êeeeeeeeeeeeee

E acabamos de comprar nossas passagens. Infelizmente só achamos pra novembro, e assim vou perder o casamentão da Sabrina, dia 22, mas não teve jeito; a diferença de preço é assustadora. Infelizmente também é com a Iberia, o que comporta dois problemas: 1) ouvir gente falando espanhol o vôo todo e 2) não acumular milhas de coisa nenhuma, já que a companhia faz parte de um grupo de companhias aéreas que não me interessa absolutamente. Bosta.

Eu fico nervosa quando faço certas coisas online. Tipo comprar passagens aéreas tão caras. Fico com medo de alguma coisa travar (happens often) e a gente acabar pagando duas vezes, sei lá. Por isso quando finalmente imprimimos os e-tickets deu um alívio danado. Ainda mais porque estávamos caindo de sono, os dois, e nessas situações a probabilidade de errar alguma coisa é grande. Mas deu tudo certo e dia 6 estou indo embora de Roma. Chego dia 7, segunda-feira, e volto dia 21. O Mirco vai mais tarde, parte dia 12. De modo que Hunkette, darling, ative-se pro 15 de novembro, oui? Eu queria ir a Paraty, que não conheço. Quem se habilita? :)

macacos me mordam

Está praticamente decidida a próxima viagem do ano. Adivinhem.

Eu sugeri São Petesburgo – Tallinn – Helsinki, mas é caro. Sugeri Budapeste – Bucareste – Vienna, mas não querem. E vamos acabar indo pra Argentina outra vez. Agora vai ser Península Valdez, e eu vou dar um pulo no Rio. Gianni e Chiara acho que também vão, se conseguirem interromper a comilança deslumbrada de carne em terras hermanas.

Ushuaia – BsAs

Pra compensar o terror de ontem, dedicamos o dia às compras. Difícil escapar da compulsão consumista por aqui, quando o seu salário vem em uma moeda que vale 4 vezes mais que os pesos argentinos. A Tierra del Fuego é uma província com situação especial, e é uma zona tax-free. É CA-LA-RO que no final das contas os preços são mais ou menos os mesmos do resto do país, porque os vendedores aumentam levemente os valores, pra compensar a ausência de taxa, mas dá no mesmo. Então saímos comprando tudo. Horas perdidas naquele tal mall-like thing na San Martin. Compramos tênis Adidas baratos, meias, calças jeans, pullovers, cachecóis charmosos, um casaco pesado de lã pro Mirco, que normalmente só usa jaquetas esportivas, eu comprei uma bolsa de design clássico mas couro diferentão, compramos uma bolsona daquelas de levar tralha pra academia, da Nike, baratérrima, enfim, um pouco de tudo. Entulhados de sacolas, fomos almoçar no Opíparo, outra vez. Enquanto esperávamos a pizza e a massa, transferimos a bagulhada das sacolas pra bolsa da Nike, que virou bagagem de mão do Mirco. Ainda demos mais uma passeada em lojas de cafonices pra turista, onde Gianni comprou umas cuias de chimarrão pra dar de presente pra família.

Voltamos ao hotel, fechamos nossa conta, chamamos um remis, e quando estávamos abanando as mãozinhas dando tchau pra senhora o Gianni lembrou de confirmar que o transporte do hotel pro aeroporto estava incluído na diária, assim como o do aeroporto pro hotel. A senhora faladeira, porteña e paracula, fez um gesto com a mão, assim, como quem não quer nada, e disse, na sua voz de taquara rachada:

– No no, pagan los chicos!

Deixa pra lá, pensamos, sai menos de um euro pra cada um, não vamos nos lamentar. E fomos, todos espremidos entre malas e bolsas, rumo ao aeroporto. Felizmente não rolou stress turbulêntico na decolagem. O vôo foi chato e interminável, mas no fim das contas chegamos, às onze da noite passadas. Dois táxis pro hotel, porque as malas não cabiam em um só, e lá fomos nós pra rua Esmeralda – e pra uma enorme decepção hoteleira.

O hotel é quatro estrelas, mas é de uma cafonice ímpar. Não sei se demos o azar de pegar os dois quartos mais horripilantes do hotel inteiro, mas o fato é que o quarto do Gianni e da Chiara era minúsculo e todo velho, mas pelo menos o banheiro era mais ou menos decente. O nosso, maior, dava de frente pra Esmeralda. Não sei se já comentei, mas neguinho dirige em Buenos Aires muito, mas muito pior que em qualquer outro lugar do mundo que eu já conheci, inclusive Nápolis. Os ônibus passam a cem por hora, a qualquer hora do dia ou da noite. O barulho é insuportável. O ar condicionado não desliga e contribui com o barulho. O carpete (ewwww) é VERDE DIARRÉIA. O banheiro é do mesmo verde, a cortina é de plástico, a banheira de hidromassagem, que obviamente não funciona, é tão velha que o fundo é todo manchado, além da cortina de plástico há uma cortina de tecido, de babadinhooooooooos, “protegendo” o box, a porta, em arco, não abre toda nem fecha toda, o teto do banheiro, novamente em madeira e em arco, dá um aspecto de adega que é a última coisa que alguém espera de um banheiro, a luz do espelho não ilumina coisa nenhuma, e vem de dois lustres ridículos, em ferro batido com folhas pontudas assassinas, montados exatamente na altura dos olhos de uma criatura de altura normal. Mirco deu inúmeras cabeçadas nessas flores-lâmpadas, e ainda machucou a mão dando um soco de ódio bem em cima de uma dessas folhas pontudas de ferro.

Pelo menos tem TV a cabo. Juntamos as duas camas (o quarto era no esquema twin beds), dispensei os cobertores brancos de acrílico, encardidos (provavelmente não de sujeira, mas porque acrílico claro escurece mesmo) e feios, e dormi o sono pesado de quem sobreviveu à Pinguinera.

Ushuaia – Pinguinera – ou o dia em que a pacamanca quase virou pacamorta

Tomamos café da manhã na cozinha da casa da senhora, e pudemos ver melhor o marido, que nos recebeu depois do jantar ontem à noite. Parece um pingüinzinho, mas é MUITO simpático e bonzinho. O café da manhã é aquele sofrimento pra mim, que normalmente como coisas salgadas: aqui, assim como na Itália, o menu do desayuno é doce, e inclui as malditas medialunas, que nada mais são do que croissants doces e sem recheio, e café com leite. Pelo menos a senhora descolou um leite frio com chocolate pra mim, e comi as medialunas com manteiga e com queijo e presunto que sobraram de Calafate, fingindo pra mim mesma que eram deliciosos croissants salgados.

