois passamos pro fato de que quase todas as provas são orais, o que consome uma quantidade incomensurável de tempo e de paciência e de nervos. Não meus, porque eu não fico nervosa com prova, mas quase todo mundo fica. Temos também o fato de que os professores são todos velhos, porque vocês sabem que italiano não morre nunca, vive pra sempre, e também não larga o osso, de modo que todos os cargos importantes em todos os setores da sociedade são ocupados por velhos, em sua maioria imensamente desatualizados e retrógrados. Também dá-se uma importância imensa às notas e às provas, coisa que todo mundo sabe que quer dizer muito pouco. Vide o exemplo da prova de Linguistica Italiana acima: eu teria tirado 27 mesmo que não tivesse estudado, de tanto ouvir as respostas dos outros.

Junte tudo isso e você tem um fenômeno tipicamente italiano: a síndrome do libretto. Você vai lá, faz a sua prova, o professor antes de decidir a nota pega o seu libretto e o examina com cuidado. Se as notas forem todas altas, o professor dificilmente vai te dar uma nota baixa, mesmo que você a merecer, pra não estragar o libretto. E não sou eu que estou dizendo: os próprios professores dizem! “Olha, você na verdade mereceria um 25, mas vou dar 28 pra não estragar o libretto”. Suuuuuuuuuperjusto. O professor de Linguistica Generale chegou ao cúmulo de se recusar a “verbalizzare” (anotar no libreto) o 21 de uma colega moldava, porque ela só tinha 30 em todas as provas anteriores. Ela não tinha estudado e não queria fazer a prova oral pra aumentar a nota, nem queria fazer a prova de novo na próxima chamada, em junho, e estava contente com o 21, bastava ter passado na prova. Ele se recusou terminantemente e ela vai ter que tentar de novo em junho, junto com todo mundo que não passou na primeira vez ou que não teve tempo ou vontade de estudar pra primeira chamada. Tem futuro um país assim? (a pergunta é logicamente retórica).

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A campanha eleitoral já começou, pras eleições em abril, e como sempre é uma baixaria só. Eu, que já quase nunca ligo a televisão, passei a NUNCA ligar a televisão, porque só de ver a cara do Berlusca tenho ânsia de vômito. Então estou completamente desatualizada sobre o assunto, não me perguntem nada.

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Estamos programando as próximas férias, no feriado de primeiro de maio, que aqui vira um feriadão com o 25 de abril (que nunca consigo lembrar o que é). Tínhamos pensado em ir a Jerusalém com Gianni e Chiara, mas quando ficamos sabendo que era uma excursão organizada pelos padres que a Chiara freqüenta achamos melhor mudar de rota: temos mais medo do risco de ouvir não sei quantos rosários por dia no ônibus do que de potenciais atendados. Então agora estamos procurando passagem pro Canadá, pra passar uma semana com a eowyn (que pra mim vai ser sempre eowyn e nunca Andrea, não tem jeito). Mais updates depois.

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Vocês sabem que eu tenho tendências fanático-literárias, e minhas bibliopaixões vão e vêm tão ciclicamente quanto as marés. Estou num revival total de Tolkien. Atualmente estou morando dentro do RotK. Além disso trabalho com os filmes rodando em loop infinito no DVD, desde que comprei a versão extended. E ainda por cima estou matando as aulas de inglês na faculdade pra freqüentar um curso sobre Tolkien e CS Lewis na universidade da irmã da Chiara. O detalhe é que ela estuda teologia e a faculdade fica atrás da Basilica Inferiore de Assis. O professor é um franciscano argentino muito sério que nunca ninguém tinha visto rir, até o momento em que eu disse que o meu cachorro se chama Legolas. O curso na verdade tem um nome tipo glória, fé e não sei mais o quê em Tolkien e CS Lewis, mas não importa: só poder ouvir alguém (um alguém muito preparado; ele escreve artigos e participa dos congressos no mundo inteiro) falando dos meus livros preferidos EVER (e de tabela do mundo onde eu gostaria de viver) é uma bênção (no pun intended). Somos só 5 alunos, uma das quais uma freira de nacionalidade não definida que nunca ouviu falar dos livros nem viu os filmes mas gostou do nome do curso (exatamente o meu oposto), um nerd feio e um nerd com uma tatuagem em élfico MUITO MANEIRA e enorme no antebraço direito. Arregalei os olhos quando vi, mas ele foi embora antes deu poder pedir pra ver de perto. Jamais faria uma tatuagem em mim mesma, mas se tivesse que fazer seria uma daquelas.

