Morar no exterior è, pelo

Morar no exterior è, pelo menos pra mim, um conjunto de flashes e de pontadas. Explico: as pontadas de dor sao agulhadas muito, mas muito dolorosas mas de curta duraçao que me vem quando vejo uma foto do Rio (ah, que falta me faz o Rio!), quando escuto o samba do aviao, quando penso nas risadas que davamos no Letras & Expressoes, na cara do japa quando via o sorvete que eu sempre fazia pras noitadas na casa da Newlands, na cara da Newlands quando descobriamos juntas alguma coisa bubu, quando penso na minha avoh e nas comidas gostosas que ela fazia pra mim, quando penso nas risadonas enormes imensas gigantescas que rolavam nos corredores do hospital com a Yasmine (a.k.a. Djésmine), com o Pfaender, com o Alexandre Queiroz que tah pra casar, com aquela louca da Patricia que nao fala mais comigo; quando penso no meu irmao cantando altissimo no banho, na risada da minha mae, no casamento da minha prima mais querida ao qual eu nao fui e nunca, nunca vou me perdoar por nao ter ido; e tantas outras coisas. Sao pontadas agudas, que incomodam MUITO, mas que logo passam. Passam porque a memoria fica; os momentos bons a gente carrega sempre, e nada nem ninguém consegue apagar.

Os flashes sao coisas estranhas que sinto de vez em quando toda vez que faço algo que aqui ja virou rotina, mas que è meio ou muito diferente de como era no Brasil. Como levar o lixo na lixeira. Nas grandes cidades os prédios tem uma lixeira por andar; voce sai no corredor com o saco na mao, abre a porta, abre a lixeira, joga o saco, e ele desaparecera misteriosamente – o que significa que os porteiros vao juntar os saquinhos em sacoes que depois serao recolhidos pelo caminhao da Comlurb. Aqui a gente tem que levar o saco na caçamba la fora. Ja virou rotina, mas esse tipo de coisa tipicamente causa flashes estranhos; me vedo na minha casa, saindo no corredor pra botar uma sacola na lixeira, e pensando em uma outra eu levando o lixo na caçamba la fora, e aih pisca a pergunta na minha cabeça: MA CHE CAZZO STO A FARE DI QUI? (sim, a pergunta vem em italiano mesmo). Nao é uma sensaçao muito agradavel, mas essa também passa.

Alias, essa pergunta vive me perturbando. Nao se enganem, eu ADORO a Italia, adoro morar aqui, e apesar de estar com a vida em stand-by no momento (sem carteira de motorista nem de identidade nem de desconto no supermercado porque nao tenho endereço fixo, sem contrato regular de trabalho porque aqui ninguém faz nada antes de setembro, etc), estou feliz. Mas fico me perguntando se nao era possivel ser feliz la na minha casa, na cidade mais linda do mundo, com uma familia legal, falando a minha lingua e comendo as minhas coisinhas tipicas de sempre. Fico me perguntando do que foi que eu fugi, ou se parei de fugir, se encontrei o que eu queria aqui. Fico imaginando se na proxima vez em que eu voltar pro Rio – e nao tenho a MENOR idéia de quando sera, por motivos puramente economicos – as pessoas vao me achar diferentes, se eu vou achar tudo diferente, se vou me irritar com a sujeira e os mendigos nas ruas, se vou adotar a posiçao paranoica de quem se desacostumou a ser assaltado rotineiramente, se o fedor da cidade vai me chocar, se o transito da grande cidade vai me assustar, se vou sentir falta do salame umbro, do prosciutto crudo, se vou achar a massa cozida demais, se vou achar a mozzarella com gosto de nada, se vou achar o sorvete horrivel tanto quanto hoje acho horrivel o chocolate brasileiro (soh consigo comer o diamante negro e o serenata de amor, acho todo o resto com gosto de vela), se vou continuar esquecendo palavras da minha lingua e de vez em quando inserindo expressoes ou gestos italianos no meio da conversa, se meus amigos vao me achar chata e esnobe e metida a italiana, se a TV brasileira que eu acho que ainda seja um pouco melhor do que a italiana vai me decepcionar e ser muito pior do que eu imaginava. E aih fico imaginando o meu retorno à Italia, e me vejo irritada com o sistema bancario neanderthal deles, com a burocracia tao ridicula quanto a nossa, com a xenofobia alimentar deles, com os zilhoes de impostos que vou ter que encarar sozinha, com a falta de transporte publico nessa cidade pequena, com a ausencia total e absoluta do maracujah na dieta mediterranea, com as panelas italianas que sao TODAS de cabo curto e NENHUMA de teflon (eles tem medo de teflon, de microondas, etc) e que SEMPRE me queimam a mao e nao sao nada praticas.

E o pior é que essa situaçao nem lah, nem cah é irreversivel. Eu, que nunca fui muito cariocona, de praia, malandra, gostosa, que odeio tropicalidades, que tenho horror a Maria Bethania e nao gosto de Chico, me sinto menos brasileira do que nunca, e jamais vou retornar ao meu estado de quase-carioca antes da minha vinda à Italia. Mas também sou muito pouco italiana, apesar do que dizem por aqui. Nao vou mais ser uma coisa soh, nunca mais. Nunca mais.

E’ necessariamente uma coisa ruim? Nao. Culturalmente é uma experiencia fenomenal; morar fora abre os olhos e a cabeça em um modo indescritivel. Mas emocionalmente é destruidor. Eu nao sou nem uma coisa, nem outra, eu nao sou nada. Nao sou nada.