viajando com Fernando

Vamos falar de white people problems? Antes que os amigos comunista tudo venham me patrulhar, já adianto que 1) ao contrário dos últimos anos, não vi nenhum negro no avião (foram-se os tempos de Dilmãe), e 2) branco classe média faz muito mais merda que qualquer outro tipo de pessoa imaginável – Barra da Tijuca feelings, sorry not sorry. Além do mais, a viagem rendeu essa crônica, então tenham paciência com a tia aqui.

O voo pra Itália é sempre uma bosta. Primeiro porque costuma estar cheio de, bem, italianos, que não são exatamente disciplinados, discretos ou educados. Segundo porque está sempre cheio de, bem, brasileiros, idem. Terceiro que a Alitalia já morreu mas esqueceu de deitar: boa parte da frota tá bem velha e sonhando com a aposentadoria, a comida há anos não é mais a mesma, o pessoal de bordo é quase sempre antipático. Por essas e outras, esse meu voo de ontem não foi bem um pesadelo, mas passou perto.

Começou no embarque. Entramos no avião, fomos lá procurar nossos assentos e demos de cara com um senhorzinho que era a cara do meu avô paterno, só que com aquela barriga dura que chega a dificultar a respiração, sabe, vestindo conjunto de calça e casaco de nylon da Adidas (chamem de abrigo, de training, do que vocês quiserem). Eu e a Carol estávamos com a janela e o meio, e ele no corredor, mas ele estava sentado na janela felizão. Perguntei em inglês se ele queria ficar na janela, ele respondeu em espanhol que não falava inglês, dei uma enrolada e ele entendeu. Disse que tudo bem ficar espremido na janela, e eu obviamente fiz questão de dizer a ele que não se acanhasse se precisasse nos incomodar pra sair.

Além do senhorzinho de Adidas, também demos de cara com uma mala de mão cinza no meio do corredor. Coloquei a minha no compartimento e sentei pra esperar o fim do embarque e a decolagem, mas a mala de mão no corredor continuou ali, abandonada. Logo passou um comissário de bordo pra ajudar o pessoal a acomodar a bagagem, já que NUNCA tem espaço pra todo mundo. Começa o drama.

– De quem é essa mala?

Silêncio.

– SENHORES, DE QUEM É ESSA MALA?

O corredor inteiro se vira pra trás pra ver a mala e lá da primeira fila da nossa classe (a classe animal, obviamente) um garoto italiano levanta a mão e diz que a mala era dele, mas que ele tinha botado no compartimento. Ou seja, alguém TIROU A MALA DO GAROTO pra botar a sua própria.

Começamos bem, né?

Chega uma família pra sentar atrás da gente – avô, avó, mãe, um filho e, pelo que eu entendi, um primo do primeiro menino. O avô é uma daquelas figuras abomináveis: um Capitão Óbvio, com o agravante de achar que tá super abafando. O comandante fala “vamos pousar em 30 minutos”, ele enche o peito de empáfia e declara “vamos pousar em meia hora”. Esse tipo. Ainda por cima sofria de um mal comum a gente mal educada: um amor inexplicável por vocativos. Foi um tal de Flávia, vai pra lá, Flávia, me passa a mala, Flávia, cê tá me atrapalhando, chega pra lá, Flávia, que puta merda. Flávia, a avó, assim como todo o resto da família, tinha um tom de voz à altura de qualquer italiano, e o mesmo excesso de vocativos do avô. Foi aí que entrou o Fernando, um dos meninos. Fernando, senta. Fernando, bota o cinto. Fernando, guardou o casaco na mochila? Não mexe nisso, Fernando. Olha lá fora, Fernando.

Enquanto a Flávia chamava o Fernando sem parar, o avô levantou a mala pra botar no compartimento. Só que a mala caiu. Na minha cabeça.