O tempo tava uma bosta: o vento tinha parado de soprar desde a noite anterior, mas o céu tava nublado e com pinta de chuva. Decidimos visitar o Parque Nacional Tierra del Fuego pela manhã, e, se o tempo melhorasse, iríamos à tarde visitar a Pinguinera, a ilha do canal de Beagle onde os pingüins se reúnem pra botar ovos, cuidar dos pimpolhos antes de migrar pra climas mais amenos, pra bater papo, essas coisas. Chamamos um remis e fomos direto pro porto, reservar lugar na excursão pra Pinguinera, e depois pro centro de informação turística, na rua San Martin, onde tínhamos uma missão muito importante a cumprir: carimbar o passaporte com o carimbo da cidade mais ao sul do mundo. Também ganhamos certificados, provando que estivemos aqui nesse buraco. Nem sabíamos dessa história do carimbo; fui eu que, com meus olhos de lince, vi dois carimbos lindos no passaporte da senhora de Valencia que visitou Torres del Paine com a gente, e deduzi que teria algum centro de informação pra turista que nos dava as carimbadas. O melhor é que é tudo de grátis.

Dali fomos pro parque. O passeio de três horas com um remis custa cerca de 90 pesos, se não me engano, valor que dividido por quatro pessoas e novamente por quatro pra quem ganha em euro fica ridículo. Como é bom fazer turismo em país em crise! Mas enfim, não sei se era porque o tempo tava realmente muito feio e começou a chover, ou se é o parque que é meio assim-assim mesmo, sei que não achamos nada de oooooh. Fora uma lebre aqui e ali, uma ave de rapina imensa pousada num galho numa clareira e uns bichos esquisitos, a única coisa que vimos de diferente foi a castorera, um dique construído pelos castores. Aí vocês me perguntam: ma che cazzo fazem CASTORES nesse fim de mundo?

O negócio é o seguinte: lá pros idos dos anos 50, o exército argentino teve a feliz idéia de importar 25 casais de castores do Canadá, que deveriam ter dado início a uma próspera criação de animais pra exploração da pele, pra fazer casacos e jaquetas que protegessem contra os ventos patagônicos. Só que obviamente a dieta patagônica não é igual à dieta canadense, e alguma coisa na alimentação transformou o pêlo dos castores, antes longo e macio, em uma coisa dura e áspera e corta que não serve pra coisa nenhuma. Os militares, então, com sua mitológica presença de espírito e criatividade e visão do futuro, o que fizeram? Largaram os castores pra lá. Só que no Canadá quem mantém as populações de castores sob controle são os ursos, que certamente têm mais o que fazer do que procurar sarna pra se coçar nesse fim de mundo que é a Patagônia. E então aconteceu o óbvio: sem predadores, os castores começaram a se reproduzir loucamente, e a população aumentou demais. Virou praga, pior que baratinha francesinha. Pra piorar as coisas, o castor patagônico não tem predador, mas ele não sabe disso, e continua construindo seus diques, que nada mais são do que um modo eficaz de afastar quem gosta de castor no menu, como se nada tivesse mudado. Os diques, porém, inundam áreas antes secas, e secam áreas antes irrigadas pelo rio. As árvores morrem por falta de água ou por excesso de água. Tem mais: eles se alimentam da casca das árvores, que acabam morrendo se muita casca for retirada. Tem mais ainda: como os dentes dos castores não páram nunca de crescer, eles têm que roer madeira o tempo todo pra gastá-los, mesmo madeira que não serve pra comer. Mais árvores destruídas. Resultado: pra tentar acabar com a praga, o governo paga 5 pesos pra cada castor abatido. Só que 5 pesos não compensam os gastos com armas e munição, e muito menos o tempo e o esforço necessários pra caçar um castor, que não é bobo e só dá as caras fora do dique à noite. Legal, né?

Enfim, depois da tal volta no parque pedimos pro motorista nos deixar no restaurante Opíparo, quase de frente pro porto (Av. Maipú, 1255 – peçam pra ser atendidos pela Vanessa, que é boazinha e muito esperta e inclusive foi devidamente convidada pra conhecer a Itália), que tínhamos visto na noite anterior e nos parecera simpático. Acertamos em cheio: depois das devidas instruções, conseguimos comer massa al dente e pizza sem muito queijo, sem muito orégano e com um pouco de tomate extra. Felizes da vida com a barriga cheia, fomos a pé até o porto e pegamos o microônibus que nos levaria até a Estancia Harberton, uma espécie de fazenda, de onde pegaríamos a lancha até a Pinguinera. Pra chegar à Pinguinera, pode-se pegar um catamarã, que leva 4 horas e chega praticamente em cima da ilha, mas não deixa você desembarcar. Escolhemos a combinação microônibus + lancha porque assim poderíamos descer na ilha e caminhar entre os pingüins.

Além de nós, no microônibus, tinha um casal (ele mexicano e ela francesa), um outro casal de americanos, uma holandesa solitária muito boazinha, um casal de argentinos com uma bebezinha de colo, a Giuliana, LINDA e educadíssima, e a guia, Ana, com um caso grave de hemangioma no rosto, mas simpática. No caminho, paramos pra fotografar uma raposa que fazia cocô na beira da estrada, depois as árvores-bandeira, que ficaram tortas por causa do vento, umas vacas que passeavam por ali. Depois de muito sofrer com a estrada esburacada, finalmente chegamos à tal Estancia, que é absolutamente decepcionante.

Um pequeno aparte pra explicar a história da Estancia: um Thomas Bridge, órfão encontrado sob uma ponte e com um T bordado nas roupas e adotado por um pastor da igreja protestante inglesa, foi parar nas Malvinas pra catequisar a galera. Aprendeu a língua dos indígenas locais, gostou do clima e se mudou pro sul da Patagônia, onde fundou a primeira missão religiosa da região. Depois de alguns anos enchendo o saco dos índios de lá, voltou pra Inglaterra pra dar palestras nas universidades, conheceu a futura esposa, nascida na cidade de Harberton, e voltou com a coitada pra Ushuaia, onde fundou a tal da Estancia. Sei que até hoje a Estancia é administrada pela família Bridge, cujas últimas duas gerações agora vivem na cidade de Ushuaia e não querem saber muito da vida no campo.

