the nix

Se minha memória não me falha, comprei esse livro por sugestão da Amazon. Como o título e a capa não diziam muita coisa, fui ler os reviews, que eram tão entusiasmados que acabei me deixando influenciar. Mas deixei ele quietinho na estante, junto com muitos outros que comprei e ainda não consegui ler, sem conseguir furar as múltiplas filas de leitura da minha vida – pós-graduação, vários clubes de leitura, grupo de estudo, desafios de leitura, podcast. O tamanho dele o deixa menos convidativo – é grosso e desconfortável demais pra ler na cama, pesado demais pra levar na bolsa.

Aí um dia ele aparece na minha timeline de alguma rede social, já não lembro qual. Pensei que podia ser uma boa ideia de livro de ficção pra alternar com as outras coisas mais intelectualmente desafiadoras que ando lendo, algo pra substituir o Alias Grace, que eu tinha terminado. Olhei pra ele, ele olhou pra mim, rolou um sentimento, comecei.

Rapaz… Que livro. Que livro!

Quem me conhece sabe que eu sou chata pra caramba não só com relação a tudo na vida, mas principalmente quanto à língua escrita. Há muitos livros que eu amo porque contam histórias, ou explicam conceitos, que eu considero interessantes e inteligentes. Mas são raros os que conseguem conjugar conteúdo shopster e forma, linguagem, modo de escrever, fora do comum. E quando isso acontece, eu sou fisgada na hora. The Nix é um deles.

O primeiro texto em inglês que eu realmente gostei de ler foi um conto do Roald Dahl. Não lembro mais qual era, mas eu ainda tava estudando no Britannia, era adolescente e não gostava de ler em inglês. Esse conto me pegou com as suas descrições inesperadas, com as associações de palavras pouco usuais – acho que foi a primeira vez que li algo como “terribly good”. Roald Dahl ainda é um dos meus escritores preferidos, certamente o contista que eu mais admiro no mundo inteiro ever. Depois dele fui ler Tolkien, por influência de um colega de turma do Britannia, e daí não parei mais de ler em inglês. Hoje 99% do que eu leio é nessa língua, e com o tempo eu fui ficando cada vez mais chata, porque tem MUITA coisa de qualidade, mas obviamente são poucos os que realmente conseguem fazer magia com as palavras.

Um exemplo de maga absoluta, sacerdotisa do inglês é a Zadie Smith – seu White Teeth é uma obra-prima de deixar qualquer um de queixo caído. Esse ano eu li Eleanor Oliphant is Completely Fine, de Gail Honeyman, que é um absoluto deleite, definitivamente a melhor leitura do ano (um obrigado gigantesco à rainha Vevila, que me passou essa maravilha). The Nix está na mesma categoria.

O autor é Nathan Hill, que eu até então desconhecia. Não sabia absolutamente nada sobre o livro antes de começar a ler, pois escolhi ler só os reviews sem spoiler. A história tem mil camadas, mas em nenhum momento você se perde; tudo é muito bem amarrado. As personagens são muito bem desenvolvidas e as situações inusitadas são maravilhosamente críveis e descritas com palavras escolhidas a dedo. Camelo e lata de sopa de tomate da Campbell’s na mesma cena? Tem. Qualquer coisa que eu disser além disso vai ser spoiler, então paro por aqui.

Coisas assim bem escritas têm dois efeitos possíveis sobre mim: ou me dão vontade de parar tudo o que eu tô fazendo pra sentar e escrever alguma coisa, qualquer coisa, ou deixam em mim a certeza de que jamais devo escrever mais nada na vida, nem receita de bolo, porque é impossível sair algo tão habilidoso quanto o que eu acabei de ler. De qualquer forma, fui dormir com um sorriso no rosto – literalmente; quando dei por mim, estava deitada no escuro sorrindo, ouvindo os roncos do Mirco ao meu lado, pilhada demais de felicidade pra conseguir dormir. Sonhei com o livro a noite toda.

Acabei de ver que tem em português, então aconselho vivamente que leiam. Ótimo presente de Natal. Busquem nas livrarias de bairro, perguntem se tem na sua biblioteca de estimação.

viajando com Fernando

Vamos falar de white people problems? Antes que os amigos comunista tudo venham me patrulhar, já adianto que 1) ao contrário dos últimos anos, não vi nenhum negro no avião (foram-se os tempos de Dilmãe), e 2) branco classe média faz muito mais merda que qualquer outro tipo de pessoa imaginável – Barra da Tijuca feelings, sorry not sorry. Além do mais, a viagem rendeu essa crônica, então tenham paciência com a tia aqui.

O voo pra Itália é sempre uma bosta. Primeiro porque costuma estar cheio de, bem, italianos, que não são exatamente disciplinados, discretos ou educados. Segundo porque está sempre cheio de, bem, brasileiros, idem. Terceiro que a Alitalia já morreu mas esqueceu de deitar: boa parte da frota tá bem velha e sonhando com a aposentadoria, a comida há anos não é mais a mesma, o pessoal de bordo é quase sempre antipático. Por essas e outras, esse meu voo de ontem não foi bem um pesadelo, mas passou perto.

