Outro dia pedi pro pessoal no FB sugestões sobre temas pra postar aqui, porque estava sem inspiração. De início fui ignorada solenemente, mas depois de reclamar neguinho mandou algumas sugestões. Então hoje vou falar de bilinguismo, sugestão da Marcia. Desculpem se eu ficar muito técnica, mas é que eu adoro linguística, cês tão carecas de saber.
Primeiro, é importante definir alguns termos que aparecem frequentemente quando se fala desse assunto: língua majoritária é a língua mais falada no ambiente onde a criança se encontra (no caso da Carol, obviamente é o italiano); línguas minoritárias são as outras, às quais a criança é menos exposta. Até os dois anos e meio, quando ela entrou pra escolinha, o português era a língua majoritária porque ela passava o dia comigo e eu só falo em português com ela, desde que ela nasceu. Entrando pra escola, durante a manhã ouvia o italiano das professoras e dos amiguinhos; à tarde ficava em casa comigo e ouvia português, mas se saíamos pra jantar fora, por exemplo, ela era exposta mais ao italiano de todos os outros ao nosso redor do que ao português, que só vinha de mim. Agora que ela parou de dormir à tarde e fica até as 15 na escola, escuta menos português porque fica menos tempo comigo. De modo que esses conceitos, majoritário e minoritário, obviamente não são estáticos. Se nos mudássemos pro Brasil o italiano passaria a ser a língua minoritária, por exemplo. Outros termos que forem aparecendo eu vou explicando pelo caminho.
O negócio é o seguinte: não é fácil formar uma criança bilíngue. Não é fácil porque sem um mínimo de x horas de exposição por semana (há estudos sobre isso mas vocês sabem que eu não memorizo números direito) a uma determinada língua a criança não aprende. Então o grande desafio é encontrar maneiras de expor a criança à língua minoritária.
Na verdade é mais difícil do que parece. Nós aqui adotamos o método OPOL (One Parent, One Language, ou seja, cada genitor fala com a criança na sua própria língua) misturado com o método Hot House (dentro de casa só se fala uma língua): eu só falo português com ela, sempre, não importa quem estiver junto, não importa onde estivermos, não me interessa se os outros se sentem incomodados ou intimidados ou sei lá o quê. A minha língua com ela é o português e ponto final. Ela nunca OUSOU se dirigir a mim em italiano, e se um dia isso acontecer, vai ficar sem resposta. Ela sabe que eu falo italiano, lógico, até porque eu e o Mirco conversamos em italiano, mas nunca passou pela cabeça dela falar comigo em italiano. Provavelmente isso é porque sempre fui consistente com o português; nunca consegui me imaginar falando com ela em outra língua que não fosse a minha, e depois de ler alguns livros e artigos sobre o assunto o meu instinto, confirmado pela ciência, se solidificou totalmente. Além de achar absolutamente ridícula, pra não dizer desrespeitoso para com a parte brasileira da família, a ideia de ter uma filha que não fala a minha língua. Ela VAI FALAR PORTUGUÊS e acabou; pode um dia dispensar a cidadania brasileira e nunca mais querer botar os pés no Brasil, mas a língua ela vai aprender e pronto (logicamente sem forçar, a coisa tem que ser natural).
A parte do Hot House é assim: o Mirco também fala com ela em português. No português dele, claro, que é uma bosta, mas não importa. Isso tem duas consequências: uma, a Carol só fala com ele em português também, desde sempre, mesmo na presença de outras pessoas que não falam português e que estão conversando comigo e com o Mirco em italiano; duas, tem gente que acha estranho e pergunta por que ele não fala com ela em italiano, já que estamos na Itália. Essa segunda consequência me irrita uma quantidade, ao contrário da pergunta “você não se sente estranho falando em outra língua que não a sua?”, que eu entendo perfeitamente. Mas o Mirco já aprendeu a responder que ela já passa o dia na escola ouvindo italiano e precisa ouvir o máximo de português possível se quisermos que aprenda a língua.
Temos um problema meio chatinho aqui: a presença do dialeto, que aqui na Úmbria é medonho de se ouvir. Como meus sogros são semi-analfabetos, só falam em dialeto, que na verdade não é beeeeem dialeto mas simplesmente uma variante regional do italiano que todo mundo chama de dialeto. Em particular, aqui na província de Perugia todas as variantes locais (porque cada vilarejo tem a sua, lógico, pra simplificar…) têm em comum o fato de comer fonemas. Algumas particularidades do dialeto perugino nós também temos nos dialetos de Bastia e de Santa Maria (que são ligeiramente diferentes, apesar das cidades serem coladas uma na outra), como usar “gi'” em vez de “andare” (“ir”), “pia'” em vez de “prendere” (“pegar”), “magna'” em vez de “mangiare”, (“comer”), “lu” em vez de “lui” (“ele”), “lia” (ou “essa”, com o e fechado) em vez de “lei” (“ela”), “monno” em vez de “mondo” (“mundo”), “fo'” em vez de “faccio” (“faço”), entre outros horrores. Na escola, lógico, as professoras, ambas de Perugia, falam um italiano padrão, mas os amiguinhos, também expostos a pais e avós que falam em dialeto, acabam falando um italiano bem umbro que é feio de doer.
