roncadores, beware!

Por causa da sensacional repercussão do assunto spray anti-ronco, vamos desenvolver melhor o argumento.

O ronco é, na maioria dos casos, causado pelo atrito de estruturas das vias respiratórias superior, que resulta em barulho. A causa principal desse atrito anormal é uma lubrificação natural insuficiente. Uma outra causa comum do ronco é a obesidade, que pressiona estas mesmas estruturas, diminuindo o diâmetro das vias aéreas e coisa e tal. Muitas vezes o ronco vem acompanhado de apnéia do sono, ou seja, curtas interrupções da respiração, imediatamente seguidas de um roncão daqueles tão altos que é capaz de um sismógrafo conseguir registrar.

Quando perguntei ao Aluno Endocrinologista onde eu podia levar o Mirco pra ver esse lance do ronco, foi por causa da apnéia também, que eu não tinha certeza que um otorrinolaringologista era capaz de tratar. Aluno disse que sim, que um bom otorrino resolve o ronco, qualquer que seja sua causa. Ele deu três possíveis soluções pro problema, no caso de um ronco normal, sem necessidade de intervenção cirúrgica.

O primeiro é o que eu batizei de Método da Princesa e a Ervilha: consiste simplesmente em costurar algo volumoso pero no mucho, tipo um par de bolas de golfe, nas costas do pijama do roncador. Como a posição de barriga pra cima é a que mais favorece o ronco, as bolinhas fazem o que normalmente os pobres companheiros dos roncadores fazem: impedem o roncador de ficar naquela posição. Em vez de eu acordar com o ronco e cutucar o lanterneiro pra ele virar de lado, a bolinha não deixa ele ficar nem dois segundos de barriga pra cima, porque incomoda. Só que no nosso caso isso não funciona, porque o Mirco não dorme de pijama, mas com a camiseta limpa que vai usar por baixo da camisa no dia seguinte. Costurar e descosturar bolinhas todo santo dia é inviável, e por isso o método foi imediatamente descartado.

O segundo são aqueles adesivos que os atletas agora gostam de colar no nariz. Não tem nenhuma substância química envolvida, a ação é, novamente, puramente mecânica: através da sua estrutura muito bem bolada, o adesivo exerce forças mínimas sobre a cartilagem do nariz, abrindo muuuuuuuito ligeiramente as narinas e facilitando a respiração. Aluno Endocrinologista disse que uma vez experimentou o adesivo, porque achava que era uma coisa miraculosa estilo Facas Ginsu, e ficou impressionado como funciona. Nesse caso, se o roncador tem deficiência na parte alta das vias respiratórias, o adesivo pode ajudar.

O terceiro método é o tal spray, que ele disse que sabia que existia e funcionava mas não conhecia o princípio químico. A mulher da farmácia disse que não tem nada de estranho, simplesmente óleos essenciais que lubrificam as partes que entram em atrito, evitando o rumor. Paguei os 20 euros muito desconfiada e pensando em qual livro poderia comprar com esse dinheiro, mas não é que a coisa funciona? Você dá três borrifadas no fundo e no alto da garganta antes de dormir, depois de ter escovado os dentes e bebido água, espera vinte segundos e depois engole. E voilà, seu roncador parou de roncar. Aluno Endocrinologista ainda me arrumou, dias depois, um vidrinho de outro tipo de produto, que se injeta no nariz e se chama Ronfnyl, produzido ou distribuído, não sei direito, pelo laboratório italiano Geymonat, mas tem o mesmo mecanismo de ação. Funcionou do mesmo jeito, mas é fedido, enquanto que o spray pra garganta, que se chama Snoreeze, do laboratório inglês Passion for Life, tem gostinho de menta.