Começou no embarque. Entramos no avião, fomos lá procurar nossos assentos e demos de cara com um senhorzinho que era a cara do meu avô paterno, só que com aquela barriga dura que chega a dificultar a respiração, sabe, vestindo conjunto de calça e casaco de nylon da Adidas (chamem de abrigo, de training, do que vocês quiserem). Eu e a Carol estávamos com a janela e o meio, e ele no corredor, mas ele estava sentado na janela felizão. Perguntei em inglês se ele queria ficar na janela, ele respondeu em espanhol que não falava inglês, dei uma enrolada e ele entendeu. Disse que tudo bem ficar espremido na janela, e eu obviamente fiz questão de dizer a ele que não se acanhasse se precisasse nos incomodar pra sair.

Além do senhorzinho de Adidas, também demos de cara com uma mala de mão cinza no meio do corredor. Coloquei a minha no compartimento e sentei pra esperar o fim do embarque e a decolagem, mas a mala de mão no corredor continuou ali, abandonada. Logo passou um comissário de bordo pra ajudar o pessoal a acomodar a bagagem, já que NUNCA tem espaço pra todo mundo. Começa o drama.

– De quem é essa mala?

Silêncio.

– SENHORES, DE QUEM É ESSA MALA?

O corredor inteiro se vira pra trás pra ver a mala e lá da primeira fila da nossa classe (a classe animal, obviamente) um garoto italiano levanta a mão e diz que a mala era dele, mas que ele tinha botado no compartimento. Ou seja, alguém TIROU A MALA DO GAROTO pra botar a sua própria.

Começamos bem, né?

Chega uma família pra sentar atrás da gente – avô, avó, mãe, um filho e, pelo que eu entendi, um primo do primeiro menino. O avô é uma daquelas figuras abomináveis: um Capitão Óbvio, com o agravante de achar que tá super abafando. O comandante fala “vamos pousar em 30 minutos”, ele enche o peito de empáfia e declara “vamos pousar em meia hora”. Esse tipo. Ainda por cima sofria de um mal comum a gente mal educada: um amor inexplicável por vocativos. Foi um tal de Flávia, vai pra lá, Flávia, me passa a mala, Flávia, cê tá me atrapalhando, chega pra lá, Flávia, que puta merda. Flávia, a avó, assim como todo o resto da família, tinha um tom de voz à altura de qualquer italiano, e o mesmo excesso de vocativos do avô. Foi aí que entrou o Fernando, um dos meninos. Fernando, senta. Fernando, bota o cinto. Fernando, guardou o casaco na mochila? Não mexe nisso, Fernando. Olha lá fora, Fernando.

Enquanto a Flávia chamava o Fernando sem parar, o avô levantou a mala pra botar no compartimento. Só que a mala caiu. Na minha cabeça.

– ALÁ, FLÁVIA, EU FALEI PRA VOCÊ CHEGAR PRA LÁ, FLÁVIA, VOCÊ ME ATRAPALHOU, FLÁVIA

Flávia deu um pequeno mas justificado piti, porque ela não tinha nada a ver com a história, e continuou passando instruções pro Fernando, do seu assento na fileira ao lado. Ou seja, antes mesmo do avião decolar, todos daquele setor já estávamos familiarizados com o Fernando e com o Lucas. Os dois estavam na janela e no meio, e a mãe de um dos dois, que não sei qual era, estava atrás de mim, no assento no corredor. Logo os meninos começaram a fuxicar em tudo – na tela de resolução pavorosa, no controle remoto antigão, na bandeja de plástico amarelado, no pacote com o travesseiro e a coberta. Os dois animadíssimos, e até aí tudo bem, mas falando altíssimo e cutucando os nossos assentos cada vez que enfiavam e tiravam o controle remoto do espacinho onde ele fica guardado embaixo da tela. Começaram a jogar um game qualquer, e até aí tudo bem, mas narrando TUDO em voz alta, com um canavial de interjeições e vários chutes e joalhadas nas nossas poltronas. A avó, da outra fila: Fernando, já olhou pela janela, Fernando? Botou o cinto, Fernando?

Passaram o voo INTEIRO assim. Inteiro. Mais de onze horas com esses dois cutucando a gente e falando alto. Como eu não tava no clima pra discutir, a cada cutucada eu levantava os braços pra trás e cobria a tela dele com a mão, dava um tapa nela, dava uma abanada com a mão pra ver se a criatura se tocava. Claro que não adiantou nada, porque eles tavam pilhadaços, não dormiram nada e também não pararam de falar nem de cutucar.

Voo interminável, não dormi nada, o senhorzinho do meu lado disse que era do Líbano – por isso a semelhança com meu avô, filho de sírio – mas que morava no Paraguai. Foram praticamente as duas únicas coisas que ele disse, porque ele dormiu, roncou MUITO e mudou de posição mil vezes durante o voo inteiro. Mas beleza, o voo interminável finalmente terminou. Sabem o que não terminou? A enxurrada de vocativos. Fernando, já tirou o cinto? Tomou café direito, Fernando? Não esquece o casaco, Fernando. Fernando, bota o casaco agora pra você ficar com as mãos livres pra puxar a mala, Fernando.