tédio

Imaginem a cena: uma paca bem manquinha que vocês conhecem bem está atualmente relendo LotR pela 14a vez, entre outras coisas porque conhecendo a história praticamente de cor a compulsão de largar o trabalho pra lá pra saber o que acontece na próxima página é estatisticamente, hm, 2 (compulsão literária zero não existe no meu planeta, vocês sabem). A paca está, nesse exato momento, vesguinha de tanto dar copy-paste no último manual da maldita máquina que poda videiras, uma tradução que tem que ser terminada HOJE pra poder estudar Diritto Internazionale amanhã o dia inteiro (a prova é na quinta). A paca está de saco cheiíssimo e não agüenta mais ouvir falar de videira ou de grupo de corte ou de joystick ou de trator ou de dead man’s switch. O que faz a paca pra se distrair um pouquinho e repousar os olhinhos?

a) Corrige o dever de casa de italiano da mãe
b) Googla “Haldir is gay”
c) Bota a segunda parte de TTT em loop eterno no DVD (a primeira parte deu problema com o áudio e não deu pra queimar)
d) Passa aspirador de pó na casa toda e depois pano com Mastro Lindo para pavimentos frios
e) Todas as respostas acima, não necessariamente nessa ordem

Um Bacio Perugina pra quem acertar.

yo hablo

Pronto, me rendi. Não acho mais o espanhol uma aberração da natureza. Estou adorando as aulas, apesar do ritmo ser lentíssimo porque obviamente nem todos os meus colegas têm a minha facilidade pra línguas, nem mesmo os de língua materna da família do latim. A professora é uma figura, amiga da Begoña, engraçadíssima, um amor. Além das 6 horas semanais de espanhol na faculdade (das quais perco a metade porque cai bem no horário do curso dos policiais em Foligno), faço 45 minutos com a Begoña às sextas-feiras, depois de 45 minutos de conversa em português pra ela não perder a prática.

Lendo o La Sombra del Viento me dei conta de que estou gostando MESMO da língua, descobrindo jogos de palavras, modos de dizer, combinações de sons que eu estou amando aprender. Já superei a fase de ler em voz alta pra me familiarizar com os fonemas e agora já cheguei ao ponto de falar sozinha em espanhol no carro pra treinar a entonação. Cês vão ver como daqui a pouco eu vou estar hablando que é uma beleza.

a semana

Essa semana foi meio bombástica.

Começou com a chegada da Newlands no domingo. O tempo estava uma verdadeira caca e com a neblina não se via absolutamente nada. O vôo dela de Londres foi então desviado pra Roma, de onde ela veio de ônibus.

Não preciso nem dizer que a semana foi ó-te-ma, rimos muito, dormimos, lemos, fofocamos, não fizemos nada, fizemos turismo, fizemos compras (ela comprou uma jaqueta linda. Linda. Hohoho), ela tirou fotos, apertamos o Legolas. Foi absolutamente lindo poder tirar essa semana de férias sem ter que pedir a chefe. Simplesmente comuniquei aos meus clientes que eu não estaria disponível pra trabalhar durante esses dias. Eu tenho realmente a melhor profissão do mundo.

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A outra notícia bombástica foi o suicídio do Roberto, um amigo do Mirco. A gente não via o Roberto desde o casamento dele, no ano passado (ou retrasado, já não lembro), e no funeral o Mirco ficou sabendo que ele andava supersumido do circuito barzinho-restaurantes da zona.

