a outra vizinha

Quase todos os edifícios por aqui têm algum tipo de comércio no andar térreo. Nosso prédio tem um irmão gêmeo, que fica em cima de um bar e de um jornaleiro – na verdade o jornaleiro é uma continuação do bar e pertence ao proprietário deste, que larga a máquina de café pra lá pra ir buscar a revista que você pediu. Embaixo do nosso prédio há um salão de beleza (Parrucchiera Valeria), cuja placa luminosa, instalada num poste no canteiro central da rua de acesso ao aglomerado de casas e prédios onde moramos, é um ponto de referência em Cipresso. Você vem vindo pela estradona de Cipresso, e quando vir a placa Parrucchiera Valeria vira à direita, tá? Ao lado do salão da Valeria ficava uma loja de artigos pra caça e pesca (só coisa super útil, cês tão notando?) que era outro ponto de referência pra quem vinha lá em casa pela primeira vez. O nosso prédio não é o do bar, é o da loja de caça e pesca, tá? Quando nos mudamos pra cá a loja já estava desativada, com jornais velhos e amarelados colados nos vidros da vitrine, mas o letreiro ficou lá, vivo e forte, ajudando gente a encontrar o nosso prédio, até uns meses atrás. Não víamos ninguém, mas todo dia notávamos que um pedaço da vitrine estava livre de jornais, depois surgiu uma parede amarela, depois uma placa com um peixe encostada no chão, depois uma vassoura num canto. Achamos que era a loja de caça e pesca que reabria, ou um clube de pesca, ou uma outra coisa inútil qualquer. Até o dia em que surgiram, do nada, umas roupas horrorosas penduradas em CORRENTES, estendidas a esmo por toda a vidraça. Pela falta de cuidado estético e de qualidade das peças, TODAS claramente de tecido sintético, com costuras tortas e apliques em pelúcia, achamos que fosse um bazar de Natal ou coisa do gênero. Até o dia em que apareceram lá dentro um balcão com uma máquina registradora, um vaso de plantas e um aparelho de som. Na porta de vidro, uma fotografia de uma mulher com os olhos muito maquiados, o pescoço enrolado num lenço de oncinha esvoaçante, em uma pose daquelas de femme fatale, que eu honestamente acho incrivelmente broxantes. Ficamos achando que fosse algum bazar beneficiente pra uma menina morta, que seria a da foto, sei lá, não seria incomum. Até o dia em que o Mirco chegou em casa na hora do almoço dizendo que tinha ouvido no rádio algo sobre uma imprenditrice de Bastia que abriu uma loja em Cipresso, e pra conseguir o dinheiro necessário fez um calendário, bancado do proprio bolso.

E aqui pauso pra explicar o lance dos calendários aqui na Itália. Todo mundo que fica famoso faz um calendário, inevitalmente em trajes sumários, poses sexy e em um cenário paradisíaco e supostamente exótico (e conseqüentemente afrodisíaco, dizem). Todo VIP italiano já fez um calendário. Todo mundo que saiu do Grande Fratello já fez um calendário, ao menos. Pode-se dizer que o calendário é um indice de VIPidez, porque VIP que é VIP TEM que fazer pelo menos um calendário na vida. Não sei quem compra essas coisas porque honestamente se toda banca de jornal resolvesse vender tudo que é calendário que sai, não haveria mais espaço pra jornais, revistas ou coleções de bonecas de porcelana ou modelos de carros antigos.

Sei que a tal mulher fez o diabo do calendário pra cobrir as despesas da abertura da loja, que não tem nome nem letreiro nem coisa nenhuma, só a foto dela colada na porta com fita durex, lenço de oncinha no pescoço, os olhos afogados em kajal preto, na tal pose sexy. Mirco anotou o nome da mulher e assim que chegou em casa fomos direto catar na internet. Descobrimos links pras fotos do calendário, que são qualquer coisa. Imaginem uma mulher nem feia nem bonita, corpo que só fica legal quando ela levanta os braços e arqueia a coluna, com maquiagem feita em casa, camisolinhas que ela deve usar de verdade, fazendo poses ridículas em lugares absurdos – no bosque perto do estádio em Perugia, na cadeira da sala de estar, com direito a estante no fundo e tudo, enrolada em lenços coloridos, deitada no meio de folhas secas.

No dia da suposta grande inauguração da loja, em cima do balcão lá dentro viam-se umas garrafas tamanho família de Coca-Cola, uma bacia de plástico provavelmente cheia de salgadinhos gordurosos comprados no supermercado dos imigrantes, uma pilha de guardanapos brancos. Duas garotas, claramente suas amigas e não clientes, lhe faziam companhia. As luzinhas piscantes do aparelho de som denunciavam a presença de música, com certeza algo bem meloso da categoria da Laura Pausini. Mais nada.

A loja tá aberta desde antes do Natal e eu nunca vi ninguém entrando nem saindo, nem lá dentro, nem com sacolinha na mão ali pelos arredores. E olha que eu entro e saio de casa vinte vezes por dia.

Agora imaginem eu saindo de casa pra trabalhar outro dia e dando de cara com uma folha de papel pautado colada na porta da loja, com a seguinte mensagem escrita à mão, com caneta Bic Cristal azul: A LOJA FICARÁ FECHADA ATÉ A PRÓXIMA SEXTA-FEIRA, POR MOTIVO DE ENTREVISTA NA TV.

Gente, viver em cidade pequena é uma fonte eterna de grandes emoções. Juro.