A filha da Flávia se levantou e esticou o braço pra abrir o compartimento da fileira na frente da minha, ou seja, duas à frente dela. Naquela posição cretina que contrariava as leis da física, LÓGICO que foi ela tentar puxar a mala que a bicha caiu – dessa vez na cabeça da mulher sentada no corredor na fila na frente da minha. A mulher ficou tão atônita que virou pra trás sem reação, somente uma expressão de WTF no rosto. A filha da Flávia pediu desculpas, repetindo “eu abri a porta e a mala voou, do nada, sozinha” mil vezes, talvez pra convencer ela mesma de que era isso mesmo que tinha acontecido. E a Flávia continuava no Fernando isso, Fernando aquilo. Nos dois assentos internos da fileira na frente da nossa, uma senhora e o filho estavam de olhos arregalados, ainda em choque com a cena da mala voadora, mas quando eu imitei o menininho do meme falando “Firnindi, vim iqui, Firnindi!”, eles começaram a rir e comentaram: nossa, o avião inteiro conhece o Fernando, que família chata.

Muito. Esperei a família do Fernando se afastar, com medo de mais alguma mala voar magicamente pra cima da minha cabeça, recolhemos nossas coisas e saímos placidamente do avião, mas ainda ouvimos a filha da Flávia gritando FERNANDO! no corredor em direção à saída. Eles ainda iam pegar uma conexão depois. Não sei o que é pior, viajar com a Alitalia ou com o Fernando.

sobre ser mulher e velha

Saiu hoje o penúltimo episódio da segunda temporada do Maria Vai com as Outras, podcast da Revista Piauí. Recomendo esse podcast pra todo mundo; a primeira temporada já foi ótima, mas a segunda tá totalmente ahazany. Esse penúltimo episódio foi sobre envelhecimento e tá muito interessante.

O fio condutor dessa segunda temporada é o corpo da mulher e o mercado de trabalho, o que torna difícil a identificação da minha parte, pois trabalho de casa há trocentos anos e também nunca fiz parte do mundo corporativo; nunca precisei pensar em “roupa de trabalho” ou aparência adequada pra trabalhar fora. Dar aula de inglês ou ficar sentada numa sala quente traduzindo não requer terninho nem salto alto, afinal.

As duas convidadas desse episódio são muito lúcidas, mas de maneiras diferentes, com posições diferentes com relação ao envelhecimento. Engraçado que são duas posturas diferentes, mas ambas peitam muito bem essa coisa do idadismo e dos dois pesos e duas medidas quando o assunto é mulher e envelhecimento.

O deixar transparecer a velhice e foda-se da Heloisa é, a meu ver, tão louvável quanto o não vou me render às regras, e às favas quem não gostar que a Marcia defende. Pessoalmente, estou no meio do caminho entre as duas. (A Marcia eu já tinha ouvido nesse episódio EQUISSELENTE do Dragões de Garagem, por sinal. OUVÃO!)

Sempre fico imaginando, ao ouvir os episódios, como seria a minha postura no lugar das entrevistadas. Há muitos anos trabalho de casa, então aparência física simplesmente não entra na equação no meu caso, de modo que honestamente não sei como reagiria se, sei lá, alguém implicasse com a minha tendência a falar besteira, fazer referência a memes e fazer caretas quando dou aula. Talvez por isso a maior parte das pessoas com quem convivo voluntariamente hoje em dia sejam bem mais jovens que eu – nunca me lembro que estou velha e que segundo o cânone, deveria estar rindo mais discretamente e falando menos palavrão (ao que eu respondo: foda-se). Acabo tendo pouca paciência pra quem se enquadra nas regras não escritas da velhice para mulheres. Mas não deve ser nada fácil enfrentar tudo isso no mundo corporativo, de modo que tiro o chapéu pra quem encara numa boa.

AMEI a fala da Marcia sobre o dever de peitar esse sistema idiota por parte de quem não é tímida e consegue se fazer ouvir. Sempre foi a minha política também, mas acho que nunca tinha formulado isso de maneira organizada na minha cabeça; simplesmente não conheço outro jeito de fazer, eu saio falando e simplesmente nunca sequer contemplei a possibilidade de não ser ouvida. A gente que tem mais cara de pau e desenvoltura tem, sim, a obrigação de desbravar o caminho pra quem tem mais dificuldade. Quando me demiti daquele manicômio onde trabalhei em Foligno, acabei falando muita coisa em nome da minha colega alemã, que falava um italiano bem pior do que o meu e tava nitidamente desesperada por não poder se emputecer com fluência. Eu ia falando as coisas e via, de rabo de olho, ela fazendo sim, sim, sim com a cabeça. Como eu sou desenvolta mas obviamente também tenho meus momentos de trava, sei bem como é estar com tanta raiva (ou medo, ou qualquer outra emoção intensa) que as palavras não saem, e o alívio que se sente ao ter alguém que dê voz ao que você não consegue expressar naquele momento é uma coisa palpável.