A história dele é a seguinte: o pai começou do nada e fundou uma empresa que produz pré-fabricados, ao ponto que praticamente todas as empresas aqui da zona funcionam em galpões que eles fizeram. Têm filiais em Roma, Milão e em outro lugar que não lembro. Abriram uma subsidiária que constrói casas e apartamentos. Têm quase mil funcionários. Patrocinaram a Eurochocolate há dois anos e patrocinam vários eventos locais. Tipo assim, você tá rodando em uma estrada qualquer na Itália e passa por baixo de um viaduto e vê o nome da empresa no bloco de concreto, sabe, porque foram eles que construíram. Estamos falando de MUITO dinheiro. Pois bem, ele é o único filho homem, e como o pai é um daqueles patriarcas à moda antiga, control freak total, proibiu terminantemente as duas filhas de sequer botarem os pezinhos na empresa, e o Roberto foi meio que assumindo a coisa conforme o pai ia envelhecendo. Estudou Economia e Commercio, morou em San Diego pra aprender inglês, viajava pra caramba, dava altas festas na colina da família perto de Assis (eles têm uma propriedade ali que ocupa uma colina inteira; foi onde ele se casou, aliás), conhecia a cidade inteira, fazia mergulho no Mar Morto, rodava centenas de quilômetros de bicicleta com o Moreno, colecionava CDs de jazz, lia bastante, desenhava muito bem.

Era um cara legal. Nos últimos tempos a gente andava com uma certa implicância porque ele só ligava quando precisava de um favor – ajuda do Mirco pra programar a lua-de-mel na Austrália, deixar o conversível no forno da oficina pra secar depois que passou a noite no gramado de casa e os sprinklers molharam tudo, pedir uma ferramenta particular pra um conserto especial. Mas não era má pessoa. Foi um dos primeiros amigos do Mirco que eu conheci, e o único que foi morar sozinho – e logicamente o mais interessante. Conheci várias namoradas dele, inclusive uma de Foligno que era a minha preferida e que eu torci pra que fosse a mulher da vida dele pra eu finalmente ter uma amiga decente aqui no interior do Cambodja. Ele acabou casando com uma psicóloga chatinha que ele já tinha namorado muitos anos atrás, mas a coisa terminou quando ela foi estudar no norte. Ele sempre foi apaixonadíssimo e correu atrás dela por anos a fio, até que ela voltou aqui pra roça e eles voltaram, e finalmente se casaram.

O lance foi que o negócio todo foi premeditadíssimo. O Moreno tava trabalhando na segunda, e duas horas antes da hora da morte o ônibus que ele estava dirigindo foi fechado pelo carro do Roberto, que ia a mil por hora em pleno centro da cidade, quase causando um acidente. O Moreno buzinou, o Roberto olhou mas não viu, e saiu voando. Depois ficamos sabendo que ele tinha preparado tudo de modo que todo mundo o deixasse em paz pra fazer o que ele tinha que fazer: inventou um almoço de negócios que nunca existiu, esperou um momento em que se liberasse uma das casas da família (a mãe, divorciada, estava no Brasil e a irmã maluca, que bebeu e deu vexame no casamento, estava abrindo um restaurante na Índia), foi pra lá sozinho e se enforcou. Não deixou bilhete, testamento, carta, recado, email, blog, diário, nada.

O detalhe mais horripilante é que a mulher dele está grávida de seis meses.

Então tipo assim: ele estava se tratando pro que eles aqui chamam de “esaurimento nervoso”, a.k.a. estresse agudo, mas ninguém sabe direito o porquê da coisa. Talvez porque o pai é um pentelho que nunca se contenta com nada, que é a hipótese mais provável. Já começam a circular histórias de que ele foi diagnosticado com um tumor no cérebro, outros dizem que era esclerose múltipla. Eu particularmente não acredito em nada disso, e acho que ele simplesmente cansou de tudo mesmo, e que a família agora aparece com esses problemas de saúde porque suicídio ainda é uma coisa feia que deve ser justificada sempre que possível. Mas não posso dizer com certeza. O que a gente fica chocado é que nem o amor pelo filho e pela mulher foram suficientes pra fazê-lo mudar de idéia, então não dá nem pra imaginar o nível da angústia que ele tava carregando no peito. E apesar do estresse ele foi visto no domingo anterior, na festa de S. Antonio, se pavoneando pela praça contando pra todo mundo que estava pra virar pai. O Peppe, outro amigo do Mirco (também casado com uma chata de galochas que também está grávida), cruzou com ele no consultório do obstetra e achou que ele parecia superfeliz. O Moreno, que também está se mudando, foi à loja de móveis verificar os últimos detalhes da cozinha e o cara que o atende disse que os móveis pra casa nova do Roberto estavam todos prontos, só esperando ele mandar entregar e montar.