Findo o aparte, voltemos ao nosso relato: montamos todos na lancha, que chamaremos de gommone porque o motor é montado numa base de fibra de vidro e borracha (gomma = borracha em italiano), e tocamos pra Pinguinera. Mesmo quando o tempo tá feio no mar, no canal de Beagle, que além de ser um canal é protegido por diversas ilhas, a coisa não é tão complicada. Mas pra uma lancha pequena como a nossa, sem motor de reserva, a viagem de dez minutos virou um pesadelo, porque o tempo virou em dois minutos. O céu nublado e chuvoso mas sem vento virou tempestoso, as ondas começaram a aumentar, a cobertura de plástico da lancha começou a voar com o vento, molhando todo mundo, e a Ana foi lá pra frente, onde eu tava, pra ficar segurando o flap que tinha se desamarrado. Meninos e meninas, não vos digo a altura dos saltos que dávamos a cada onda que a lancha enfrentava. Eu dei tanta porrada com as costas contra a armação de metal atrás de mim, a cada vez que descia de um desses pulos, que à noite eu me sentia como se tivesse apanhado. Chiara tava tão nervosa que nem chorava, agarrada no Gianni. O Mirco tava sentado à minha frente, e eu estava agarrada na manga esquerda do casaco; com a mão direita ele tentava segurar a Ana, que a cada salto da lancha perdia o equilíbrio, chegando a cair de joelhos no chão uma vez. A única que estava calma era a neném, por incrível que pareça, e o piloto, André, que se manteve tranqüilo o tempo todo, apesar da surra que levou das ondas, da chuva e do vento. Fiquei apavorada pela Chiara, que não sabe nadar. Dificilmente teríamos morrido afogados, porque as ondas ali no canal protegido nunca chegam a ser realmente altas, mas com certeza a água devia estar gelada, e se você bater com a cabeça em algum lugar e desmaiar, babau. Novamente não tive nenhuma reação adrenérgica, mas tive os pensamentos mais estranhos, coisas completamente nada a ver com a situação, a não ser por uma vaga lembrança dos tempos de curso de Botinho, na praia, no Rio. Pedimos pra voltar, mas já estávamos tão perto da ilha que não tinha sentido. Então seguimos adiante, e quando chegamos demos de cara com o tal do catamarã. Desembarcamos o pessoal mais highlander e nós quatro demos a volta com o gommone até a lateral do catamarã, pra ver se o capitão aceitava nos pegar. Ele logo disse pra gente que era a maior roubada, porque ele teria que encarar o mar aberto, e tinha uma tempestade chegando! Pelo menos no canal a tempestade fica muito limitada, e pior do que o que enfrentáramos não podia ficar. Ele chamou a Estancia pelo rádio (o rádio do gommone molhou e não funcionava) e pediu um barco maior pra vir nos pegar. Como iria demorar 20 minutos, eu e Mirco, mais calmos, descemos na ilha.

Com o vento que soprava, os pingüins não nos ouviam, e por isso chegamos muito perto. Mais perto inclusive do que deveríamos, porque há regras pra passear pela Pinguinera, e os limites que devemos respeitar são marcados com troncos de árvores pelo chão. Acho que a Ana, pra compensar o susto da viagem de ida, deixou que a gente abusasse um pouco. Os pingüins são foférrimos e graciosos, e a ilha é pequenininha mas toda coberta de árvores na parte interna, então deixamos a praia de cascalho e fomos seguindo a trilha subindo a ilhota. Ali a trilha é delimitada por corredores com corrimão de madeira, e há bancos de praça pro pessoal sentar e ficar observando os pingüins. Não eram muitos, porque a maior parte já tinha partido pra águas mais quentinhas, mas ainda havia alguns mudando as penas, e muitas mamães em seus ninhos-buracos, tomando conta dos filhotes que ainda não tinham crescido o suficiente pra encarar uma longa viagem. O mais estranho é ver esses pingüins saindo do meio do bosque. Pra quem sempre associa pingüim a iglu e iceberg, as imagens são lindas, mas bizarras.

A essa altura do campeonato o vento tinha levado embora as nuvens e o céu ficou limpo. O mar virou uma piscina. Um arco-íris apareceu lá do outro lado. Vimos o outro barcão chegando e descemos. Todo mundo embarcou nesse barco maior, chamado Flamingo; a Ana, completamente encharcada e morrendo de frio, montou no gommone, mais rápido, pra chegar logo à Estancia e trocar de roupa. Lá foram eles embora na lancha, e nós finalmente partimos.

Ou, tentamos. Porque nesses dez minutos de espera a maré desceu e o Flamingo encalhou. O marinheiro deu uma buzinada e o pobre do André, que já estava com o gommone quase na Estancia, teve que voltar pra tentar nos rebocar. Claro que não rolou, então desceu todo mundo do Flamingo outra vez, subiu no gommone e fomos embora. Pelo rádio, o Flamingo chamou um rebocador, que encontramos na metade do caminho. O rebocador achava que nós é que precisávamos de ajuda, então quando nos viu indo na direção da Estancia, deu meia-volta e começou a nos seguir! O capitão não entendia os sinais do André, que agitava os braços e apontava pra Pinguinera; lá fomos nós dar meia-volta outra vez, pra nos aproximar do rebocador e explicar que quem tava atolado agora era o Flamingo. Quando finalmente chegamos à Estancia, a pobre da Ana tava tremendo, e todos nós muito nervosos. Eu pelo menos desci na ilha, mas a Chiara e o Gianni, que tiveram a verdadeira crise de nervos só depois que o gommone aportou na ilha, não fizeram questão nenhuma de descer. E agora, mais calmos, fomos nos secar em frente ao aquecedor a lenha na minicafeteria precária da Estancia. Peguei a Giuliana no colo e fiquei dando voltas pela sala, lendo as legendas das fotos nas paredes, aprendendo a história da Estancia e contando pra ela, que me olhava como se estivesse prestando a maior atenção e se o assunto fosse interessantíssimo.

A viagem de volta, no microônibus, foi tranqüila. Fomos interrompidos só por dois touros que brigavam no meio da estrada, e não tinha buzina que os distraísse. Tivemos que esperar que os pimpolhos resolvessem continuar a briga em outro lugar pra poder passar. O motorista nos deixou no Opíparo, onde comemos tudo o que tínhamos direito, e dali direto pro hotel lilás. Nem comentamos o Incidente Pinguinera com a proprietária, senão teríamos que ficar contando detalhes até as cinco da manhã.

El Calafate – Ushuaia

Acordamos mais tarde hoje, fizemos as malas, e acabamos tomando café sozinhos com o Pasqual, o cachorro da pousada, porque o Gianni e a Chiara fizeram o contrário e tomaram café cedo pra depois fazer as malas. Deixamos tudo pronto na recepção, fizemos o check-out, passamos no albergue pra devolver o abridor de latas que o Mirco tinha pego emprestado pra abrir uma lata de um quilo de pêssego em calda (ele é viciado em pêssego em calda), e pegamos um táxi até o centro. Fizemos as últimas compras: um casaquinho pra Chiara (Nativos, Aldea de los Gnomos, 10 – não riam, apesar desse nome ridículo a Aldea de los Gnomos é uma galeria aberta, e cada loja é uma casinha de madeira muito bonitinha), brincos, um poncho pra irmã do Mirco, quadros com motivos indígenas (Pueblo Indio, Av. Libertador, 1080); deixamos os filmes do Gianni pra revelar (ele tira fotos com a digital, que não é uma Brastemp, e repete algumas com a velha, que é ótima) e fomos almoçar peixe no La Vaca Atada (sempre na Libertador), seguindo a sugestão da dona da pousada. Não sei se é porque me acostumei a comer peixe e frutos do mar preparados do modo mais simples possível, porque italiano não gosta muito de incrementar o que já é gostoso por natureza, mas não achei nada do outro mundo. Pedimos uma salada fria de frutos do mar pra dividir, depois todos fomos de risoto de lula com açafrão, que infelizmente veio cheio de pimentão, e de secondo pedimos lagostins com molho branco com champagne e cogumelos, que também não era lá essas coisas e escondia todo o sabor dos lagostins. Demos mais uma voltinha a pé pra digerir, pegamos as fotos e voltamos pro hotel. O microônibus que deveria nos levar ao aeroporto tinha acabado de chegar, então carregamos as malas e nos despedimos de El Calafate. Queria ter passado pelo centro novamente pra fotografar umas casinhas e uns hotéis deliciosos que ficavam escondidos em ruazinhas transversais à Libertador, mas o ônibus fez outro caminho e passou pela parte nova da cidade, onde tudo ainda é areia e as casas e hotéis e pousadas sobem da noite pro dia.

