O negócio do Legolas foi o seguinte: estávamos muito placidamente, ontem pela manhã, sentados no parque onde o levo sempre pra brincar. Eu sentada no meu banco, lendo Giovanni Verga, e o Legolas sentado no gramado olhando os estudantes que chegavam pra estudar (tem uma escola no fim da rua). Sei que eu também estava errada, porque o Legolas estava solto, mas aqui tudo que é cachorro anda solto pela rua, até cachorro que mora em casa e tem um quintal pra correr. As ruas são deles, e pelo menos nunca vi nenhum tipo de problema, brincam entre eles, se conhecem, passeiam juntos. Todos os velhinhos de Bastia conhecem o Legolas, nos dão bom dia de manhã; as crianças da creche que fica exatamente em frente à minha casa não têm medo dele, que fica sentado no capacho pegando sol enquanto eu cozinho. Como todo labrador, é um cachorro bobo, mas é cachorro, e macho. Por isso se aproximou do tal dogo argentino, que veio com o dono de bicicleta, como sempre, mas que eu não tinha visto que estava chegando. A sorte do Legolas foi que o cachorro pegou de mau jeito na bochecha dele, e pelo visto o esquema é como o do pitbull, que trava a mandíbula uma vez que morde, porque se o Hannibal tivesse aberto a boca pra ajeitar a mordida e pegar melhor, tinha esmigalhado o crânio do meu cachorro. As it was, foi uma mordida de um dente só, que no entanto furou a pele da bochecha do Legolas. Eu ainda consegui puxar o Leguinho pelo rabo, o que ajudou a aumentar a distância entre os cachorros e assim a reduzir o dano, mas o diabo do cachorro não largava de jeito nenhum! Eu gritando feito uma louca, xingando o cachorro em português, em italiano, em inglês, em aramaico; Legolas rosnando; o Hannibal em pé nas patas de trás com a bocona fechada e aquele dentão furando a bochecha do meu cachorro. Me lembro de ter gritado como nunca gritei antes (aliás, minhas duas únicas crises histéricas antes dessa foram por raiva, mas dessa vez foi por medo mesmo, e é muito diferente e uma sensação HORRIPILANTE), me lembro dos alunos em frente à escola com as mãos nos cabelos e os olhos esbugalhados, lembro da pele da bochecha do Leguinho esticando, esticando, e eu pensando vai rasgar, vai deixar um rasgo na boca do meu cachorro, bestia bastarda, figlio di una mignotta, bastardo puttano, cazzo di cane di merda, cazzo di padrone di merda, cazzo di vita di merda, andate tutti a fan culo, branco di disgraziati, até que não se sabe como mas o Hannibal largou, puxei o idiota do Legolas pela coleira, que por ele ainda iria continuar a rosnar como um imbecil, a boca do Hannibal cheia de sangue, a cabeça do Legolas toda babada. A conclusão brilhante do dono do Hannibal: realmente eles não se dão bem… Se estivesse armada eu juro que matava. Aliás, preferiria ter matado a chutes, pra fazer sofrer bastante, quebrar todas as costelas, esmigalhar os olhos, estourar os órgaos internos. Cheguei em casa com as pernas tremendo. Lavei a cabeça do Legolas mas só fui ver o machucado quando ele, como todo cachorro ridículo depois que se molha, começou a esfregar a cara no chão. Vi o rastro de sangue que ficou no pavimento, olhei com cuidado e vi aquele buraco fundo, fundo, que quase se chegava a ver os dentes do outro lado do furo. Fomos até o veterinário, perto do supermercado de pobre: aberto a partir das 10:30. Eram 8:30. Voltei pra casa, olhei pra máquina de lavar, decidi resolver o problema. Saímos de novo pro centro, comprei fita isolante, voltei pra casa, virei a máquina de cabeça pra baixo, olhei, vi que a fita não iria resolver. Levei meia hora pra desencaixar o tubo que estava rachado, fiquei com as mãos pretas porque o bicho se desintegrou na minha mão. Voltei à loja, comprei outro tubo e duas presilhas, voltei pra casa, usando faca como chave-de-fenda apertei as presilhas em volta do tubo, botei a máquina em pé de novo, botei meus lençóis dentro, liguei. O vazamento se reduziu a umas gotinhas bobas, fiquei feliz. Opa, dez e meia. De novo ao veterinário. Na minha frente, um senhor levando dois cachorros pra tatuar. Meia hora depois entramos nós; o pêlo em volta do buraco foi devidamente raspado, a ferida foi devidamente limpa, o dogo argentino foi devidamente amaldiçoado, 15 euros foram devidamente gastos. Na volta passamos na farmácia barateira pra comprar os antibióticos uma semana acordando meia-noite pra dar ¾ de comprimido enrolados em uma fatia de queijo de plástico (tipo americano) que o Legolas engole sem nem mastigar, ainda bem. Almocei arroz com feijão do dia anterior, fui lá fora checar a correspondência, vi que tinha chegado a senha do cartão do banco pelo correio. Fomos aos correios (que ficam do lado do veterinário) ativar meu cartão do banco, voltei com os pés em chamas de tanto caminhar. Marta me manda uma mensagem; tem que passar em 3 bancos antes de ir trabalhar, chega tarde ao escritório. Tudo bem, respondo, vou a pé até Santa Maria e pego a bicicleta que tinha ficado na casa da Arianna desde o jantar com os brasileiros, e de lá pedalo até o escritório.
Fui dormir às oito da noite. Hoje meus braços e ombros estão doloridos por causa da força que fiz pra puxar o Legolas ontem. Ele está bem, todo pimpão como sempre. Agora o levo ao parquinho do lado da creche, onde em teoria cachorros não podem entrar, mas eu considero as garrafas de cerveja quebradas e as guimbas de cigarro muito mais prejudiciais às crianças que eventualmente queiram brincar lá do que o xixi do Legolas (o cocô eu recolho sempre). O parque é grande, então ficamos lá na outra parte, longe de onde estão o balanço e a gangorra. Ninguém frequenta o parque mesmo, a não ser casais de namorados, tarde da noite.
Eu queria saber é o que é que se passa na cabeça de uma criatura que compra um cachorro agressivo desses. Será que o cara acorda de manha e pensa, hoje vou comprar um cachorro bem malvado, daqueles que matam onça na fazenda, mesmo eu não tendo fazenda, nem vacas, nem onças na floresta do lado da fazenda. Ou será que ele entra na loja de animais e pede o cachorro mais agressivo que existe no mundo, o mais anti-social, porque é suuuuuper legal sair com o bicho e não poder nem perguntar as horas pra alguém que esteja com outro cachorro? E o mais legal de tudo é que um idiota desses não pensa nem de longe em amordaçar o pimpolho. Bastardo.