Lembrem-se de que apnéia do sono é um dos fatores de risco de morte precoce por cardiopatia em homens, e esses produtos não agem contra a apnéia, por isso, se o seu roncador suspende a respiração por breves períodos enquanto dorme, otorrino nele.

bologna fiere

Acordamos cedo e partimos na direção de Bologna pra tal feira de produtos pra consertar carro, caminhão, essas coisas legais. O dia tava esquisito, abafado, um calor desagradável. A estrada pra Emilia-Romagna, região onde fica Bologna, é TERRÍVEL. Deveria ser linda, porque atravessa vales cobertos de florestas. São quilômetros de estrada alta, como um viaduto longuíssimo, atravessando os Apeninos Tosco-Emilianos (entre a Toscana e a Emilia-Romagna). O visual é deslumbrante, mas a estrada é terrível, terrível, terrível. É o pavor dos caminhoneiros. O asfalto é esburacadíssimo, no melhor estilo Rio-Santos. Tudo está em obras há ANOS, então há milhões de desvios, tratores, luzinhas; zilhões de túneis, lógico, e, sendo domingo, uma infinidade de morrinhas. A coisa mais ridícula é que é uma estrada importantíssima, já que é a principal ligação entre quem está abaixo dos Apeninos e quem está acima. Se quiser evitar essa buracação toda, tem que ir até Florença e dar uma volta do cacete. Cesena, que fica do outro lado dos Apeninos, é um ponto rodoviário estratégico, e pra chegar lá tem que passar por esse viadutão todo. Mas é realmente uma pena, porque é uma área muito bonita. Já falei dela aqui, inclusive, quando fomos visitar a Fran, ainda morando em Faenza na época. Muitas casonas maneiríssimas de pedra, abandonadas no alto das colinas; cidadezinhas de 3 casas, com nomes curiosos; crianças tomando banho de rio. Aliás, falando em rio, ô rio pra dar voltas e mais voltas, esse Tiber! Toda hora a gente passa por cima dele. Vai meandrar assim na China.

A feira foi mais ou menos como no ano passado, embora menos interessante. A coisa legal é que, apesar de ser um assunto tradicionalmente masculino, há muitas mulheres no ramo. E não falo de pin-ups contratadas pra ficar atrás do balcão vendendo ferramentas das quais ela nunca ouviu falar, mas de proprietárias das empresas, ou filhas ou esposas do dono, que entendem muito do riscado e falam de parafusos, filtros de ar, fornos pra pintura de peças e equipamento de soldar com a maior desenvoltura. Legal, isso. Encontramos inclusive um stand de uma empresa brasileira de kit pra consertar pneu. Os meninos, muito simpáticos, confirmaram a nossa teoria de que domingo, sempre o último dia da feira, é o dia dos caçadores de brindes e de gente que leva a família pra olhar os caminhões e comer chocolatinhos de graça. Nós também caçamos brindes: voltei pra casa cheia de sacolas de plástico, que nunca são demais; algumas de pano, ótimas pra fazer compras; chaveiros, bonés, canetas, bloquinhos, pastas de papelão e outras coisas do gênero. Tudo aquilo me fez lembrar do primeiro congresso internacional a que fomos durante a faculdade, um mundial de Cardio no Riocentro que pra nós, pobres segundanistas, só serviu mesmo pra comer de graça e pegar tanto post-it e bloco de papel que até hoje eu escrevo com canetas da Schering-Plough, em folhas timbradas da Pfizer. E olha que eu me formei em 2001 e não cheguei a exercer.

Saímos da feira às três da tarde e fomos passear pela cidade. Só que tava realmente muito calor, e aquela abafação tirou toda a nossa vontade de bancar o turista. Àquela hora não havia um só restaurante aberto, e o que nos salvou foi, shame on us, o McDonald’s da estação. Comi uma saladinha com frango grelhado e molho de iogurte, chá de pêssego e um Chicken McNugget que o Mirco não conseguiu matar. Notei que, por causa dos mochileiros estranhos, dos drogados pseudo-hippies que vivem nas ruas e dos ciganos filhos da puta (ô raça miserável!), os banheiros são trancados, como no Rio, e pra lavar as mãos e fazer xixi tem que pedir a chave pra gordinha que limpa o chão. Mas tudo bem; de estômago cheio, voltamos pro carro e viemos embora.