Bom, ninguém nunca vai saber o que aconteceu de verdade.

Mirco disse que o funeral, que foi na basílica de Santa Maria, literalmente parou a cidade. Tipo o Rio no dia do show do U2 no Riocentro, lembram. A igreja entupida, uma muvuca de gente lá fora, trânsito parado. A mulher dele completamente zumbi, o pai impassível.

Eu sou solidária com suicidas. Entendo o gesto, e acho que todo mundo já passou por situações em que seria tão mais fácil acabar com tudo logo de uma vez e foda-se o mundo que eu não me chamo Raimundo. O problema é que uma grandíssima sacanagem com quem fica; é o gesto mais egoísta que existe. Já pensou essa criança (que eu nem sei se é menino ou menina) quando crescer? Já vejo o garotinho ou a garotinha, a cara do pai, perguntando pra mãe, mas o papai se matou mesmo sabendo que você estava grávida de mim? Será que ele não gostava de mim o suficiente? Não consigo imaginar uma situação mais barra-pesada.

O Mirco, que é um resolvedor de problemas nato, anda de péssimo humor, como sempre acontece quando se depara com um problema sem solução. Mais ou menos como quando eu tenho crise de enxaqueca: não existindo nada que ele possa fazer pra me ajudar, ele fica puto. Está intragável. Hoje temos jantar gay aqui em casa e espero que ele dê uma alegrada. Mas eu também não paro de pensar na coisa, ainda que ele não fosse meu amigo íntimo. É um evento muito, muito drástico.

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No mesmo dia do suicídio, à noitinha, nasceu a Giorgia, filha do floricultor com a siciliana. O floricultor em questão fazia parte do grupo de amigos que foi à Austrália com o Mirco em 99 – o Roberto também.

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E anteontem o governo caiu. É uma coisa freqüente. Eu lembro que quando estava estudando italiano o nosso professor um dia comentou que na Itália toda hora tem eleição, porque os governos não duram. Pra vocês terem uma idéia, o último governo da direita, aquele do mafiosão Berlusca, foi o único que terminou o mandato em não sei quantas décadas (se não me engano foi o único desde a criação da República). Esse mal tinha começado e já se esperava que caísse há muito tempo; com as dissidências internas a coisa ficou impossível. A política italiana é muito parecida com a brasileira: cada um faz o que é bom pra si mesmo e não pros interesses do país, as leis são feitas sob medida pra tirar da reta a bunda dos políticos sujos, tem envolvimento com organizações criminosas, os debates são todos feitos em cima de ofensas pessoais e não em propostas ou diferenças de opinião, e principalmente um político de uma facção é completamente incapaz de aceitar qualquer idéia do outro lado, mesmo que seja uma boa idéia que resolve um problemão do país. Lógico que assim fica difícil. Esse governo, que não fez o que cumpriu mas também não foi de todo ruim e pelo menos não tinha um primeiro-ministro envolvido em OITO processos de associação mafiosa, praticamente passou o mandato inteiro pedindo o chamado “voto de confiança” do Senado. Nem a própria esquerda votava a favor das decisões do governo, então eles recorriam a esse negócio do voto de confiança: você não aprova o que eu tô fazendo, mas pelo menos deixa eu tentar. Tava na cara que não ia durar muito, e acho que resistiu até tempo demais.

O problema agora é decidir se estabelecer um governo “técnico”, que assuma o leme até as próximas eleições, ou partir logo de cara pra novas eleições, sem mudar a lei eleitoral, que é complicada e ridícula e logicamente favorece a direita. Claro que o Berlusconi tá suuuuper em alta, apesar da idade avançada, e não tem a menor intenção de largar o osso. E o perigo dele voltar é grande, muito grande. *inserir a trilha sonora de Jaws*

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É isso aí, meus queridos.

2008

Esse ano aparentemente começou bem. Tem várias coisas legais acontecendo.

– Newlands vem me visitar domingo que vem. Êeeeee!