Chegamos cedo ao aeroporto e o vôo saiu no horário. Só que não tínhamos ligado o nome à pessoa, por assim dizer: tínhamos ouvido falar dos ventos patagônicos, visto seus efeitos sobre os pára-brisas dos carros, sentido na pele a ventania em Torres del Paine, mas não nos preparamos psicologicamente pra turbulência que obviamente resulta desse vento todo, ao descer em Ushuaia. Quase chegando à cidade, as montanhas altas e nevadas visíveis como uma pintura vistas da janelinha, lagos e deltas de rios abaixo de nós, um dia lindo com poucas nuvens, e de repente tuuuuuuuuuuuuuuum o avião deu uma descida, mas uma descida, meus queridos, do tipo que rearranja a arquitetura de todos os órgãos internos, e depois uma super-hiper-megasacudida, e só parou de sacudir quando pousou. Eu confesso que, muito estranhamente, não tive nem taquicardia; minhas supra-renais deviam estar dormindo porque fisicamente não tive reação nenhuma. Os outros três quase infartaram, principalmente o Gianni e a Chiara que detestam voar e às vezes têm que se dopar pra dormir, quando o vôo é mais longo. As comissárias de bordo nem tchum, e depois vieram nos dizer que era normalíssimo – claro, só as bestas quadradas aqui não tinham feito a conexão vento patagônico + avião = turbulência arretada. Todo mundo desceu meio pálido do avião, mas fora isso, nada de mais. Lá fora, enquanto esperávamos o taxista pra nos levar ao hotel (incluído no preço da hospedagem), o vento só não nos levava embora porque somos pesados (eu e o Mirco porque somos gordos, Gianni e Chiara porque são altos). Uma coisa horrorosa. Lugar ideaaaaal pra mim, que ODEIO vento. Sapatinho que eu calço.

O táxi deu a volta numa baía, onde fica o aeroporto, e entramos na cidade. Uma coisa horrorosa. Favelão geral, só que na planície. A única diferença é que entre um barraco e outro, entre uma casa precária e um terreno baldio cheio de cacarecos podres, entre um container e casas inacabadas mas ocupadas assim mesmo, há uma casona enorme, ou um chalé bonitinho. Muito esquisito. E as cores? Casas lilás com telhado azul. Casas amarelas com telhado verde. Casas cor-de-rosa com telhado roxo. Casas vermelhas com telhado bege. Socorro! Vimos até umas casas revestidas com papel alumínio. Sim, aquele que a gente usa pra cobrir a lasanha no forno. Asfalto só em algumas ruas. Calçada, em nenhuma rua além da principal, praticamente. Cachorros em tudo que é lugar. Sinal de trânsito é coisa rara, ao ponto de virar ponto de referência, que nem aqui em Bastia. Poças d’água, crianças brincando nas poças, gente mijando na rua, uma coisa de louco. Os carros também são todos detonados e TODOS os pára-brisas são rachados. As pessoas são horrorosas e as lojas são feias, os restaurantes têm cara de sujos, uma coisa estranhíssima. Esclareço logo que quem deu origem à cidade foi uma penitenciária, que ainda existe e hoje é um museu. Tudo fez sentido.

O hotel é muito estranho. É uma casa amarelinha, no alto, longe do centro. Por dentro é tudo muito limpinho, perfumado, e lilás. TODAS AS PAREDES SÃO LILÁS. E as televisões dos quartos são ROXAS. E a roupa de cama e de banho é COR DE VINHO. A dona do hotel, que mora com o marido na casa logo atrás, em cuja cozinha tomamos café da manhã, é uma figuraça. Ela também é de Buenos Aires, e tem um jeito de falar muito engraçado. Logo de cara nos aconselhou a não pegar o famoso trenzinho do fim do mundo, porque segundo ela custa caro e o percurso é “mutcho cortito”, não vale a pena. A mulher parece ser boazinha (o que não a impede de ser paracula, como veremos mais adiante) e fala o tempo todo, sem parar. Queríamos provar a centolla (pronúncia: centoja), um caranguejo imenso feio pra cacete que é a iguaria típica de Ushuaia. Ela nos recomendou um restaurante, Al Grande Chef, que segundo ela não é coisa de turista, é freqüentado pela gente do lugar. Então, depois de uma rápida volta no centro, de três pares de calças jeans pro Mirco (porque ele SEMPRE arruma algum lugar pra comprar jeans baratos, onde quer que vá, e não é maluquice mas porque ele precisa, já que basta uma espirrada de tinta pra destruir uma peça de roupa) comprados numa galeria onde com certeza voltaremos antes de ir embora, de um banho no hotel, tocamos pro tal restaurante.

Nosso garçom era vesgo, com queixo de barracuda, e incrivelmente simpático e bonzinho. O mais engraçado nessa viagem até agora é definitivamente a nossa comunicação com os garçons, vendedores e afins, porque eu abomino o espanhol e só entendo se falam muuuuuuuuuito devagar, mas não consigo dizer uma palavra em espanhol sem ter vontade de rir (porque me lembro logo da Maria do Bairro, de Topázio e outras bizarrices mexicanas); Mirco namorou uma argentina por algum tempo e fez curso de espanhol e acha que fala, mas não fala nada; Gianni e Chiara estudam espanhol no curso tabajara do Comune de Bastia, mas ele é totalmente desprovido de talentos lingüísticos e ela, que aparentemente tem facilidade pra coisa, teve poucas aulas, que não são suficientes pra tornar mais fácil a comunicação. Mas de qualquer maneira conseguimos: Mirco não queria peixe e pediu uma parrilla que nem tocou porque lhe veio um episódio lancinante de cefaléia, eu pedi truta com recheio de centolla e acompanhamento de legumes (gostoso, mas não gostoooooooooso), Gianni foi corajoso e pediu centolla crua marinada no limão, e Chiara foi de centolla à milanesa, que segundo ela tinha gosto só de queijo e mais nada. Na verdade a centolla tem gosto de kani-kama, ou seja, de nada. Mas pode ter sido porque não fomos ao Tia Elvira, que tem fama de servir a melhor centolla da cidade e nos foi recomendado pelo taxista que nos pegou no aeroporto.

O vesguinho arrumou uma aspirina pro Mirco, chamou um remis pra gente, e tocamos direto pro hotel de paredes lilás.