Ainda tivemos forças pra jantar na festa do santo padroeiro de Castelnuovo, inaugurando assim o circuito das sagras. Gnocchi com molho de ganso e torta al testo com lingüiça, na companhia do Marco e da Michela, que eu pensei que fosse ficar mais chata com a gravidez mas, ao contrário, desenchatizou.

scrittura creativa

O curso de scrittura creativa foi muito maneiro. O palestrante é um palermitano novinho, careca alopético, com só um resquício de sobrancelhas, que lhe dá uma expressão muito engraçada. E eu adoro os sotaques sicilianos :)

O curso foi sobre autobiografia. Ele deu vários textos de autores que eu não conhecia, todos Ó-TE-MOS. E me diverti muito, apesar da turma ser grande demais.

Engraçado é ver que qualquer bando de gente junta demonstra mais ou menos a mesma estatística: tem sempre um engraçadinho, tem sempre um velho babão, tem sempre a senhora desocupada, tem sempre um deslumbrado, tem sempre um artistinha metido a estrela, tem sempre alguém que não entende nada de coisa nenhuma. Hoje foi assim mesmo: o primeiro exercício foi fazer uma lista de “eu me lembro…”, seguindo o exemplo de um pastel que publicou um livro só com essas coisas, estilo 80’s revival. O objetivo era misturar memórias coletivas (das quais não participo, lógico) e memórias individuais, e tentar dar um toque de ironia e graça no texto. Em vez de fazer a tal lista, a senhora desocupada escreveu um texto imenso sobre uma única memória, descrevendo com muitos floreios uma situação ridícula que não tinha graça nenhuma, uma coisa chatérrima. E aí fica aquele clima esquisito, todo mundo querendo rir, resmungando, ai que porre, ô, minha filha, se liga, e coisa e tal.

A amiga do meu aluno, que foi com ele, é daquelas chatas que fazem “aham!” ou “isso mesmo…” a cada coisa que o palestrante fala. E quando ele fala “a teoria do fulano é que X quer dizer Y”, dez minutos depois ela levanta a mão e fala, “sabe o que eu acho, mas é a minha opinião, tá, eu acho que X quer dizer Y”, como se tivesse descoberto a pólvora. Caraca, que coisa chata! Cada vez que a garota abria a boca era pra soltar uma palhaçada dessas, e eu já tava querendo dar um tapa na cara dela. Almoçamos juntos e eu não resisti e perguntei o que ela fazia da vida: atriz. Aaaaaaaaaaaah…

No mais, aprendi muita coisa legal – mais do que escrever, aprendi a ler certas coisas com um outro ponto de vista. Gostei muito, e daqui a alguns dias ou semanas deve chegar o certificado. Legal :)

o último dos moicanos

Murilo tinha quarenta e poucos anos. Quantos poucos, exatamente, nem ele sabia – aliás, ninguém sabia nem mesmo que ele já passava dos quarenta. Seu cérebro se petrificara aos vinte anos, e ele permaneceu para sempre naquela idade mental. A coisa já durava tanto tempo que nem mesmo sua própria mãe, que ainda lhe pregava os botões e remendava meias, se lembrava de que ele já passava dos quarenta. Ele mesmo acabara se convencendo de que ainda tinha vinte, e comportava-se como tal. Ou vice-versa.