Ou seja, na dúvida, obedeçam à Angela Davis: assim como, segundo ela, “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, numa sociedade onde mulheres não são ouvidas e não são incentivadas a serem assertivas o suficiente pra exigir que sejam ouvidas (essa frase ficou horrível, as concordâncias devem estar todas erradas), não basta não interromper a colega. É preciso que a gente que tem cara de pau dê aquele chega-pra-lá maroto quando necessário, tipo DEIXA ELA FALAR, CACETA, e tenha atitudes que inspirem e facilitem o caminhar dazamigas tímidas. Nunca ninguém me disse “que coragem você tem de não pintar o cabelo, também queria ter”, afinal de contas não sou inspiração pra ninguém, mas gosto de imaginar que alguém um dia pelo menos pense “olha só que engraçado, ela é grisalha e tem uma vida normal” ao me ver. Se uma única mulher que jamais parou pra pensar nessas coisas me olhar e pensar, eu já me considero no lucro. Fazer as coisas – qualquer coisa – em um nível consciente, fora do automático, da manada, da expectativa de terceiros, da pressão social, muda a sua vida, de verdade.

dolce far niente

Eu sou muito privilegiada e tenho uma vida muito confortável. Reconheço esse privilégio (parem de encher meu saco, EU SEI QUE SOU PRIVILEGIADA, não me venham com “ain mas assim até eu” porque cês sabem muito bem que “até eu” o cacete, como vou explicar depois pra ficar mais claro ainda) mas me recuso a me sentir culpada. Por um motivo muito simples: lembro muito bem do quanto eu trabalhava antes da Carol nascer. Saía de um emprego pro outro, de uma escola pra outra, do escritório pra loja em Assis, teve um período em que eu dava DEZ HORAS DE AULA por dia, minha última aula acabava às 22:30 e eu chegava em casa sem voz e chorando de exaustão. Isso durou alguns anos, e em 2006 apareceu a psoríase. Eu tava um dálmata, toda coberta de manchas e placas, e descamava tanto que precisava varrer o chão ao meu redor várias vezes por dia.

Não é legal.

Há uns anos, recém-chegada a Curitiba, numa conversa no famigerado grupo de mães da escola, o assunto de repente foi animais de estimação, e alguém comentou que não tinha cachorro porque não tinha tempo de cuidar. Uma outra respondeu que trabalhava 12 horas por dia, tava na terceira pós-graduação, e mesmo assim tinha dois cachorros e uma cacatua. Perguntei que horas ela ficava com o filho dela, já que o dia tem 24 horas pra todo mundo. Silêncio sepulcral no grupo.

Eu nunca entendi essa glorificação do workaholic. Acho ridículo, honestamente. Ridículo. A pessoa que só pensa em trabalhar está claramente neglicenciando, voluntariamente, todos os outros aspectos da sua vida. Isso é legal onde, zente? Que bosta de vida é, pensar só em trabalho e não socializar, não ler um livro, não ir ao cinema, não conhecer os memes atuais, não fazer atividade física, não dar atenção pros entes queridos, não ficar deitado olhando pro teto pensando na vida de vez em quando? Isso é glorificado por quê, caceta?

Quando eu trabalhava aquele tanto de horas por dia, ainda por cima lidando com o público, tava sempre tão cansada que não tinha vontade de conversar, de ler, de nada. Depois que comecei a trabalhar como freelancer, de casa, passei a organizar meu tempo da maneira que eu quero, e isso faz uma diferença brutal na minha vida. Eu trabalho bem menos que outros tradutores, porque eu sou muito, MUITO mais rápida do que qualquer outro tradutor que eu conheço. Nas horas em que não trabalho eu consigo malhar, ler, estudar, me inteirar dos memes, ficar sem fazer nada olhando pro teto ponderando sobre coisas que eu li e vi, sobre conversas que tive, sobre aulas às quais assisti, questionando minhas opiniões e certezas, tendo insights. Quando vou pegar a Carol na escola, eu já malhei, já trabalhei, já li, já ponderei sobre a vida, estou serena e com paciência pra ouvir todas as histórias bobinhas de escola da minha filha, responder às perguntas cabeludas dela, fazer pesquisa sobre os caetés com ela, explicar o livro que eu tô lendo (porque ela sempre pergunta). Jamais conseguiria dar a ela toda a atenção que ela merece se estivesse arrancando os cabelos e chorando de exaustão. Consigo preparar as pautas pro Pistolando, organizar a agenda do podcast, assediar convidados com graça e simpatia, fazer as nossas capas. Consigo parar pra ouvir amigos e conhecidos que vêm se abrir comigo em pvt; consigo fazer novas amizades que enriquecem muito a minha vida. Consigo acompanhar as tretas políticas nas redes sociais e procurar esclarecimentos com amigos que entendem do assunto e podem me ajudar a compreender melhor o que tá acontecendo, já que eu não entendo nada de coisa nenhuma. Consigo ter conversas na Mamilândia que cutucam os meus pontos de vista e me fazem pensar.

Sim, EU SEI que tenho a sorte de não precisar mais trabalhar 10 horas por dia, mas a parada não é essa. A parada é que mesmo quem não precisa trabalhar 10 horas por dia glorifica esse excesso de horas semanais como se isso fosse uma coisa boa. Trabalhar voluntariamente tanto que não se tem tempo pra estar com seu filho NÃO É UMA COISA BOA. Simplesmente não é, por mais que o capitalismo queira te fazer acreditar no contrário. Não é.

(Como sempre, cá estou eu explicando novamente que a minha crítica é pra quem pode fazer as coisas de um jeito, mas ESCOLHE fazer de outro. Assim como meu problema com o “conje” do Moro não é ele falar errado, é um JUIZ falar errado. Minha sogra semianalfabeta pode falar errado. Juiz não pode. Ponto.)