– Minha orquídea highlander (a que a Arianna me deu morreu, mas essa resistiu bravamente) está florindo de no-voooo. A moça da floricultura disse que tem que dar muita sorte pra bicha dar flor logo no mesmo ano.

– Tirei 7/10 na prova de Linguistica Generale, apesar de só ter estudado três horas, junto com a romena (que, por sinal, não passou).

– Tenho tido MUITO trabalho, mas tô conseguindo organizar meu horário direito e inclusive devagarinho estou aprendendo a dizer não a trabalhos chatos que consomem mais tempo do que deveriam.

– A liqüidação na Zara está ótima. A moda esse ano é feia, mas catando sempre acham-se coisas legais.

– Meus livrinhos novos estão tão felizes dentro da minha estante da IKEA que vocês nem sabem.

A única coisa chata até agora é que dois pacotes da Amazon foram parar no famoso Limbo dos Correios Italianos, de onde, segundo reza a lenda, nada jamais conseguiu escapar. Minha esperança é o marido da gerente do banco onde o Mirco tem conta, que é carteiro. Pode ser que mexendo uns pauzinhos aqui e ali ele consiga localizar meus filhinhos.

Bom fim de semana!

bleh

Bom. Nosso Natal foi tranqüilo, na casa de uns napolitanos amigos dos nossos hóspedes em Hackensack, NJ. Acabamos indo a NY só um dia, porque estávamos cansados e não estávamos com saco. Lógico que esse dia foi o único em que choveu. Além desse dia de tour fomos jantar em Manhattan na véspera da nossa partida com Marco, o amigo do Mirco, e sua namorada Sholay. Esses dois são o seguinte: ele é entregador de pizza, e ela é go-go girl. Juro. E vocês têm que ver a casa que a garota comprou há alguns anos – piscina, um quintal imenso, cozinha nova na casa e no basement, dois cachorros lindos, uma Lexus e uma Mercedes. Eles são muito engraçados juntos; ela é muito simpática e esperta, e dinâmica, coisa que eu adoro. Nada de firula, de nove-horas, de fru fru, de frescura, a garota é vapt-vupt. Gostei.

Revi minha amiga Meredith, embora rapidamente; malhei com meus DVDs novos e só engordei meio quilo (que já perdi de novo); compramos mooooito nas ofertas; rodamos meio NJ catando Timberland pros amigos do Mirco, porque aqui custam uma fábula; fiz um verdadeiro bibliocídio na Borders.

O reveilão foi no avião, e com a Alitalia falindo nem uma amostra grátis de prosecco rolou, ô gente zura. E ainda por cima DOZE horas plantados em Malpensa, o aeroporto de Milão, por um erro na reserva e má vontade da Alitalia que não quis nos transferir do vôo das oito e quinze da noite pro das duas da tarde, apesar de ter muita vaga no teco-teco que faz a linha Malpensa – Perugia.

Trabalhei em Hackensack e no aeroporto e ainda tenho muita coisa pra fazer. Estou cheia de trabalho, cheia, cheia, cheia. Semana que vem volto às aulas na faculdade, e em fevereiro tenho uma maldita turma em Foligno que acordo todo dia me arrependendo de ter aceitado.

E é isso. 2008 começou e tal, mas como todo mundo sabe nada muda, tudo é igual.

pondering

Os últimos dois posts da Barbara me fizeram pensar.

No caso do mizifio, fiquei pensando na coisa porque uns dois dias antes de ler o post peguei o ônibus de manhã cedo pra uma aula excepcionalmente transferida pra manhã. Como eu sempre pego ônibus em horários diferentes, e quase sempre não-rush porque dificilmente temos alguma aula antes das dez, nunca reconheço nenhum dos meus colegas passageiros. Mas toda sexta eu pego o mesmo ônibus das 8.13, e além de entupido, está sempre entupido com as mesmas pessoas. Nessa vez sentei ao lado da garota com gorro branco de pom-pom preto, que sempre usa o mesmo gorro, mesmo casaco e mesmas luvas, e sempre senta no mesmo lugar. No ponto depois do meu subiu um negão que também sempre pega o ônibus no mesmo horário, com seu carrinho de compras estilo feira carioca. Sentou em frente a nós, tirou o celular do bolso (imigrante ADORA um celular, puta que pariu) e começou a falar.