Murilo não trabalhava. Não só porque o conceito de ganhar a vida era algo de desconhecido para ele, mas também porque não sabia fazer nada. Nunca aprendera nada de útil, jamais fizera nada de útil ou interessante, de verdadeiramente interessante, em toda a sua vida. Mas essa era outra coisa que Murilo não sabia: de onde vinha o dinheiro para pagar certas comodidades. Nem ele nem ninguém sabia de onde vinha o dinheiro, mas também não interessava, assim como não interessava o fato dele ter passado dos quarenta. Porque era suficiente saber que Murilo era grisalho, estava sempre de óculos escuros de marca, sapatos pontudos de couro de crocodilo, calça jeans cujo preço exorbitante era justificado somente pelo poder de duas iniciais gravadas no bolso de trás, camisas bem passadas. Ninguém sabia também quem passava as camisas, mas isso também não interessava. O que interessava era que Murilo dirigia um Porsche prateado superhipermegaesportivo, daqueles colados no chão, que zuniriam nos seus ouvidos se pudessem fazer uso de todos os seus cavalos ao mesmo tempo – infelizmente não podem, as leis de trânsito estão aí pra isso mesmo. Murilo vivia em um centro habitado cuja velocidade máxima era limitada em 50 quilômetros por hora, mas mesmo assim nunca tivera poucos cavalos à sua disposição. Mudava de carro como mudava de camisa, mas a imaginação era pouca: já tivera uma BMW Z4, daquelas coladas no chão; Mercedes esportivas, daquelas coladas no chão; uma Ferrari, daquelas… Murilo era assim.

Agüentava as sessões de tiração de sobrancelha com a força e a coragem que só um macho de verdade tem. Horas e horas de bronzeamento artificial. Linha direta com o maior produtor nacional de gel para os cabelos. E, claro, cartas de felicitação da Philip Morris de vez em quando, agradecendo a preferência. Porque, como todos os outros espécimes de Homo sapiens tabacoscrotus, Murilo jamais, jamais saía de casa sem acender imediatamente um cigarro. Gostava particularmente de acender um Marlboro (coisa de cowboy moderno mesmo, coisa de macho que tem carro esportivo conversível e, conseqüentemente, o maior órgão reprodutor masculino da fauna terrestre e marinha) enquanto esperava o elevador. Batia as cinzas no vaso de planta do condomínio, e entrava. Ou então, para ser mais democrático e distribuir de forma mais justa o fedor nicotínico, às vezes usava as escadas, empesteando homogeneamente todos os três andares do pequeno edifício onde vivia com sua fêmea. Quando chegava ao térreo, apagava o cigarro no capacho, acendia outro e entrava no carro, inevitavelmente estacionado de modo a ocupar o máximo de vagas possível. Dirigia sempre assim: bem afastado do painel, para poder esticar o braço direito e dirigir com a palma da mão, o cigarro aceso displicentemente encaixado entre os dedos. O braço esquerdo apoiado na janela aberta, o vento se esforçando para mover os cabelos engomados, os óculos escuros combinando com a pele artificialmente morena, a fumaça se acumulando dentro do carro. Às vezes, esperando o sinal vermelho abrir, mudava o cigarro para a mão esquerda, que pendurava, cheio de charme, do lado de fora do carro. Por sorte jamais queimara nenhuma velhinha que passara ao seu lado de lambreta, mas também, se o tivesse, jamais perceberia. Poucas coisas percebia, o Murilo.

Aonde ia no seu Porsche prateado, nunca ninguém soube. Nem ele mesmo. Tampouco com quem tanto fala em seu celular último tipo, que tira fotos, transmite os melhores momentos de Inter x Juventus, e bate claras em neve ao mesmo tempo. Aquele que um clone de sua fêmea anuncia na TV, de biquini vermelho, com uma praia no fundo e sempre, sempre, o vento nos cabelos.

