Passei a manhã em casa dando uma última geral, terminando de arrumar as malas, passando roupa. Almoçamos correndo e às três da tarde Gianni e Chiara passaram aqui. Quem nos levou até o aeroporto foi a Roberta, irmã do Gianni, que é muito gente boa. Quando viajam, Gianni e Chiara sempre têm que fazer o check-in o mais cedo possível, pra tentar arrumar lugar nas fileiras mais anteriores ou perto da porta de emergência, porque são muito altos e precisam esticar as pernas, senão morrem de desconforto. Acabamos sentando separados, mas pelo menos todo mundo tinha espaço suficiente pra evitar formigamentos, dores musculares e pés inchados. Voamos com a Aerolineas, e demos o azar de pegar uma tripulação antipaticíssima. O avião era meio velhusco. Nada do telão mostrando a posição do avião, velocidade, temperatura, tempo de viagem, essas coisas. O vôo estava lotado, uma quantidade impressionante de velhos sem loção, do tipo que não trancam a porta do banheiro e aí chega alguém querendo usar o banheiro e abre a porta e vê o velho lá dentro sentadinho na privada. Diliça. O jantar foi franguinho refogado com arroz branco e vagem, bem razoável pra mim, mas eu adoro comida de avião. Os meninos, obviamente, detestaram. Ao meu lado esquerdo, um piacentino fedendo a cigarro que só lá pro final do vôo resolveu puxar papo e contou que tinha um restaurante, mas que agora o vendeu e resolveu tirar um mês de férias pra pensar no que fazer da vida. No meu lado direito, um argentino que felizmente dormiu o tempo todo. Eu consegui dormir direitinho, até porque já tinha visto o filme que passou (Neverland), e entre uma soneca e outra dei uma lida no guia Lonely Planet que o Gianni comprou pra viagem. Qual não foi a minha surpresa ao ler aquela velha história de que os argentinos são italianos que falam espanhol e acham que são ingleses! Apesar de ser de três anos atrás, a edição italiana do guia é legalzinha, dá alguns toques básicos sobre a arrogância dos argentinos (chamada repetidamente de orgulho) e sobre a decadência de Buenos Aires. Me diverti.
Chegamos bem cedo e pegamos um táxi até o outro aeroporto, o Aeroparque, que seria o equivalente ao Santos Dumont no Rio. O carro era um Peugeot caindo aos pedaços, com os vidros rachados e mala que não fechava direito. O motorista era uma figura, o clássico portenho paraculo (palavra italiana que eu amo e quer dizer algo como malandro, espertalhão), com cara de napolitano, cabelos muito escuros, sobrancelhas marcadas, olhar safado. Pegou um caminho comprido e engarrafado, e enquanto ele falava sem parar íamos vendo a paisagem: um viaduto parecido com o Paulo de Frontin, inclusive pela feiúra dos prédios colados nele, placas de trânsito tortas, poluição. Vimos até umas coisas favelais brotando nas margens de estrada, bem no estilo Maré, se o dono da casa estende o braço pra fora da janela chega quase a encostar nos carros que passam. E enquanto tudo isso passava o motorista falava que falava, descrevendo em detalhes o parto do primeiro filho, o sangue, a placenta, uma delicadeza só. Mas eventualmente chegamos, e esse aeroportinho é bem bonitinho, de frente pro rio, com uns belos gramados em torno. A estrutura parece nova e moderna, e ficamos dando umas voltas até a hora do vôo. Acabamos sentando num café pra passar o tempo, e puxei papo com uma senhora que morava em Foz e trabalhava com turismo e nos deu umas dicas do que ver, quanto tempo gastaríamos pra ver as cataratas, os preços dos ingressos e mais ou menos quanto os motoristas da zona cobravam pra levar os turistas pra lá e pra cá. Disse que nosso hotel não ficava muito perto do centro e por isso seria uma boa idéia estabelecer um preço fixo por dia com uma das quatro empresas que fazem esse trabalho por ali, de modo que teríamos sempre um carro e um motorista à nossa disposição.
O vôo, sempre da Aerolineas, saiu com 15 minutos de atraso, mas foi bem light. Serviram só uns sanduíches de queijo e presunto no pão de forma, porque o vôo era curto. Chegamos em Puerto Iguazu, que tem um aeroporto bonitinho, todo de tijolinhos, e logo de cara vimos as quatro escrivaninhas com os quatro fulanos que a senhora tinha descrito, sentadinhos ali entre a esteira das bagagens e a porta de saída, caçando turistas. Escolhemos um ao acaso e ele nos passou a um lourinho de óculos escuros, o Hernán, que é argentino de Mendoza, ao norte, mas morou em Foz e namorou brasileira e fala bem o português. Seguimos os conselhos da senhora no aeroporto de Buenos Aires e fomos direto do aeroporto pras cataratas brasileiras, que são menos extensas e podem ser visitadas numa tarde. Cruzamos a ponte Tancredo Neves, aquela cafonice das cores da argentina até a metade, e dali em diante o concreto lateral pintado em verde e amarelo. É cafona, mas não agüentei e dei de chorar. Não só por estar tecnicamente pisando no Brasil, mas principalmente por estar vendo árvores e plantas e pássaros que eu reconhecia, embora não conhecesse tudo, claro. Vi pés de mamão, mangueiras, bananeiras, flamboyants e muitas outras plantas às quais nunca fui apresentada pessoalmente mas que conheço de vista. Nunca tinha parado pra reparar nessas coisas, mas acho que é mesmo porque a gente só sente falta de determinadas coisas quando elas não fazem mais parte da nossa vida. Quem diria que o canto de um bem-te-vi, que aqui na Bota não existe, me faria chorar até o nariz inchar.