É por isso que eu me recuso a me sentir culpada. Certamente não produzo materialmente o mesmo que um trabalhador 9-6, mas o meu ócio, hoje, produz maternidade serena e consequentemente uma filha que não enche o saco dos outros, produz parte do Pistolando, que pode não ser grande coisa mas é conteúdo de qualidade pros poucos que nos escutam, produz gentileza, pois não estou estressada o suficiente pra ignorar as pessoas ao meu redor (cumprimentem os garis, porteiros, guardas de trânsito da sua rua, cumprimentem as pessoas com quem vocês cruzam na rua todo dia, cumprimentem as pessoas, caceta), produz amizade, porque só com tempo e calma consigo emprestar meus ouvidos e ombros aos amigos que precisam deles, produz evolução, pois só com tempo e calma consigo refletir sobre as minhas atitudes e falas.

Essa glorificação do trabalho extremo em detrimento de, bem, de viver, precisa absolutamente acabar. Senão a gente acaba que nem esse pessoal no Japão aqui, vejam que maravilha.

Ouçam mais sobre isso no Boa Noite Internet, do Cris Dias, aqui. Ouçam o que o Danilo/Dimitra tem a dizer sobre isso aqui. E por acaso (ou algoritmo) li esse fio aqui exatamente sobre esse assunto hoje.

P.S.: Como tudo nesse mundo, ter tempo pra pensar na vida também tem seus lados ruins: a autoanálise é das coisas mais dolorosas que existem. Talvez muita gente desprovida de vida interior preencha seu tempo trabalhando exatamente pra não ter que pensar, porque pensar dói. Mas pessoalmente acredito que a imensa maioria simplesmente siga a manada mesmo: espera-se de nós que trabalhemos loucamente, nosso valor na sociedade está diretamente ligado ao que produzimos, e poucos são os que refletem sobre isso e se desgarram da manada. Mas também tem o seguinte, né, como você vai refletir se trabalha 10 horas por dia e perde 3 horas diárias no deslocamento? O capitalismo não quer que você tenha tempo pra raciocinar. Como dizia aquele grandíssimo filho da puta pseudopoeta golpista que foi nosso presidente, não pense em crise, trabalhe. Ao que eu respondo: teu cu.

livritos de 2019 – big little lies

Eu pessoalmente não gosto muito da ideia de colocar na categoria “livro de uma série” livros stand-alone que deram origem a séries – pra mim série de livros é mais de um livro – mas se elas autorizaram, quem sou eu pra dizer que não rola, não é mesmo. De modo que lá se vai mais um pro desafio das Desqualificadas.

O negócio é o seguinte: numa das viagens entre Brasil e Itália, num avião antigo em que eu não podia escolher o que ver na tela, acabei vendo um pedaço de algo que tinha a Reese Witherspoon e a Nicole Kidman e o Tarzan (ou o irmão dele, nunca sei), mas não sabia o que era porque peguei no meio e depois dormi no meio também. Tempos depois fiquei sabendo que se tratava de uma série da HBO, que depois fiquei sabendo que era baseada num livro, que depois fiquei sabendo que super valia a pena ver e ler. Vi? Na época não. Li o livro? Também não. Até que precisei ler pra gravar mais um episódio do Perdidos na Estante (lembram que ano passado eu reli e vi A Garota no Trem pra gravar?), e ora ora ora que beleza, o livro se encaixa na categoria 23 do desafio, dois coelhos com uma cajadada só. No podcast a gente comenta livro e série, de modo que vão lá ouvir. Mas fica aqui um breve parecer pra quem não tem saco pra escutar.

Trata-se de mais um caso de conteúdo legal – personagens bem desenvolvidas, apesar de algumas serem bem caricatas; história interessante, que prende a atenção, você quer saber o que vai acontecer depois – mas do ponto de vista estético, não é nenhuma obra-prima. Definitivamente não é uma maga das palavras com o a Gail Honeyman, mas tem coisas interessantes.

‘It’s sort of interesting when you think about it,’ said Jane, glancing at the photo once before she flicked it off with her thumb. ‘Why did I feel so weirdly violated by those two words? More than anything else that he did to me, it was those two words that hurt. Fat. Ugly.’

She spat out the two words. Madeline wished she would stop saying them.

‘I mean a fat, ugly man can still be funny and lovable and successful,’ continued Jane. ‘But it’s like it’s the most shameful thing for a woman to be.’

‘But you weren’t, you’re not-‘ began Madeline.

‘Yes, OK, but so what if I was!’ interrupted Jane. ‘What if I was! That’s my point. What if I was a bit overweight and not especially pretty? Why is that so terrible? So disgusting? Why is that the end of the world?’

Madeline found herself without words. To be fat and ugly actually would be the end of the world for her.

‘It’s because a woman’s entire self-worth rests on her looks,’ said Jane. ‘That’s why. It’s because we live in a beauty-obsesses society where the most important thing a woman can do is make herself attractive to men.’

‘Is that really true?’ said Madeline. For some reason she wanted to disagree. ‘Because you know I often feel secretly inferior to women like Renata and Jonathan’s bloody hot-shot wife. There they are, earning squillions and going to board meetings or whatever, and there’s me with my cute little part-time marketing job.’

‘Yes, but deep down you know that you win because you’re prettier,’ said Jane.

‘Well,’ said Madeline. ‘I don’t know about that.’ She caught herself caressing her hair and dropped her hand.