A maioria das fêmeas da sua espécie eram hipotrofiadas em muitos sentidos. Para não engordar, comiam muito pouco – a espécie ainda não se desenvolvera o suficiente para surgir sem glândulas sudoríparas, e fêmeas de Homo sapiens tabacoscrotum não gostam de suar, não, não, não, e conseqüentemente não se exercitam. Gostam de freqüentar academias, em conjuntos cor-de-rosa da Nike, maquiagem, argolas prateadas e cabelos soltos, mas jamais levantam sequer um polegar. Comendo quase nada, pouco a pouco desenvolveram uma hipotrofia de todo o sistema nervoso central, que quase sempre comanda um corpo miúdo, lordótico, cujo centro gravitacional não funciona na ausência de saltos-agulha. A imensa maioria das fêmeas desta espécie tem cabelos cor de mico-leão dourado, sobrancelhas arqueadas estilo Conde Drácula, a pele sem viço por causa da alimentação carencial (problema facilmente resolvido com cerca de 150 gramas de base e pó-de-arroz). Muito freqüentemente usam, além da maquiagem excessiva, perfumes sufocantemente doces na estação e na quantidade erradas, saltos ortopedicamente não recomendáveis, e, principalmente, lápis para contorno labial, sem batom. Muito freqüentemente também fumam, e obviamente lançam tanto as guimbas quanto os maços vazios pela janela do carro, o que as torna parceiras ideais para os machos de sua espécie. Como eles, também não fazem nada, nem nunca fizeram, além de falar no celular, e, como eles, também são imunes à passagem do tempo – a diferença é que normalmente tendem a se petrificar nos quinze anos.

Murilo era o último de sua espécie. Talvez tenha durado tanto porque fazia parte de uma minoria que preferia estrangeiras exóticas e vulgares em vez dos micos-leão dourados. Mas era o último de sua espécie. Gerações e mais gerações de inatividade cerebral, de bronzealmento artificial, de dores sobrancelhais suprimidas à força de puro poder mental, de conversas vazias sobre carros e louras micos-leão dourados, e principalmente de cigarro em espaços confinados (o carro esportivo de dois lugares, o elevador de pequenos edifícios familiares, o banheiro de restaurantes) esterilizou-os todos. Machos e fêmeas. Os espermatozóides, ocupados demais em ver quem tinha o rabo mais longo, também acabaram por sofrer atrofia, e não mais fecundavam os óvulos, mal nutridos e intoxicados pela tintura cor mico-leão dourado.

É assim que uma espécie entra em auto-extinção.

E todas as pacas mancas do mundo viverão felizes para sempre.

banana

Eu devo estar ficando muito velha mesmo. Porque ando de uma sentimentalidade ímpar.

Sempre fui chorona – choro de raiva, de tanto rir, de felicidade, de angústia depressiva, de dor, de cansaço – mas ultimamente a coisa anda passando dos limites. Ou então é o mundo que está passando dos limites, já não sei mais.

A história da cadelinha Preta, que não consigo nem reproduzir aqui pra não cair no choro outra vez, me fez, nessa ordem: vomitar, chorar e doar uns merréis pra SUIPA (falando nisso, doem, crianças, e adotem, se possível; sigam o exemplo da querida Marcinha, vejam que maravilhas de canídeos que ela trouxe para o seio de seu lar). Não posso nem imaginar nenhuma cena de bicho ou criança ou velho sofrendo sem chorar ou entrar em taquicardia. Em todo o filme A Queda, em meio a pedaços de corpos, cirurgiões empapados de sangue serrando pernas, e outras coisas deliciosas, a única cena que me fez chorar foi o doutor sei lá o quê entrando num hospital, presumivelmente abandonado, pra pegar remédios, e dando de cara com um quarto cheio de velhinhos doentes, sozinhos, largados, olhando pra ele em silêncio. Lendo Io Non Ho Paura (ainda não consegui ver o filme, caramba) chorava em todas as descrições do menino no poço. E o que me tirou a fome no domingo, coisa que quem me conhece sabe que é praticamente impossível porque eu consegui a proeza de engordar dois quilos no pós-operatório da remoção de um dente do siso – nada abala meu apetite – foi ver, no telejornal, a imagem daquele americano, Rocco não sei o quê, chorando e dizendo “I ain’t killed anyone!” com voz embargada enquanto era levado pro corredor da morte. Acusado de matar a ex-namorada, foi condenado por provas de DNA analisadas pelo mesmo laboratório que, descobriu-se, já mandou gente inocente pra morte antes, e fala-se inclusive na possibilidade de tais “erros”, se é que erros são, terem sido causados pela “pressão” exercida pelo governador do estado (no caso, a Virginia, e o governador é republicano, só pra constar). Caramba, aquilo acabou comigo. Não sei nada sobre o caso, e pode ser mesmo que o cara seja culpado, mas a mera possibilidade dele ter morrido inocente, ou simplesmente ouvi-lo chorando e dizendo aquela frase com aparente sinceridade, foi o suficiente pra me fazer afastar o prato. Que estava cheio de tagliatelle fatte in casa, diga-se de passagem. Né pouca merda não.