Parque Nacional Torres del Paine, Chile

Acordamos às cinco da manhã. Na noitinha anterior, a dona da pousada tinha deixado no nosso quarto uma bandejona com bolo, garrafa térmica com café com leite, geléia e torradinhas. Tomamos café às 5:40 e às 6 o microônibus passou pra nos pegar. Pensamos que seria o mesmo esquema de ontem, ou seja, depois mudaríamos pra um ônibus maior, mas que nada! Passamos em vários albergues e hotéis e pousadas na cidade, recolhendo gente. Todo mundo meio sonolento, encasacado e cheio de comida na mochila, porque o dia seria longo.

A estrada é longa e tediosa, em linha reta, ladeada de desertos, com um carneiro aqui e ali, pastando os tufos de plantas ressecadas. A van era velha e sacolejava toda, e depois de uma certa hora ninguém mais conseguia dormir. Acabamos fazendo amizade com uma galesa boazinha mas muda feito um peixe, uma russa interessante que morava em NY, e uma suíça maluca e muito simpática. Depois de não sei quantas horas de viagem, finalmente chegamos à fronteira com o Chile. Aí começa a chatice: todo mundo desce da van, faz fila na casinha da Argentina, entra, dá o passaporte, olham todos os seus carimbos, carimbam felizmente na mesma página do enorme carimbo de entrada na Argentina, devolvem o passaporte, sai, entra outro. Sobe todo mundo na van de novo. Atravessamos alguns quilômetros de terra de ninguém, chegamos à casinha do Chile. Desce todo mundo da van, faz fila na porta da casinha, não pode entrar com certas coisas no parque, tipo salames e embutidos, frutas, etc, todo mundo começa a comer desesperadamente as bananas e sanduíches que tinha trazido achando que ia conseguir passar, dá o passaporte, carimbam, devolvem o passaporte, vai ali na esteira que vão revistar a mochila, confiscam uma banana, jogam no INCINERADOR. Sai, entra outro. Sobe todo mundo numa Besta, também com o pára-brisa rachado, fazemos três metros e paramos outra vez. É uma espécie de bar-lojinha de souvenir, um cabeludo surge não se sabe de onde e nos manda entrar pra trocar dinheiro, porque pra pagar o ingresso no parque tem que usar necessariamente pesos chilenos. Desce todo mundo da van, entram no bar-lojinha, trocam dinheiro e compram balas e chicletes, sobe todo mundo na van de novo, e continuamos.

Não chegamos nunca, é o que parece. A estrada é TERRÍVEL, nem asfaltada mas nem de terra, mas de pedras. Não falo de paralelepípedos nem de cascalho, mas de PEDRAS mesmo, de modo que pulamos feito cabritos por mais ou menos uma hora, as vozes saindo tremidas por causa dos pulos, enquanto o vento uivava lá fora e o tempo fechava. O Gianni tem hérnia de disco e acho que nunca sofreu tanto na vida dele. Na entrada do parque, a russa, a suíça e mais uma galera desceram, porque iam passar uma semana inteira fazendo trekking e dormindo nos hotéis e albergues do parque. Aliás, descobri que há um vastíssimo mundo de trekking que eu não conhecia, a literatura sobre o assunto é extensa, as lojas vendem infinitos modelos de casacos, calças impermeáveis e/ou antivento, tênis de trekking caríssimos. Fiquei tentada.

Entre os doidos que tinham feito aquela viagem imensa de ida pra ficar só um dia e encarar outra viagem enorme de volta, além de nós quatro, dois casais de espanhóis e a pobre da galesa muda. Depois de uma parada pra tirar fotos coletivas, montamos na Besta de novo e tocamos pra frente.

Vimos inúmeros guanacos, esses primos do lhama. Algumas emas também, cinzentas, camufladas contra o cenário de tons de cinza e terra. Depois de uma curva, no meio do nada, vemos o cabeludo na estrada, fazendo sinal de carona. Entra na Besta e se apresenta: é Daniel, nosso guia naquele dia. Paramos num laguinho pra tirar fotos em meio àquele vento fortíssimo, e quem nos esperava? Uma raposinha, zorro, em espanhol. Demos sorte, porque apesar de não ser rara, é arisca e normalmente prefere não se deixar observar. Ela ficou lá, deitadinha, os pêlos se agitando no vento, os olhinhos piscando, olhando muito séria pra gente enquanto o pessoal tirava fotos e mais fotos. Quando alguém abusava e chegava muito perto ela botava os dentinhos pra fora, mas com o vento não dava pra ouvir o rosnado. Linda, linda, linda!

Daniel explica que paine, na linguagem indígena local, quer dizer azul. As torres mesmo nós não vimos, até porque o tempo tava horrível, mas ele nos mostrou os Cuernos del Paine, ou chifres, coitados, que eu achei, pelas fotos que vi das Torres, ainda mais bonitos e interessantes. Com aquele céu tempestoso em cima, então, pareciam uma pintura.

Passamos por vários lagos e riachos. A paisagem é lindíssima; imagino que em um dia de céu limpo seja realmente de deixar você de boca aberta. O mapa que nos deram na entrada mostra inúmeras trilhas de trekking, algumas sobre as várias geleiras. O parque tem uma superfície de 242.242 hectares e foi criado em 1959. Em 78 foi declarado Reserva da Biosfera pela UNESCO. O folhetinho também fala das coisas que poderemos ver: o guanaco, o zorro, o puma, o raro huemul, em extinção, os cisnes, o condor. No verão a temperatura alcança máximas de 15º C e mínimas de 3º; no inverno vai de 8 a 2,5 graus. Os ventos predominantes sopram de oeste pra leste, e podem chegar a 60 km/h nos meses de outubro a março. Que sorte a nossa.

Paramos pra ver uma cachoeira, que molhou todo mundo naquele vento. Vimos um pato quebra-corrente, também raro, de cabeça vermelha, que se joga na correnteza como se fosse muito simples nadar contra aquela água forte e voltar pras pedras. A vista é deslumbrante e tiramos milhões de fotos, mas não foi fácil voltar à Besta, caminhando contra aquele vento maldito.

Já era hora do almoço e fomos comer numa espécie de pensão-restaurante tabajaríiiiissima no meio do parque. Eu tava sem fome e pedi uma sopa de frango, que veio com pelotas de pó pra sopas tipo Knorr, na maior cara-de-pau. Como sentamos todos juntos porque éramos poucos, acabamos finalmente conhecendo os dois casais de espanhóis, muito simpáticos. Os mais jovens eram de Barcelona, os senhores eram de Valencia, e falou-se muito da situação econômica decadente de Itália e Espanha e das gafes dos políticos de ambos os países.

