O dia ontem foi animado.
Passei a manhã trabalhando como intérprete pra um pequeno grupo de indianos em Bevagna. O dia estava lindo, a estrada corta campos de girassol em flor, quem me arranjou esse lance foi a Vanessinha, que trabalhou comigo lá no manicômio e que eu adoro e ia estar lá pra gente fofocar. Cheguei cedo e enquanto estava estacionando ela ligou pra dizer que eles estavam atrasados e que depois explicava. Então aproveitei pra dar umas voltas na cidade, que eu não conhecia de dia pois sempre vamos lá em junho, pra festa das Gaite, e estamos acostumados a ver Bevagna no escuro e entupida de turista e de moradores usando roupas medievais. Levei a minha mãe lá na primeira vez em que ela veio, mas não lembrava mais de nada, então foi um passeio legal. Comprei pão fresquinho, bati papo com a padeira, comprei alface pro almoço e fui pro museu esperar Vanessinha e os indianos. O atraso foi de quase 20 minutos porque um dos caras cismou de rezar na hora de sair e segurou o grupo todo. Se eu não tivesse zilhões de motivos gigantes pra odiar toda e qualquer religião, essas pequenas coisas bastariam…
O tour inicialmente incluía uma visita aos quatro “mestieri” (“métiers”) que ficam abertos o ano todo, uma às termas e uma ao anfiteatro romano. Por causa da rezação idiota do imbecil o anfiteatro ficou de fora. Mas os mestieri mais do que compensaram a chateação. Eu comentei que quando fomos jantar lá com o garoto da África do Sul vimos a fabricação da seda, o sistema pra torcer o fio e os teares pra fazer o tecido. Então; fomos lá outra vez, depois vimos a fabricação do papel, depois de velas e finalmente o estúdio de pintura. Esses quatro ficam abertos o ano todo porque a produção é toda vendida, com a exceção da seda: não há mais criação do bicho-da-seda nessa parte do país, mas como eles têm uma máquina de torcer fio construída tim tim por tim tim seguindo as descrições de um documento encontrado em Lucca com data de 1352, e essa máquina é única no mundo e foi uma pequena revolução industrial na época, também fica aberta aos visitantes o ano inteiro.
O lance da seda é o seguinte: os casulos são colocados em água fervente pra desmanchar uma substância produzida pelo bicho que é uma espécie de cola, cuja função original é impedir que o casulo se desenrole. A água quente também tem como objetivo matar o verme imediatamente, porque se ele tiver tempo de tentar escapar pra não morrer cozido acaba furando o casulo. Como cada casulo é feito de um único fio, um furo significa que ele tem que ser jogado fora. Quando os casulos começam a desfiar, ainda na água, uma espécie de maquininha a pedal ou manivela enrola cada cinco fios de uma vez, e é esse conjunto de cinco fios, que ficam colados uns nos outros através dessa cola desmanchada pelo calor, que vai ser torcido e depois usado pra tecer. A tal maquinona revolucionária substituía o trabalho de umas 2000 pessoas, pois em um turno de 9-10 horas de trabalho ininterrupto era capaz de torcer 72 novelos de fio. São 360 torções a cada 70 centímetros; imaginem isso tudo feito manualmente. Quem operava a máquina era uma coitada que sentava numa espécie de banquinho dentro da própria máquina e ficava caminhando em marcha a ré, empurrando a estrutura interna, que é giratória; através de um sistema de parafuso sem fim os novelos giram, e um arame com uma forma particular na ponta de cada novelo, girando, torce o fio. É difícil de explicar; quem quiser pode visitar o site aqui(em italiano). Quem quiser só ver a foto clica em “Foto” na esquerda, depois em “I Mestieri” e finalmente em “Il Torcitoio”.
O papel também é feito com a ajuda de uma espécie de máquina, alimentada pela energia de um moinho de água. O papel não é vegetal, mas feito com trapos de tecido (principalmente linho e juta), que ficam de molho na água com cal viva pra quebrar e esbranquiçar as fibras. Aquela massa depois é colocada em tanques, onde vai ser massacrada por essa parte mecanizada do processo, uns negócios tipo uns martelos que batem, batem, batem, até transformar os trapos em uma polpa. Essa polpa depois vai pra um tanque com água e sal (conservante), é recolhida manualmente em uma espécie de tela já no formato A4 que todos amamos e conhecemos, escorre um pouquinho, e é virado em cima de um pedaço de tecido apoiado sobre uma espécie de sela. Várias camadas desse tecido, cada pedaço com a sua folha de papel, são empilhados e colocados sob uma prensa, pra eliminar a água em excesso. Cada peça (tecido + papel) então é tratada com um líquido fedorento, resultado da fervura de ossos de animais e restos de pergaminho, pra impermeabilizar o papel e deixá-lo resistente ao longo do tempo (mérito da proteína animal presente nesse líquido). Sem esse tratamento final seria como escrever com caneta-tinteiro em papel higiênico, sacam. O papel chegou à Europa da China através dos árabes, que no entanto tratavam o papel, como os chineses, com extratos vegetais. Não fedia, mas também não durava nada, e essa técnica fedorenta transformou os italianos em mestres da arte de fabricação do papel reconhecidos no mundo inteiro. Enfim, depois do tratamento fedorento rola uma prensa de novo, e depois as peças são penduradas pra secar. Depois de secas as folhas de papel se soltam facilmente do pedaço de tecido, e estão prontas pra usar. Não preciso nem dizer que comprei logo um caderninho micro de papel feito ali mesmo e encadernado também manualmente em couro. Lindo.
Depois fomos ver a fabricação de velas. Vela de rico, feita de cera de abelha, que não fede nem faz fumaça, ao contrário das velas de sebo que os pobres usavam. Você derrete a cera em banho-maria, de modo que a temperatura não passe nunca dos 85 graus. Pendurado por cima do panelão tem uma espécie de roda com os pavios, feitos de fios de juta torcidos, pendurados nos raios. Cada pavio recebe um banho de cera derretida com a ajuda de uma concha, daquelas de feijão mesmo, por 20 vezes, até que se criam esses “charutos” compridos. Enquanto ainda estão morninhos, e portanto macios porque a cera não endureceu completamente, cada dois desses charutos são torcidos juntos, pra virar uma vela bonitinha e com a vantagem de gerar mais luz do que velas “single”, já que são dois pavios queimando juntos. A cera de abelha é muito melhor do que o sebo porque não escorre e queima até o final. E você sabia que a palavra italiana pra band-aid é cerotto porque quando alguém se cortava bastava cobrir a ferida com um pingo de cera derretida?
Finalmente o estúdio do pintor. Vimos a preparação dos pigmentos minerais e vegetais, as receitas das cores anotadas em carvão na parede, a preparação das tábuas de choupo tratadas com gesso, a preparação do fundo da tela com terra di Siena, depois o alisamento com uma espátula de ágata, a aplicação de folhas de ouro e a pintura final. Muito interessante.
As termas também são lindas, os mosaicos em preto e branco visíveis no chão, mas não tem uma história interessante por trás, então vou parar de chatear vocês.
Vocês não ficam impressionados de ver como a memória da gente é seletiva? Eu reli Ask the Dust (tá, em parte) pra prova de literatura mas como absolutamente odeio esse livro não lembrava de nada e não respondi nada, e acabei com um 23/30. Mas lembro de todos os detalhes da máquina de tecer o fio da seda. Acho sensacional isso.