Mas tenho que admitir que sou mais sensível às causas animal, criançal e velhal. Não necessariamente, mas quase certamente, nessa ordem. Até de bicho asqueroso tenho pena, e imploro pra não matarem, se for possível, mas pra jogar pra longe de mim. Ultimamente há muitos, mas muitos gatos atropelados nas ruas, o que me leva a crer que não são bichos tão espertos quanto imaginamos, ou então têm um tesão que move montanhas. Caramba, que nervoso que me dá. Cada vez que vejo uma massa de pêlos achatada na estrada penso no Leguinho e fico com vontade de ir correndo na Arianna dar um abraço naquele monstro bobão. Tem um gato preto e branco que foi atropelado na bifurcação pra Perugia, na superstrada. Não foi achatado, mas deve ter levado uma porrada e caiu no acostamento. Isso foi há semanas. Eu vou a Perugia pelo menos duas vezes por semana, o que significa que venho acompanhando seu processo de decomposição com um misto de interesse e tristeza. Fico pensando se ele era de alguém, se morava na rua, se tinha amigos cachorros tipo o mongo do Leguinho, se estava a fim de alguma gatinha das redondezas (isso supondo que fosse macho), se comia restos de comida que neguinho às vezes deixa nos cantos pros bichanos.

Vou começar a investigar serviços de castração grátis por aqui. Tá na hora de castrar a Priscilla. Seus filhotinhos são uma diliça, mas quem vai garantir a saúde deles enquanto crescerem?

haja…

Nos últimos dias fiz dois estranhos muito felizes com a minha incomensurável gentileza.

Semana passada, final da tarde, eu na labuta tradutória no computador, toca o telefone da sala. Atendo, uma vozinha educada de homem com língua presa (não esse que vira effe, mas presa que vira pguesa, sabe? Não era a “r moscia” italiana, era defeito mesmo) pedindo um minuto do meu tempo pra responder a algumas perguntas da pesquisa de opinião sobre a Coop, meu supermercado preferido. O tom de voz deixava muito claro que o dia tinha sido improdutivo e cheios de patadas telefônicas, e percebi que ele estava quase implorando pra que eu respondesse. Então resolvi ser boazinha (quando não querem me vender nada eu quase sempre sou) e pedi licença pra abaixar a televisão, que sempre fica ligada enquanto estou sozinha em casa. Ficamos uns bons dez minutos no telefone, ele repetindo aquelas perguntas bobas mecanicamente, de um a dez que nota a senhora dá à arrumação dos produtos no supermercado Coop que a senhora freqüenta, de um a dez que nota a senhora dá à preocupação da Coop com a ecologia, de um a dez que nota a senhora dá à disponibilidade dos funcionários Coop, de um a dez que nota a senhora dá às ofertas semanais dos supermercados Coop, e por aí vai. Respondi tudo rapidinho, com seriedade e sinceridade, ainda fiz umas piadinhas com algumas perguntas particularmente idiotas (quanto à sua atual situação econômica, a senhora acha que nos próximos doze meses vai piorar, se manter estável ou melhorar? Que raio de Vox Populi resolve botar uma pergunta dessas?), e como recompensa ouvi um suspiro de alívio do outro lado e um agradecimento longo e sincero – Lei è stata veramente gentilissima, signora, la ringrazio tantissimo!!! Buona serata e buon fine settimana!