Depois de comer continuamos até o Lago Grey, que tem esse nome porque é cinzento, pelo menos mais do que os outros lagos, que são azuis como o Lago Argentino. Pra chegar nele atravessamos uma ponte de madeira e cordas, daquelas que balançam terrivelmente. Subimos uma ladeira, olhamos pro alto e vemos periquitos dando escândalo, pousados no galho de uma árvore. Continuamos, e de repente vemos um murundu de gente em silêncio tirando fotos. Daniel logo faz shhhhhhhhhhh e vamos todos ver o que era: HUEMULS!!! São cervos, lindíssimos, estatisticamente considerados extintos. Em toda a extensão do parque só existem 50 exemplares, e nós demos a cagada de ver um casal descansando amarradão entre troncos caídos e o capim alto. Confesso que fiquei emocionada e por pouco não comecei a chorar. O Daniel trabalha no parque há seis anos e só tinha visto o bicho uma vez. São lindos, lindos, lindos.

Descemos a ladeira e damos de cara com a seguinte paisagem: uma praia IMENSA, de areia cinzenta, com um arbusto esquisito aqui e ali, inclinado pelo vento; uma massa de água cinzenta, e esses pedaços de gelo azuis boiando; ao fundo, as montanhas envoltas em nuvens e, supostamente, neve; láaaaa no fundo, a geleira, prima do Perito Moreno, que deu origem a esses pedaços flutuantes de azul. Meninos, não tem como descrever. Tem até foto no flickr, mas vocês têm que ir lá ver com os zóio que a terra há de comer. É bonito demais, e mais ainda porque é completamente surreal. Na praia de cascalhos, grandes pedaços de gelo esculpido pelo vento. O vento sopra sem parar e depois de meia hora afasta um pouco as nuvens; as fotos ficam melhores. A praia é longa e não chegamos até o final, de onde se vê melhor a geleira. Já tá tarde e é hora de voltar. Paramos pra ver uma moita de calafate, experimentamos as frutinhas, que têm gosto de amora e mancham a língua. O macho do huemul ainda tava ali quietinho, a fêmea já tinha ido embora.

Montamos na Besta e tocamos de volta pra casa. No caminho Daniel explicou que o puma, que infelizmente não deu as caras, é o único predador do guanaco no parque. Quando passamos pelos bandos de guanacos, um deles, que o Daniel explicou ser o macho dono do harém, logo vinha na nossa direção, botando banca. Se fosse um puma ou algo igualmente ameaçador, bastaria o guanaco-sultão levantar o rabinho: os outros do bando entenderiam o sinal e sairiam correndo em fila, porque eles sempre fogem em fila (e isso eu vi, porque algum sultão deve ter sido apressado e deu o sinal sem esperar pra ver se era puma ou não. Todos correndo ladeira acima em fila indiana, uma gracinha). No caminho até a saída do parque ainda vimos flamingos num laguinho.

A viagem de volta foi dura e longa e chata, ao lado da Chiara veio um israelense fedorento que ouvia música altíssima no walkman mesmo depois de ter caído no sono, e quando finalmente chegamos, já era meia-noite e eu não queria mais saber de nada. Os meninos foram papear com os meninos do albergue ao lado, mas eu tomei meu banho, escrevi no meu diarinho, e dormi vendo E.R.

el calafate – perito moreno

Tomamos café da manhã praticamente feito em casa: pão quentinho, torradinhas deliciosas, geléias de pêssego e cereja feitas em casa que todo mundo adorou (eu não, tenho pavor de geléia), bolo de laranja e de chocolate, café com leite, suco de laranja, eu com meu leite + achocolatado. Preparamos nossos sanduíches com as compras de ontem, e às oito um microônibus veio nos pegar na porta da pousada. Descemos até a cidade, onde mudamos pra um ônibus normal (a pousada fica na parte alta da cidade, e ônibus grandes não seguram a onda das ladeiras de areia), e fomos direto ao Parque Nacional Los Glaciares. A estrada é bem longuinha e a paisagem é estranha e muda bastante quando se entra no parque: começa-se a ver estranhas árvores peladas, de troncos cinzentos e retorcidos, aparentemente mortas, mas com alguns brotos saindo daqui e dali. Muitas árvores derrubadas – os ventos patagônicos podem chegar a TREZENTOS E CINQÜENTA QUILÔMETROS PÓR HORA. Há tratores e caminhões fazendo obras na estrada estreita, e durante um período do dia, no meio da tarde, o trânsito fica proibido.

E aí acontece o seguinte: você vai vindo pela estrada, vendo aquelas árvores todas, aquelas montanhas com o topo pelado e o resto coberto de vegetação, e de repente, lá atrás de uma curva, vê uma coisa branco-azulada muito esquisita, boiando na água anil do Canal de los Témpanos, que cai no Lago Argentino, às margens do qual fica a cidade de El Calafate. O ônibus vai se aproximando, se aproximando, o negócio branco-azulado vai ficando mais visível mas ainda incompreensível, você vai ficando curioso, querendo entender, até que o ônibus pára e te deixa numa espécie de praça/estacionamento de ônibus e o motorista marca um horário pra você voltar e você sai descendo pelas passarelas e começa a babar, porque é uma coisa linda demais da conta, sô. Mas então, você tá ali tirando fotos e babando, tentando entender aquele azul de onde é que vem, quando de repente escuta um crack. Saca desenho animado, quando o coiote tá na beira de um precipício e a plataforma onde ele está se racha e começa a se separar do corpo da montanha e você ouve o barulho da rachadura se alongando? É aquele barulho, igualzinho, mas muito mais alto. E depois vem um barulho de tiro ou de trovão, e você não sabe de onde vem, e não entende o que é enquanto não vê um pedação da parte anterior da geleira se destacando e caindo na água anil do canal. Cada pedação monumental, e o barulho é assustador. A geleira é linda, e mais linda ainda porque fica no meio daquela água azul, e com montanhas verdes e árvores ao fundo. Ou seja, totalmente nada a ver. Então agora vou explicar como é que essa geleira consegue estar ali, já que não é tãaaaao frio (porque se fosse as árvores não existiriam, certo?). A explicação quem nos deu foi o guia do minitrekking, que conheceremos daqui a pouco.