Mas tudo ali é tão feio, a gente é feia, a terra é vermelha e fina e mancha tudo, tudo é tão improvisado, os letreiros são pintados a mão, os carros são velhos, todo mundo perambula de sacola de plástico pendurada no braço (bem coisa de pobre, né não?), os nomes das lojas são terrivelmente cafonas, as Havaianas de pivete imperam são aquelas brancas com as tiras verde-água, sacam?
O Parque Nacional é muito bonito e aparentemente muito organizado. Paguei meu ingresso com desconto mostrando meu passaporte, comprei uma lata de guaraná Antarctica no barzinho antes de entrar, passamos pela roleta e subimos num ônibus muito colorido, com um tucano estilizado pintado nas laterais. Sentamos no andar superior, e fomos passando pela estradinha asfaltada mas esburacada que atravessa a floresta. Outros ônibus vinham da outra direção, alguns do parque, outros de turismo; a gravação nos alto-falantes explicava onde estávamos, que animais poderíamos ter esperanças de ver, advertia a não dar comida aos quatis, jamais, porque eles ficam abusados e não podem ver um saco de batata frita que avançam na maior cara-de-pau. Descemos na última estação, Trilha das Cataratas, e percorremos todos os caminhos possíveis. As passarelas chegam bem perto das quedas menores e a gente fica lá, de boca aberta, tirando fotos com as mãos cobrindo a máquina pra que o vapor dágua não a molhe. A sensação é maravilhosa, aquelas gotículas finiiiiiinhas cobrindo meu rosto, meu rabo-de-cavalo torto, meus tênis vermelhos. Poderia ter ficado lá o dia todo, mas estávamos cansados e o Hernán nos esperava às seis e pouco na entrada do parque, então voltamos pra lojinha, compramos uns cacarecos e cartões-postais e fomos pro ponto de ônibus. Um pouco depois do hotel maravilhoso em estilo colonial que fica dentro do parque há um mini-complexo de lojas e barzinhos onte paramos pra tomar um suquinho Maguary de manga, que os meninos adoraram. Logo em frente fica uma estátua do Santos Dumont, que eu obviamente tive que explicar quem era e coisa e tal. Enquanto esperávamos o ônibus pra saída do parque, vimos um grande grupo de quatis saindo da mata e atravessando a rua na maior. Uma imbecil, que não sei de qual país da América Latina saiu, caiu na asneira de tirar da bolsa um pacotinho de salgadinhos. Não deu outra, os quatis enlouqueceram, começaram a pular nas pernas dela, estendendo as patinhas e puxando a mochila com os dentes. A idiota da mulher quase morreu de susto, e eu só pensando bem feito, vai na fé, quati, quem mandou ser otária e não obedecer às instruções da administração do parque? Gianni e Chiara, que nunca tinham visto um animal selvagem tão de perto, ficaram enlouquecidos. E assim terminou nosso passeio no parque.
Fomos direto ao hotel, que é bonitinho mas deu uma mancada tão, mas tão grande comigo que eu nem vou contar pra não me irritar outra vez. Meu quarto dava pra piscina, e naquele dia abafado o ar-condicionado foi muito bem vindo. Estranho assistir à TV em português de novo, ver pedaços de novelas que não conheço, atores novos, ex-atores-mirins que cresceram. Tomei um banhão show de bola no box imenso com portas de Blindex e desci pra encontrar os meninos. Mais tarde o Hernán passou pra nos pegar e fomos, caindo de sono, jantar no RafaIn, churrascaria com show de danças típicas sul-americanas. Dispensamos o show e comemos bem, mas não maravilhosamente bem. As carnes não tavam lá essas coisas, mas o feijão tava delicioso, a farofa idem, as frutas eram muitas, as saladas eram lindas, e os doces ótimos. Paguei com cheque do Itaú, que minha mãe tinha mandado para o hotel pelo correio. Assim que cheguei no quarto meu pai ligou, depois minha mãe, e depois não agüentei e chapei. Dormi mal, tive sonhos estranhos e acordei muitas vezes de madrugada. Excesso de cansaço não ajuda muito a dormir direito…