E hoje à tarde, quando estava me preparando pra sair pra dar aula no restaurante, o telefone toca outra vez. Era um motorista de courier, que não conseguia saber onde ficava a minha rua, e precisava fazer uma entrega aqui. Eles fazem assim: se não conseguem descobrir como se chega a um determinado lugar, coisa que às vezes não é fácil porque as numerações são malucas e muitas vezes nem existem, eles catam na lista telefônica o número de alguém que more ali na área e possa dar explicações de como chegar. Calhou que o cara precisava fazer uma entrega exatamente no meu prédio. Tava perdido no centro de Bastia, e não sabia como vir parar aqui – compreensível, visto que Cipresso é uma fração de Bastia, mas sempre Bastia é, e, partindo-se do pressuposto que quem está em Bastia conhece a cidade, senão não teria nada o que fazer aqui, estima-se que sabe também onde fica Cipresso. Ou seja, nada de placas. O coitado do homem tava plantado em frente à Coop, e disse que já tinha dado várias voltas sem entender pra onde tinha que ir. Fui dando as direções enquanto ele ia seguindo adiante e descrevendo o que via: tô passando em frente ao cinema… Ah, tá, tô vendo a placa pros correios… Viro à esquerda, a senhora disse? Sim, tô vendo o edifício romano em restauração à minha esquerda… Padaria Mela, tô vendo, viro à direita… Tá, tô atravessando a ponte… Praticamente guiei o homem até a porta do meu prédio, coitado. Fiquei me achando A escoteira com a minha boa ação. Semana que vem é capaz de rolar uma velhinha pedindo ajuda pra atravessar a rua.

Eu sou paciente com quem merece. Com gente chata ou burra, e principalmente com gente chata E burra ao mesmo tempo, não consigo. Fora isso, eu sou a gentileza em pessoa. Às vezes.

vovó

Essa é a minha avó. Morreu jovem, quando meu pai era rapazinho, deixando 4 filhos e 1 filha pro meu avô criar. Além de ser linda de morrer, como é claramente visível, era uma mulher educada e requintada, e, sobretudo, modernérrima, muito à frente do seu tempo. Até hoje, em reuniões de família, fala-se muito dela – não só os familiares, mas também amigos e ex-vizinhos, e inevitavelmente todo mundo acaba chorando.

Sempre tive a impressão de que se tivesse vivido mais ela talvez tivesse virado uma grande amiga da minha mãe, que é outra que está muito à frente do seu tempo – e não sou só eu que estou dizendo; outro dia ela recebeu o telefonema de um ex-aluno (ela não dá mais aula há quanto, vinte anos?) que viajou o mundo com a Marinha, viu e compreendeu coisas que minha mãe já havia comentado séculos antes na sala de aula, e resolveu catar o nome dela na lista telefônica e ligar pra dizer o quanto ela tinha sido foda. Também sempre tive a impressão de que nossa família seria muito melhor hoje, em muitos sentidos, se ela não tivesse morrido tão jovem. Minha avó é a pessoa que eu mais gostaria de ter conhecido, no mundo inteiro. Meu avô até hoje só senta à mesa de frente pro quadro dela, na parede oposta da sala. Meu pai e meus tios dizem que ela foi uma mãe muito alegre, com uma intimidade com os filhos que naquela época era unheard of, mas eu vejo no seu olhar uma melancolia que, infelizmente, foi a única coisa que eu herdei dela.

uia

Feriados são realmente uma invenção maravilhosa. Só é chato quando o tempo não ajuda.

Além de ser feriado, hoje é o aniversário da minha prima dentista, a Erica. E ontem foi o aniversário de uma amiga querida, a Bebel, com quem estudei a vida toda no Andrews. Ontem me peguei pensando nelas enquanto dirigia, e do nada me veio à cabeça uma das muitas musiquinhas que nós, meninas criativas, escrevíamos no colégio. Essa de ontem, a única da qual me lembro do começo ao fim, escrevi com a Bebel e com a maluca da Patricia. A melodia não preciso nem dizer qual é. Vejam que primor.