Juro que minha primeira reação foi uma careta. Céus, que língua será essa, pensei com meus botões. Deve ser neandertalês do sul, arcaico, ainda por cima. Lembrei imediatamente daquele clip do filme South Park, sabem, Kyle’s Mom is a Bitch (que eu tenho aqui no computador e revejo sempre que estou de mau humor. Fico rindo sozinha). Naquela parte que as crianças de diferentes países do mundo cantam em coro, cada um na sua língua estilizada. Então, quando as crianças africanas cantam as palavras soam exatamente como os sons dos tambores. Bom, o negão não parava de falar, e ainda por cima foi se alterando e começou a berrar no telefone, e todos os passageiros se viraram pra assistir, e a garota pom-pom ao meu lado segurava o riso, a doméstica russa ao lado dele foi ficando assustada, o cara gritava, gritava, e eu só pensando que língua mais primitivinha, socorro. E foi aí que ele ficou muito, mas muito puto com quem quer que fosse o seu interlocutor telefônico, e consegui entender a seguinte frase:

– Fock your sistah!

Fez-se a luz. Era inglês. Pelas barbas do profeta, era inglês! Deformado até o infinito, mas era. Depois que entendi de que língua se tratava comecei a entender outros pedaços isolados da história – aparentemente a tal sistah da pessoa com quem ele estava no telefone tinha pedido dinheiro emprestado (môni) e não tinha devolvido.

Que tristeza. Tudo bem que línguas mudam, absorvem, são absorvidas; entendo o processo e é perfeitamente normal, natural e inevitável. Mas não por isso deixa de doer no ouvido. E fiquei pensando no quanto eu sou feliz de falar uma língua que não é primitiva quando falada direito (deixa quieto o office-boy paulistano, que ultimamente tenho ouvido muito em imitações que humoristas fazem na TV e minha mãe manda por email). Primitivo sucks.

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Por outro lado, o outro post da Barbara fala de ser considerada estranha porque lê. Eu também sempre fui, e aqui a coisa ainda é pior, se é que isso é possível. Digo pior não em números, porque acho que em termos absolutos o italiano lê tão pouco quanto o brasileiro. Mas é pior porque o Brasil tem a desculpa de ser pobre e fodido; o italiano é europeu, cacete! Não tem justificativa!

Mas a minha pinimba com o post vem do fato que eu acho terrível ter que usar a cor do meu passaporte como desculpa pra ser diferente. Quando eu digo que não sou batizada, que não gosto de tomate cru, que não como cérebro de carneiro, que gostaria de ter ralo no chão da cozinha pra lavar a coisa direito, as pessoas me olham estranho e dão logo a culpa ao fato de ser brasileira. Mas que vão todos praquele lugar! Tenho ou não tenho o direito de ser o que eu bem entender simplesmente porque sou assim, porque PREFIRO ser assim? Não acho nada legal ter que usar minha nacionalidade como justificativa. Acho um porre. Porre, porre. Inclusive porque eu, como a Barbara, não sou a carioca típica, nem a brasileira típica. Também não sou italiana. Eu não sou nada. Eu sou eu. O fato de ter nascido no Brasil é puramente acidental, não depende de mim, não fui eu que escolhi, e tem tão pouco de Brasil, ou de qualquer outro lugar, dentro de mim que se existisse um passaporte branco, pra quem não se identifica com lugar nenhum, eu adotaria numa boa. Sem problemas. Sem remorsos. Sem estranheza. Sem problema.

Eu levo dentro de mim um pouco muito pequeno do Rio, um pouquinho de Valença, um tico de Itália, um farrapo de cada lugar que visitei, um fiapo (pensando bem, um pouco mais que um fiapo…) de cada livro que li, um retalho de cada conversa que escutei, de cada filme que vi, de cada aula à qual assisti (cá pra nós, vai fazer concordância verbal bem lá na casa do chapéu, hein), de cada aula que dei, de cada matéria que estudei, de cada música que ouvi, de cada coisa que comi. Eu sou isso aí.