El Calafate não fica tão no sul assim. Sua latitude equivalente no hemisfério norte é roughly a mesma de Londres ou Paris. Ou seja, em teoria o clima é temperado. Só que uma conjunção muito particular de fatores geográficos causa fenômenos estranhos, como essas geleiras malucas: como em todo aquele intervalo entre paralelos, ao redor da Terra, só existe a Nova Zelândia, além da Patagônia, os ventos que giram naquela faixa não só correm livres, sem obstáculos, como também carregam uma cacetada de umidade, recolhida da evaporação do mar. Quando os ventos, que normalmente correm de oeste a leste, dão de cara com os pequenos e delicados Andes, lógico que não conseguem passar direto como se nada fora. Encontrando aquelas alturas geladas, os ventos úmidos não têm outra alternativa que não nevar. Neva 300 dias por ano naquela zona, nas montanhas. Toda aquela neve que cai vai se compactando sob o seu próprio incrível peso, virando uma massa densa que, com os anos, vai virando gelo. Entenderam? NÃO É ÁGUA QUE CONGELOU, É NEVE QUE COMPACTOU. E por que é que essa massa de neve dura desce a ladeira, então? Por três motivos, segundo nosso guia: porque é muito pesada, e seguindo a máxima de que pra baixo todo santo ajuda, quanto mais pesado, maior vai ser a velocidade de descida. Porque as montanhas são altas, ou seja, o plano é inclinado, e quanto mais inclinado, maior vai ser a velocidade de descida. E porque, como não é exageradamente frio, conforme vai se afastando do cume gelado das montanhas, uma parte da geleira vai derretendo. A película de água que se forma entre a geleira e a montanha funciona como lubrificante, facilitando a descida da geleira. Disse o guia que até 1917 a geleira descia cerca de uma centena de quilômetros por ano, e que nesse ano tocou a península de Magallanes pela primeira vez, e a partir daí se estabilizou. Hoje é uma das poucas geleiras estáveis do mundo, fica mais ou menos no mesmo lugar o tempo todo. A velocidade de formação, com a neve nas montanhas, é de um metro ao dia; esse mesmo metro é mais ou menos o que se perde por dia, entre os blocos que se soltam e a neve que derrete. Então ele vai descendo muito pouco conforme o inverno chega, descendo, descendo devagarinho, paciente; no máximo do inverno toca a península de Magallanes, bloqueando a passagem da água de um lado pra outro do canal. O lado que não se comunica com o Lago Argentino continua a receber água dos riachos e rios que descem das montanhas e colinas, e o nível da água vai aumentando. O peso dessa água toda pressiona essa ponta da geleira que toca a península, formando arcos, que mais tarde caem. Ou então a quebra é mais violenta, com a pressão da água derrubando de uma vez essa ponta que toca a península – e nessas vezes dizem que o espetáculo é uma coisa impressionante, como aconteceu no ano passado. Esse ano, infelizmente, a ruptura foi gradual e nada espetaculosa, e aconteceu de janeiro a fevereiro – normalmente rola em março. Como essa geleira mais famosa, o Perito Moreno, existem pelo menos outras 50, menos famosas e algumas menos acessíveis.

Mas então, continuando: depois de um zilhão de fotos e várias babações, fizemos nosso lanchinho e voltamos pro ônibus. Andamos mais um pouco e descemos num pequeno porto do outro lado do canal, o tal lado que não se comunica diretamente com o Lago Argentino quando a geleira desce e bloqueia a passagem da água. Passamos pertinho da outra diagonal da ponta da geleira, e a vista é deslumbrante, mas rola um medinho de ver um pedação caindo e fazendo rebolar o barco. Felizmente (ou infelizmente, porque apesar do medo deve ser lindo) não vimos nada do gênero. Descemos na margem lá do outro lado, onde há um refúgio dos guias que fazem esse minitrekking. Todo mundo faz xixi, deixa as bolsas e mochilas que não servem e calça luvas que eles sempre têm de reserva – repito, não porque é frio, mas porque a geleira não é de gelo mas de neve congelada, que corta feito navalha. Parece que é superfrio porque estamos muito vestidos, mas na verdade estávamos era suando debaixo daqueles casacos todos, que não queríamos deixar no Refúgio porque, bem, nunca se sabe. Caminhamos por entre pedregulhos grandes e poças d’água até chegar às margens da geleira, onde ela se encontra com a terra e as rochas. Paisagem estranhíssima. Nossos guias eram Fernando, que foi quem nos explicou a formação da geleira, usando um graveto pra desenhar na areia, a Luli e o Fabio, todos muito gentis. Sentamos nuns banquinhos e os guias começam a amarrar esses papatinhos com grampos por baixo, nos nossos sapatos. Recebemos instruções de como nos movimentar sobre a geleira, e começamos a subida. Claro que não subimos na parte que parece uma floresta de picos de gelo azul, mas nessa parte lateral, onde a neve compactada formou dunas, por causa do relevo do terreno que há por baixo. É divertido e bonito, mas MUITO cansativo porque os diabos dos “sapatos” são pesados que nem a peste, e porque subir e descer ladeira toda encasacada não é nada legal. No caminho vêem-se poças de água, buracos (“sumidouros”) às vezes do diâmetro de um braço, às vezes do tamanho de um carro, causados pelo derretimento da geleira. A água dentro desses buracos é cristalina e puríssima – deliciosa, porque não tem gosto de nada. Descemos em um desses grandes buracos, e é uma coisa esquisitíssima: esse teto de gelo azul que pinga na sua cabeça sem parar, e um riacho correndo por entre a terra e as pedrinhas, por baixo. Bizarro.

Depois de cerca de uma hora de trekking, os guias nos levam até um mini-vale entre duas dunas onde fica perpetuamente armada uma mesinha com uma tigela de bombons da Arcor imitando Serenata de Amor, umas garrafas de whisky, copos e duas jarras, que se enchem com água de um sumidouro qualquer. O whisky é servido, claro, com gelo raspado diretamente da geleira. Now that’s a classy whisky on the rocks alright.

Voltamos ao Refúgio, pegamos nossas coisas, quem queria tomou café, quem precisava fez xixi, o barco chegou, voltamos ao porto, pegamos o buzum e voltamos pra cidade. Gianni e Chiara foram à missa das 8 e eu e Mirco fomos fazer compras e trocar dólares. Pegamos os meninos na igrejinha e fomos jantar no Mi Viejo de novo; dessa vez pedi um salmão grelhado, que veio imenso e delicioso, com pirê de batata. Os meninos atacaram de chinchulinas (em italiano se chamam trecciole e são consideradas uma iguaria, ainda mais depois que todas as doenças malucas de vacas e afins proibiram sua comercialização: são os intestinos da vitela, coitada. Não como nem que me paguem.) e parrilla, Chiara pegou leve e além das chinchulinas comeu só uma omelete espanhola (com batatas e cebolas). Voltando à pousada, fui direto dormir (leia-se ver E.R.), enquanto o resto do pessoal foi bater papo com o Mariano e o Matias no albergue.

el calafate

Acordamos às cinco da manhã, nada de café porque o bar/restaurante colado ao hotel ainda não tinha aberto (mas já tinha gente esquentando as chapas e recolocando as cadeiras no lugar), às quinze pras seis o nosso bom velhinho taxista de Mendoza nos esperava na porta. Deixamos as malas maiores, com as roupas de verão, no novo hotel e fomos direto pro aeroporto internacional, o Ezeiza (e vou evitar comentários sobre esse nome ridículo). Mirco demorou mas finalmente chegou; tinha sido mandado pra esteira errada de bagagem, e pra fila errada do novo check-in, mas no final das contas tudo correu bem e às 7:50 partimos com o vôo 1892 com destino a El Calafate, já na Patagônia. No aeroporto de Calafate, que, se não me engano, tem menos de dois anos de vida e é superbonitinho, uma van nos esperava pra nos levar ao hotel. O hominho segurava um cartaz com nossos nomes, TODOS errados, menos o meu: Balducci virou Valducci, Baldan virou Valdan, e Gianni, que não tem B nem no nome e nem no sobrenome, virou outra coisa que não lembro.