Penso numa
paisagem muito bela
Abro a janela e dou de cara
com uma favela

Vejo os molequinhos se matando
E vem um logo me assaltando

Meu relógio não estava no seguro
Não recebi outro relógio
no lugar do meeeeeu

Cocaína, traficante, maconheiro
Que interessante

Vejo um assalto a banco,
é tão engraçado
que me faz chorar
de emoção

E todos vão roubar…

Cada moleque
vai se tornar um marginal
E isso aqui já é normal
Você sabe bem

E todos vão roubar…

papamania

A Cora falou mais ou menos o que eu tava pensando. Ontem, voltando da última aula pouco antes das sete da noite, ouvi no rádio toda a expectativa dos ouvintes e do apresentador do programa daquele horário quanto à fumaça das sete. Assim que cheguei em casa liguei a TV e, batata, às sete e cinco a primeira fumata, preta. A primeira coisa que imaginei foi a seguinte cena: os cardeais todos reunidos, tomando taças de um bom Barolo e beliscando grissini de alecrim, tricotando e dando risada.

– Ih, já são quase sete da noite. Como o tempo voa quando a gente tá se divertindo, né não?

– É mermo… Mas não seria melhor soltar logo uma fumacinha? Coitado daquele povo lá fora, tá frio, vamo mandar neguinho pra casa, pra jantar… Olha que daqui a pouco tem mais gente lá fora do que no show do Vasco Rossi em Catanzaro, grátis, ano passado.

– Melhor esperar até o último minuto, caro cardeal Fulano. Timing is everything. Quando o pessoal já estiver reabsorvendo a adrenalina das sete da noite, no pós-clímax total, a gente solta a fumaça.

– Uns dois ou três minutos depois das sete, você quer dizer?

– Isso. E que não seja muito claro, de imediato, se é branca ou preta. Só pra dar uma confundida. Aí todo mundo vai pra casa jantar e assistir à microssérie Karol, Un Uomo Diventato Papa, que vai ao ar no canal 5 hoje às nove.

– Mas quando é que vamos finalmente revelar a existência do novo papa? Tem que ter cuidado pra não cansar a galera, cardeal Beltrano; não podemos abusar da boa vontade do povo… As novas gerações têm pouca capacidade de concentração, se a gente ficar adiando, adiando, adiando, só pra deixar o pessoal excitado, eles vão acabar cansando.

– Então amanhã às sete da noite. Não, às seis, quando ninguém estiver esperando. Você vai ver que ibope que vai dar. Nem o U2, que esgotou os ingressos pro show em Milão 25 minutos depois do início das vendas online, vai poder competir com a gente.

– Mas não é sacanagem com quem ainda tá trabalhando naquele horário? Talvez seja melhor na hora do jantar…

– Não, não. Pode interromper a digestão. Vocês sabem, carne grelhada, aspargos, pimentão… Melhor fazer antes, assim o pessoal vai parar de trabalhar quando os filhos ligarem pro celular avisando. Toda aquela agitação vai dar até mais fome na galera.

– É verdade. E assim pelo menos os telejornais vão ter tempo de se preparar. Às oito da noite todo mundo vai estar psicologicamente preparado, e vai jantar com os olhos colados na TV. Cês acham que pega mal eu botar meu boné da Nike?

– Não exagera, cardeal Tizio (fulano, em italiano). Bom, então tá combinado. Uma fumata ambígua agora, outras amanhã, e às seis da tarde a fumata branca.

– Beleza. E depois, habemus chester!

– Isso aí.

– Cool.

(uma rodada de high-fives)

– Vambora que eu tô com fome. Esses grissini são ótimos, mas engordam que é uma beleza. E esse azul brilhante do teto do Michelangelo tá me dando dor de cabeça.