**

Enfim, nenhum insight brilhante, mas é sempre bom ler coisas desse tipo. Melhor ainda se essas reflexões forem transpostas pra tela, onde o alcance é maior. Quanto mais gente pensando sobre isso, quanto mais fichas caírem, melhor.

Agora vão lá ouvir o Perdidos na Estante, vão.

cabelo

Minha filha abriu um Kinder Ovo mês passado e ficou chateada de ter tirado uma bonequinha loura, de cabelão comprido. Olhou o papelzinho que mostrava as outras bonequinhas da coleção e falou: poxa, tanta boneca diferente pra eu tirar e fui pegar logo a de cabelo louro e liso!

Quisera eu ter tido esse insight quando tinha essa idade; provavelmente muito da minha vida seria bem diferente hoje em dia. A minha vida inteira eu sempre desejei ter cabelão liso – não necessariamente louro, mas liso e comprido – e nunca enxerguei o fato de todas ao meu redor serem assim como mesmice. Eram simplesmente o que eu também queria ser (além de magra, obviamente; em toda a minha vida escolar eu sempre fui a única gorda, feia e de cabelo crespo da minha turma). Hoje, vendo fotos de amigas de escola no Instagram, fotos delas com as amigas, com suas mães e primas, a primeira coisa que me vem em mente é: MEU ZEUS DO CÉU, ELAS SÃO TODAS IGUAIS! Todas. Absolutamente iguais.

Se por um lado entendo a necessidade do ser humano de pertencer a um grupo, o que passa quase sempre pelo aspecto físico adotado pela coletividade, por outro a gente sabe que grande parte desse desejo de ser loura, lisa e magra é uma

Tcham tcham tcham tchaaaaaaaaam

CONSTRUÇÃO SOCIAL

Lógico. Ninguém nasce desejando ser loura (assim como ninguém nasce cristão, diga-se de passagem, mas aí é papo pra outro dia). Mas espera-se de nós, mulheres ocidentais, um determinado ideal físico absolutamente eurocêntrico que é inalcançável pra imensa maioria de nós. Embora não faça sentido querer ser algo que não somos, nossa vida gira, em boa parte, ao redor disso, frequentemente sem que nem percebamos. A ausência de outros tipos de referência, embora isso esteja mudando lentamente, estimula essa vontade de sermos o que não somos. Minha filha começou a ver na Netflix uma nova série sobre 5 adolescentes que usam a ciência pra resolver problemas. É aquela grande baboseira americana de sempre, canavial de clichês, mas pelo menos tem mulheres nas ciências. E há uma negra e uma hispânica no grupo, o que já é um avanço. Mas pergunta se tem alguém de cabelo curto? Não tem. Alguma delas é gorda? Claro que não. Muitas de nós permanecemos, portanto, sem representatividade, ou pelo menos sem representatividade natural – eu quero uma série ou um filme em que uma personagem seja gorda e isso não seja tratado como um problema central da história, em que isso seja somente uma característica dela, como ela ter olhos castanhos ou calçar 37. Tá difícil, mas pode ser que a gente chegue lá. Por enquanto, mulheres que não pintam os cabelos e mulheres de cabelos curtos também não aparecem em lugar nenhum. Eu, que me encaixo nessas duas categorias e também na categoria gorda, praticamente não existo, portanto.

Quando ouvi esse episódio (ouçam a parte 2 também) das PPKS Cintilantes sobre raspar o cabelo, a primeira coisa que pensei foi “mas nem fodendo que minha mãe olharia pra mim e diria nossa, cê tá linda”. Depois fui fazendo outros paralelos ao longo do episódio. Notei sobretudo que a minha atitude de cortar os cabelos curtos, em 2013 se não me engano, não impactou absolutamente ninguém à minha volta, assim como teve zero impacto eu não pintar o cabelo, ao contrário do que as meninas relataram no episódio. Sou a única mulher dos meus círculos sociais involuntários e padrãozinho – academia, mães da escola etc – a manter os cabelos curtos, crespos e grisalhos. É provável que todas elas me achem muito esquisita, mas como eu sou ogra dificilmente alguém vai fazer algum comentário estranho. E na real, dentro desses círculos eu sou esquisita mesmo – felizmente.

O problema é que a minha história de corte de cabelo foi a seguinte: odeio meu cabelo, quanto menos houver dele, melhor, vou cortar. O que, convenhamos, é um péssimo motivo pra cortar o cabelo. Por que não raspei logo de cara? Porque na minha cabeça (hohoho) pra raspar a cabeça tem que ser magra e ter rosto bonito, senão fode a bagaça.

O mesmo raciocínio – odeio meu cabelo – é o que provavelmente está por trás da minha incapacidade de entender o valor imenso que a maioria das pessoas dá ao cabelo. EU SEI que cabelo é moldura do rosto e que a sua fisionomia pode mudar radicalmente de acordo com o corte, a cor, a textura; não é disso que eu tô falando. Tô falando de gente que chora se no salão cortarem um dedo a mais da juba. Tô falando do fetiche religioso que obriga as mulheres a cobrir a cabeça. Tô falando de mulher que malha de cabelo solto, o que é tanto perigoso quanto pouco higiênico, simplesmente porque não consegue abrir mão do cabelão. Tô falando do cabelo enxergado como símbolo de feminilidade e instrumento de sedução, é isso. O que, se você parar pra pensar direitinho, implica que uma mulher de cabelo curto é menos mulher. É isso que eu não entendo – e atualmente também não aceito.