– ALÁ, FLÁVIA, EU FALEI PRA VOCÊ CHEGAR PRA LÁ, FLÁVIA, VOCÊ ME ATRAPALHOU, FLÁVIA

Flávia deu um pequeno mas justificado piti, porque ela não tinha nada a ver com a história, e continuou passando instruções pro Fernando, do seu assento na fileira ao lado. Ou seja, antes mesmo do avião decolar, todos daquele setor já estávamos familiarizados com o Fernando e com o Lucas. Os dois estavam na janela e no meio, e a mãe de um dos dois, que não sei qual era, estava atrás de mim, no assento no corredor. Logo os meninos começaram a fuxicar em tudo – na tela de resolução pavorosa, no controle remoto antigão, na bandeja de plástico amarelado, no pacote com o travesseiro e a coberta. Os dois animadíssimos, e até aí tudo bem, mas falando altíssimo e cutucando os nossos assentos cada vez que enfiavam e tiravam o controle remoto do espacinho onde ele fica guardado embaixo da tela. Começaram a jogar um game qualquer, e até aí tudo bem, mas narrando TUDO em voz alta, com um canavial de interjeições e vários chutes e joalhadas nas nossas poltronas. A avó, da outra fila: Fernando, já olhou pela janela, Fernando? Botou o cinto, Fernando?

Passaram o voo INTEIRO assim. Inteiro. Mais de onze horas com esses dois cutucando a gente e falando alto. Como eu não tava no clima pra discutir, a cada cutucada eu levantava os braços pra trás e cobria a tela dele com a mão, dava um tapa nela, dava uma abanada com a mão pra ver se a criatura se tocava. Claro que não adiantou nada, porque eles tavam pilhadaços, não dormiram nada e também não pararam de falar nem de cutucar.

Voo interminável, não dormi nada, o senhorzinho do meu lado disse que era do Líbano – por isso a semelhança com meu avô, filho de sírio – mas que morava no Paraguai. Foram praticamente as duas únicas coisas que ele disse, porque ele dormiu, roncou MUITO e mudou de posição mil vezes durante o voo inteiro. Mas beleza, o voo interminável finalmente terminou. Sabem o que não terminou? A enxurrada de vocativos. Fernando, já tirou o cinto? Tomou café direito, Fernando? Não esquece o casaco, Fernando. Fernando, bota o casaco agora pra você ficar com as mãos livres pra puxar a mala, Fernando.

A filha da Flávia se levantou e esticou o braço pra abrir o compartimento da fileira na frente da minha, ou seja, duas à frente dela. Naquela posição cretina que contrariava as leis da física, LÓGICO que foi ela tentar puxar a mala que a bicha caiu – dessa vez na cabeça da mulher sentada no corredor na fila na frente da minha. A mulher ficou tão atônita que virou pra trás sem reação, somente uma expressão de WTF no rosto. A filha da Flávia pediu desculpas, repetindo “eu abri a porta e a mala voou, do nada, sozinha” mil vezes, talvez pra convencer ela mesma de que era isso mesmo que tinha acontecido. E a Flávia continuava no Fernando isso, Fernando aquilo. Nos dois assentos internos da fileira na frente da nossa, uma senhora e o filho estavam de olhos arregalados, ainda em choque com a cena da mala voadora, mas quando eu imitei o menininho do meme falando “Firnindi, vim iqui, Firnindi!”, eles começaram a rir e comentaram: nossa, o avião inteiro conhece o Fernando, que família chata.

Muito. Esperei a família do Fernando se afastar, com medo de mais alguma mala voar magicamente pra cima da minha cabeça, recolhemos nossas coisas e saímos placidamente do avião, mas ainda ouvimos a filha da Flávia gritando FERNANDO! no corredor em direção à saída. Eles ainda iam pegar uma conexão depois. Não sei o que é pior, viajar com a Alitalia ou com o Fernando.

sobre ser mulher e velha

Saiu hoje o penúltimo episódio da segunda temporada do Maria Vai com as Outras, podcast da Revista Piauí. Recomendo esse podcast pra todo mundo; a primeira temporada já foi ótima, mas a segunda tá totalmente ahazany. Esse penúltimo episódio foi sobre envelhecimento e tá muito interessante.

O fio condutor dessa segunda temporada é o corpo da mulher e o mercado de trabalho, o que torna difícil a identificação da minha parte, pois trabalho de casa há trocentos anos e também nunca fiz parte do mundo corporativo; nunca precisei pensar em “roupa de trabalho” ou aparência adequada pra trabalhar fora. Dar aula de inglês ou ficar sentada numa sala quente traduzindo não requer terninho nem salto alto, afinal.

As duas convidadas desse episódio são muito lúcidas, mas de maneiras diferentes, com posições diferentes com relação ao envelhecimento. Engraçado que são duas posturas diferentes, mas ambas peitam muito bem essa coisa do idadismo e dos dois pesos e duas medidas quando o assunto é mulher e envelhecimento.