Além disso ela tem uma hora de inglês por dia na escola, o que na verdade é muito menos do que eu gostaria mas muito mais do que a maioria das outras escolinhas por aqui oferecem; normalmente ou não têm inglês at all ou só dão uma hora por semana. No nome a escola é bilíngue, mas na verdade não é porque as “aulas”, ou, no caso do jardim de infância, o tempo em que as crianças ficam com as professoras, é em italiano; essa hora diária de inglês é com musiquinhas, historinhas e tal, sem que as crianças entendam tudo e de eficácia duvidosa, na minha opinião. É uma coisa bem limitada, mas é a melhor alternativa aqui onde moramos. No final das contas, no caso particular da Carolina fica difícil dizer qual é a língua majoritária e quais são as minoritárias, porque a exposição dela ao italiano padrão está restrita às tias da escola, o português é só comigo e com o Mirco, o inglês é só durante aquela hora diária na escola e o dialeto é com os avós e os amiguinhos.
Pra aumentar a exposição dela ao português, em casa não se fala italiano, como eu disse lá em cima. Nada de televisão (não só porque tem propaganda, mas principalmente porque só tem em italiano), nada de música italiana, nada de livros em italiano (todos os que ela ganha ficam na casa da avó). Ela só vê DVD, quase sempre em português, embora tenhamos muitos em inglês e ela nunca tenha me pedido pra trocar de língua. Música, só brasileira ou em inglês (vocês sabem que ela adora Monobloco). Os livros são todos em português ou inglês (e alguns em espanhol e francês também). Sempre lemos uma história em português ou inglês antes de dormir; quando vou pra capoeira às quartas, o Mirco lê uma história em português pra ela.
Quando voltamos pra Itália, no final de julho, depois de dois meses no Rio, ela estava com um sotaque carioquérrimo muito engraçado. Já perdeu um pouco; os Ss continuam chiados e as vogais continuam alongadas, felizmente, mas de vez em quando ela solta um “einta” que me dá urticária, e está tendo problemas com o “ão” também, que ela tende a pronunciar como “on”. O R como H (como nos dois erres do português e no R pré-consoante do carioca) ela só consegue pronunciar no início de palavra e intervocálico, de modo que “rato” e “carro” saem direitinho mas “porta” sai “pota”. Ela às vezes duplica a consoante, principalmente em palavras que são parecidas nas duas línguas; por exemplo, ela pronuncia “cavalo” com dois Ls, como em italiano (“cavallo”). Parece besteira, mas a palavra acaba soando bem diferente, inclusive com alteração dos sons vocálicos que aparentemente nada têm a ver com a coisa. E ela faz umas maluquices com o português típicas do italiano, tipo começar a frase pelo objeto e não pelo sujeito (“isso a manu fez” em vez de “a manu fez isso”) – em italiano frequentemente o sujeito vai no meio ou no fim da frase, eles fazem uma bagunça danada. Ou então usa o presente do indicativo em vez de outros tempos, por exemplo, “eu pego?” em vez de “quer que eu pegue?”, porque em italiano se usa assim. Mas são detalhes que vão se ajeitando com o tempo e com muita paciência; no geral o português dela é ótimo, com um vocabulário bem, bem amplo.
O italiano dela tem algumas influências do português, lógico, mas não me preocupo com isso porque ela morando aqui vai acabar aprendendo a língua direito, querendo ou não querendo. E o inglês dela, ou melhor, as palavras em inglês que ela conhece, têm sotaque britânico porque a professora da escola é inglesa. Ela tem o maior interesse por inglês; quando assistimos juntas a A Bug’s Life ou Nemo, que só temos em inglês, ela me pergunta o significado de TUDO, e na maioria das vezes faz a pergunta certinha, distinguindo uma palavra no meio da frase.
Volta e meia ela comenta que uma coisa se diz assim em português e assado em italiano e reconhece perfeitamente o inglês quando o ouve em qualquer contexto. Faz o switch entre as línguas sem o menor problema quando eu e ela estamos com italianos, como por exemplo no almoço de domingo na casa da minha sogra. É uma frase em português comigo e uma em italiano com a avó, uma em português e outra em italiano, alternando direitinho, sem se confundir.
Quanto à alfabetização, todos os artigos que li são da opinião de que é melhor começar com uma língua só e depois adicionar outras. Ela conhece todo o alfabeto em português mas explico sempre que algumas letras têm sons diferentes em italiano e que na escola ela vai aprender a ler em italiano primeiro. Mais tarde entro com o português, quando ela já estiver lendo em italiano. O inglês vai ficar em terceiro plano, não porque seja menos importante (na verdade a menos importante das três é essa merda do italiano, que ninguém mais fala em lugar nenhum do mundo e não serve pra porra nenhuma) mas porque quem fala duas, fala três, e eu falando inglês fluentemente posso dar um mega suporte. Se ela tiver o mesmo jeito pra línguas que eu tenho, sem modéstia nenhuma porque você sabem que pra mim modéstia é coisa de gente hipócrita, vai aprender muito bem, obrigada, até por ser mais exposta do que eu fui.
Todos os livros que eu já li sobre o assunto são meio chatinhos, embora interessantes; recomendo o Raising a Bilingual Child, que é o melhorzinho. Leiam também os ótimos posts da Bel (de Aruba) e da Lu (que vocês já conhece) sobre o assunto; são muito iluminantes.