O caminho até a cidade não é longo mas é esquisito: tudo muito desértico, em tons de cinza e marrom, aquele lago azul-anil (o Lago Argentino), as montanhas nevadas ao fundo. E cercas, muitas cercas. Mas o que diabo neguinho tanto cerca aqui, se não há nada? De vez em quando víamos cavalos e uma meia dúzia de ovelhas, nada que, na nossa cabeça, justificasse as cercas, mas vai entender. O motorista fazia o tipo antipaticão (devia ser porteño) e preferimos não perguntar nada.

O hotel era uma diliça. Novíssimo, quatro meses de vida. A casinha bonitinha tem dois andares: embaixo fica a recepção, a mini-cozinha e as mesinhas onde os hóspedes tomam o café da manhã. No andar de cima mora a dona da pousada, que tinha aquela simpatia profissional de quem sabe que tem que ser simpático pra poder faturar. Não preciso dizer que é porteña. A pousada tem um cachorro, que se chama Pasqual e é um amor. Milhões de outros cachorros circulam por essa parte da cidade, fora do centro, onde as ruas são de areia – não terra, areia mesmo. Os únicos quatro quartos da pousada ficam nessa construção com cara de estrebaria. Tudo novíssimo, lógico, de bom gosto, o aquecimento sai do chão e assim não ocupa espaço, tudo é limpo e cheiroso, o banheiro tem a maldita cortina de plástico e uma janelinha sem cortina que dá de frente pra um restaurante, mas com a água quente aberta o vapor embaça a vidraça e funciona como cortina. Tem TV a cabo, graças aos céus. Não tem armário, e sim um cabideiro aberto atrás da porta do quarto, mas ninguém fica aqui por muito tempo, por isso não teria sentido ter um armário propriamente dito.

Nós só deixamos as malas nos quartos e pedimos pra porteña chamar um rádio-táxi (que aqui se chama remis). Descemos até a cidade, que é charmosíssima, e no caminho vimos uma infinidade de novas construções brotando do chão, algumas casas, outras presumivelmente serão pousadas ou restaurantes, algumas são grandes mesmo e virarão mega-hotéis, já que pelo visto a Patagônia vai ser o grande must turístico dos próximos anos. Preço surreal do táxi, o primeiro de muitos que pegamos e, como TODOS os outros, com o pára-brisa rachado por causa das pedras que o vento joga: TRÊS PESOS. Menos de um euro. Dividido por quatro pessoas. Ho ho ho. A arquitetura é linda e me lembra cidadezinhas do interior da Noruega, sei lá, muita madeira, casas pequenas, de um andar só, com imensas vidraças e vasinhos de flores e plaquinhas de madeira e telhados fofinhos e cerquinhas ajeitadinhas. Um hotel em particular me deixou de boca aberta de tanto que é bubu, mas há vários, vários outros, sempre assim de madeira e tanto, tanto vidro. Lindos! À noite, iluminados por dentro, são escandalosamente bonitos e elegantes. As lojas são bonitinhas e cheias de coisas lindas pra comprar. Muitas vendem cafonices tipo roupas indígenas, artesanato em couro cru, essas coisas horrorosas que ripongas adoram, mas há muitas coisas bonitas. Há uma quantidade impressionante de cachorros nas ruas, muitos com coleira e medalhinha de identificação. Andam sozinhos ou se reúnem em grupos, mas não vimos nenhuma briga, só algumas “discussões em voz alta”, por assim dizer. Muito estranho.

Não tínhamos almoçado e eram duas da tarde, e saímos catando restaurantes pra almoçar. São muitos e todos com cara de limpinho; acabamos entrando no Mi Viejo, um restaurante bonitinho que exibia, como numa vitrine, quatro cordeiros pendurados cozinhando/defumando em torno de um braseiro. Estávamos todos loucos por uma parrilla, o bom e velho churrasco, e pedimos uma que o menu dizia ser suficiente pra seis pessoas. O garçom, eficiente e prestativo, trouxe a chapa fumegante à mesa, mas se aquilo ali dava pra seis pessoas, então são seis pessoas de Biafra com estômagos do tamanho de limões-galegos, desculpem o mau gosto. No final das contas alguns pedaços de carne eram ótimos, mas pra mim carne espetacular é carne que você come toda sem deixar nada no prato, sem precisar ficar roendo osso, lutando contra nervos e pedaços de gordura, mastigando por cinco minutos até conseguir engolir. As lingüiças eram horríveis. Mas a salada e o pirê de batata eram ótimos. O vinho local era muito xexelento, mas foi só pra provar mesmo, então tá de bom tamanho.

Voltamos pro hotel e paramos no albergue grande e envidraçado ao lado da nossa pousada. Era ali que inicialmente pretendíamos dormir, porque eles se chamam albergue mas também têm quartos de casal, mas estavam lotados. Muito gentilmente, foram eles que negociaram nossa hospedagem com a pousada ao lado, e também foram eles que nos venderam o passeio ao Perito Moreno, que vamos fazer amanhã. Descobrimos que o/a famoso/a Seba, com quem troquei vários e-mails, era O Seba, apelido de Sebastián, que estava em Buenos Aires mas deixou o irmão, Martín, e um outro porteño, Mariano, administrando o albergue. O Mariano morou no Rio e fala português, e, como todo mundo por aqui, usa Havaianas. O albergue é muito legal, os meninos são simpáticos (paraculos, mas simpáticos), a vista pro lago é maravilhosa. Batemos papo, discutimos o passeio ao parque de Torres del Paine, no Chile, aceitamos a sugestão de fazer o minitrekking no Perito Moreno, pagamos tudo e fomos à cidade jantar.

Os meninos tavam com desejo de comer pizza (…) e fomos pra um lugar pseudo-italiano. A pizza aqui vem, como no Brasil, entupida de mussarela vagaba e com quilos de orégano. A pizza italiana é espartana nos toppings e o orégano só vem se você pedir. Eu não tava com fome e não jantei, mas os meninos até que comeram a pizza sem reclamar. Sabendo que faríamos o tal minitrekking sobre a geleira no dia seguinte, saímos feito loucos pelas ruas tentando achar um par de luvas, que o Mirco esqueceu de trazer, e um gorro decente, que o Mirco esqueceu de trazer e eu não tenho porque odeio qualquer coisa que se ponha na cabeça. Acabamos achando tudo por preços meio turísticos, mas quando não tem tu, vai tu mermo. Também fizemos umas comprinhas num supermercado chamado La Anonima (…): pão, queijo, presunto, suco de laranja, guardanapos, tudo pra merenda de amanhã, já que ali no Parque Los Glaciares não há bares ou restaurantes e nós somos criaturas esfomeadas. Voltamos pra pousada em mais um táxi de pára-brisa rachado, sacolejando naquelas ruas de paralelepípedos, e fomos dormir.