A verdade é que jamais entendi a tara por cabelo – eu queria ter cabelo liso pra ser igual às outras, mas nunca entendi por que se dá tanto valor ao cabelão. Continuo não entendendo, e isso pode ser, em boa parte, resultado de recalque, sim, não me custa nada admitir (embora eu já tenha alisado o cabelo e tenha continuado achando tudo horrível). Talvez se eu não odiasse tanto o meu, conseguiria dar valor, mas pra mim cabelo é simplesmente nylon que cresce.

O lance de tingir é outro babado. Nunca passou pela minha cabeça pintar o cabelo, de verdade. Usei tonalizante uma vez por pura curiosidade, ficou uma merda (lógico), saiu com meia dúzia de lavagens. Nunca mais. Já tenho uma infinidade de grilhões estéticos, tá de bom tamanho. Claro que pra mim é muito mais fácil encarar os grisalhos porque nunca trabalhei no mundo corporativo, onde a pressão estética provavelmente teria me levado ao suicídio na primeira semana, mas de qualquer forma, esse é um tipo de neura que eu não tenho. Ufa.

É muito libertador não ter cabelão. Embora as minhas motivações pessoais não sejam políticas, eu vejo o ato de não tingir e de não se render à dominação do cabelão como um ato político, sim senhora. De modo que é libertador do ponto de vista político, mas também do ponto de vista prático – olha quanto dinheiro deixo de gastar, olha quanto tempo eu deixo de desperdiçar secando, penteando, me preocupando, olha quanta energia eu poupo tendo menos cabelo pra me preocupar. É delicioso não ter MAIS ESSA paranóia na minha vida. E olha, ainda por cima conheço um monte de homens (e mulheres) que têm tara por nuca, viu ;)

E antes que alguém venha me encher o saco, não tô dizendo que toda mulher com cabelão é ridícula nem que todo mundo deveria raspar a cabeça. Estou dizendo o que eu constatei ao longo dos anos, observando as pessoas e lendo – olá, O Mito da Beleza, tudo bem? (inclusive, sobre isso, AGUARDEM E CONFIEM) – a gente acha que precisa ter cabelão, mas não precisa. Não é necessário ter cabelão. Não é necessário sermos magras. Não é necessário sermos lindas. Não precisa, mas se quiser, pode. Na real, o lance é que cada um sabe de si. Mas só consegue saber de si quando se tem consciência do que tá rolando, e seguir a boiada sem refletir é o exato oposto disso.

Não descarto completamente a hipótese de raspar a cabeça um dia. Só espero que se rolar, que seja pelos motivos certos.

livritos 2019 – ada la scienziata

E temos aqui mais um pro desafio, na categoria Livro Infantil. Esse aqui foi um que o Mirco achou legal e comprou pra Carol, e realmente é uma gracinha. O original se chama Ada Twist, Scientist, e ele é muito, muito bonitinho. A autora é Andrea Beaty e as ilustrações, absolutamente adoráveis, são de David Roberts.

O livro conta a história de Ada (quem adivinhar de onde veio esse nome, ganha um punhado de good vibes de presente), menina negra, com pais estilosíssimos e um irmão um tanto quanto banana, que é claramente uma cientista nata e faz uma certa bagunça de gente incompreendida até os pais entenderem que precisam lidar com isso porque o que ela faz é ciência e ponto final. Os desenhos são lindos, a Ada é uma fofura e o texto, bem simples, é uma delicinha de ler. Lembrem-se: REPRESENTATIVIDADE É TUDO. Meninas PRECISAM ver personagens meninas em todo tipo de literatura e mídia, fazendo todos os tipos de coisas. Meninas negras precisam mais ainda.

Não achei tradução em português e o original em inglês na Amazon é carérrimo, mas se por ventura alguém tiver acesso, leia porque é muito legalzinho mesmo. Carol ainda gosta também desses livros pra crianças menores e já leu esse várias vezes; ganhou o Selo Cabela de Livro Maneiro :D

livritos de 2019 – o pedaço da coxa de um anjo

Então. Como eu mencionei no insta, esse aqui não entra no desafio porque o autor é homem (Pedro Tavares). Comprei por impulso porque gostei da capa e gosto do assunto Istambul; é uma cidade interessante que eu gostaria de conhecer melhor. O livro é da Editora incompleta e pode ser comprado pelo site deles, aqui.

A coisa mais gostosa desse livro é o miolo, porque o papel é creme e as letras são roxas.

Devo dizer que não achei lá grandes coisas, mas eu sempre gosto de ler curiosidades sobre lugares diferentes, de modo que não foi tempo perdido. Mas não separei nenhum trecho memorável não, fiquem aí na curiosidade.

livritos de 2019 – interrompidos

O outro livro que comprei na Barbante foi o Interrompidos, de Alê Motta, também por indicação da Ana. Foi publicado pela Editora Reformatório (o site tá fora do ar, ao que parece) e é uma edição meio nhé (a cada não sei quantos contos há uma página com uma foto em preto e branco de resolução duvidosa, mas o papel é legalzinho). São microcontos um tanto quanto mórbidos e você lê o livro todo em uma tacada só, bem rapidinho. É um formato interessante, que requer uma certa genialidade pra funcionar direito; tem alguns realmente muito bons, mas ao terminar o livro fiquei com a impressão de que muitos eram parecidos.

Gosto bastante do primeiro, que já dá o tom de como serão os outros:

Quebra de contrato

Meu marido é um cara bonito. Sarado, charmoso, aquele bad boy que domina, enlouquece e arrasa. Um kit perdição.
Os processos de assédio estão na moda. E os homens cono vítimas são certeza de vitória. Chega daquela novela de mulher oprimida. Homem lindo e oprimido é a nova tendência.
Finalmente ele pegou sua chefe. A conquista mais trabalhosa. Fiz as contas, analisei as estatísticas. Processo com vitória garantida. Vamos ganhar muito dinheiro.
Ele sorri, satisfeito com a missão cumprida. Eu sorrio porque planejo meu futuro. Viúva rica é a nova tendência.

É legal, mas não é oooooooooh. Interessantinho, e só.

livritos de 2019 – pó de parede

Poucos dias antes de viajar pra Itália no final do ano passado a Ana me convidou pra tomar um café e dar um pulo numa livraria que abriu recentemente lá no centro da cidade. A minha amiga Fer já tinha me convidado pra um evento infantil lá, mas não lembro por qual motivo eu não pude ir com a Carol. Como eu comentei no nosso episódio sobre o mercado editorial, a experiência de estar numa livraria menor é bem diferente. Sim, eu já tive experiências muito boas em livrarias de redes, porque o pessoal costuma ser jovem e bem treinado, inteirado das novidades e tal, mas numa loja onde há pouca gente – e, nesse caso, menos títulos, pois só há livros de editoras independentes à venda – você acaba descobrindo, com ou sem a ajuda de quem estiver te atendendo, pérolas que costumam passar despercebidas em meio ao ruído de best-sellers, livros de colorir da Peppa Pig e canetas coloridas da Stabilo (inclusive amo).

Pois bem, tomamos o nosso café e passamos na livraria, onde obviamente não me contive e fiz lindas comprinhas: o Pó de Parede, do qual vou falar agora, um de microcontos que li logo depois, um sobre Cuba que dei de presente e um sobre a Turquia que ainda não li. Todos lindinhos, o miolo em papel mais grossinho, textura delícia, cor gostosa pros olhos – e todos de autores que eu não conhecia. O Pó de Parede e o de microcontos foram indicações da Ana; confesso que eu não conhecia a Carol Bensimon e fiquei curiosa porque gosto muito de contos, é um formato que sempre me agradou. O livro é da Não Editora (que nome maravilhoso).

Pois bem, o primeiro conto, A Caixa, é o mais longo dos três. Os outros dois são mais ou menos do mesmo tamanho. Meu preferido é o último, Capitão Capivara, mas o trecho abaixo é do primeiro mesmo. Gostei bastante do jeito dela escrever, das coisas que ela observa, das analogias que faz. É um estilo bem próprio que acho que se eu ler novamente vou reconhecer imediatamente como dela, sabe. Vejam que delícia:

Pegue um dia de calor. O bairro está fervendo e se preparando para as férias. Eu dentro do ônibus escolar. Uma bala gigante, do tipo que contam já ter matado crianças, passeia pelo interior das minhas bochechas. … O bairro vai passando na janela, os cheiros dos almoços se misturam no meu nariz e as casas se repetem como num gibi feito por um desenhista preguiçoso, mas uma floreira na sacada é suficiente para acreditarmos em calor humano. Não há muita gente andando por aí, faz calor pra burro mesmo, e os cachorros devem estar dentro de casa fazendo cocô sobre jornais porque os seus donos não vão encarar um passeio com eles agora. Sigo olhando mais do mesmo, então começo a sentir sobre mim o olhar de alguém. Viro para o lado, para a outra fila de bancos. Tomás está me encarando com aquela cara inocente dele. O Tomás é um menino que também não costuma falar muito com os outros, porque é ruivo, intensamente ruivo com um milhão de sardas, e isso gera um monte de apelidos e implicâncias, mas a impressão que dá é que ele não se importa, porque está sempre sorrindo e bancando o bobo. Como agora. Eu tenho um cabelo ridículo cortado por uma amiga da minha mãe que também faz mapa astral, é isso que Tomás está vendo. Uma franja para brincar de esconde-esconde. Tento me vestir como meus colegas, mas alguma coisa sempre dá errado: ou chego atrasada demais na moda, ou visto duas coisas que sim todo mundo está usando, mas não ao mesmo tempo. Tomás sorri e vem sentar junto comigo. Sua mochila aterrissa antes que ele chegue. Pah no banco, e ele senta depois. Oi, Alice. Oi. Tomás gosta muito de falar sobre guerreiros e elfos, não duvido que logo comece, e também teorias sobre Jack, o Estripador, o que pode ser divertido se eu puder dizer uma coisa ou outra sobre histórias de detetive e música barulhenta, mas acontece que ainda não me sinto disposta a fundar o clube dos anormais.

Enfim, recomendo, principalmente se você gosta de contos. E ainda por cima conta pro desafio das Desqualificadas – no meu caso, vai na categoria 4, autora brasileira. A autora é de Porto Alegre, então se você for gaúcha ou de PoA, já mata as duas categorias de bônus também ;)