O deixar transparecer a velhice e foda-se da Heloisa é, a meu ver, tão louvável quanto o não vou me render às regras, e às favas quem não gostar que a Marcia defende. Pessoalmente, estou no meio do caminho entre as duas. (A Marcia eu já tinha ouvido nesse episódio EQUISSELENTE do Dragões de Garagem, por sinal. OUVÃO!)

Sempre fico imaginando, ao ouvir os episódios, como seria a minha postura no lugar das entrevistadas. Há muitos anos trabalho de casa, então aparência física simplesmente não entra na equação no meu caso, de modo que honestamente não sei como reagiria se, sei lá, alguém implicasse com a minha tendência a falar besteira, fazer referência a memes e fazer caretas quando dou aula. Talvez por isso a maior parte das pessoas com quem convivo voluntariamente hoje em dia sejam bem mais jovens que eu – nunca me lembro que estou velha e que segundo o cânone, deveria estar rindo mais discretamente e falando menos palavrão (ao que eu respondo: foda-se). Acabo tendo pouca paciência pra quem se enquadra nas regras não escritas da velhice para mulheres. Mas não deve ser nada fácil enfrentar tudo isso no mundo corporativo, de modo que tiro o chapéu pra quem encara numa boa.

AMEI a fala da Marcia sobre o dever de peitar esse sistema idiota por parte de quem não é tímida e consegue se fazer ouvir. Sempre foi a minha política também, mas acho que nunca tinha formulado isso de maneira organizada na minha cabeça; simplesmente não conheço outro jeito de fazer, eu saio falando e simplesmente nunca sequer contemplei a possibilidade de não ser ouvida. A gente que tem mais cara de pau e desenvoltura tem, sim, a obrigação de desbravar o caminho pra quem tem mais dificuldade. Quando me demiti daquele manicômio onde trabalhei em Foligno, acabei falando muita coisa em nome da minha colega alemã, que falava um italiano bem pior do que o meu e tava nitidamente desesperada por não poder se emputecer com fluência. Eu ia falando as coisas e via, de rabo de olho, ela fazendo sim, sim, sim com a cabeça. Como eu sou desenvolta mas obviamente também tenho meus momentos de trava, sei bem como é estar com tanta raiva (ou medo, ou qualquer outra emoção intensa) que as palavras não saem, e o alívio que se sente ao ter alguém que dê voz ao que você não consegue expressar naquele momento é uma coisa palpável.

Ou seja, na dúvida, obedeçam à Angela Davis: assim como, segundo ela, “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, numa sociedade onde mulheres não são ouvidas e não são incentivadas a serem assertivas o suficiente pra exigir que sejam ouvidas (essa frase ficou horrível, as concordâncias devem estar todas erradas), não basta não interromper a colega. É preciso que a gente que tem cara de pau dê aquele chega-pra-lá maroto quando necessário, tipo DEIXA ELA FALAR, CACETA, e tenha atitudes que inspirem e facilitem o caminhar dazamigas tímidas. Nunca ninguém me disse “que coragem você tem de não pintar o cabelo, também queria ter”, afinal de contas não sou inspiração pra ninguém, mas gosto de imaginar que alguém um dia pelo menos pense “olha só que engraçado, ela é grisalha e tem uma vida normal” ao me ver. Se uma única mulher que jamais parou pra pensar nessas coisas me olhar e pensar, eu já me considero no lucro. Fazer as coisas – qualquer coisa – em um nível consciente, fora do automático, da manada, da expectativa de terceiros, da pressão social, muda a sua vida, de verdade.

dolce far niente

Eu sou muito privilegiada e tenho uma vida muito confortável. Reconheço esse privilégio (parem de encher meu saco, EU SEI QUE SOU PRIVILEGIADA, não me venham com “ain mas assim até eu” porque cês sabem muito bem que “até eu” o cacete, como vou explicar depois pra ficar mais claro ainda) mas me recuso a me sentir culpada. Por um motivo muito simples: lembro muito bem do quanto eu trabalhava antes da Carol nascer. Saía de um emprego pro outro, de uma escola pra outra, do escritório pra loja em Assis, teve um período em que eu dava DEZ HORAS DE AULA por dia, minha última aula acabava às 22:30 e eu chegava em casa sem voz e chorando de exaustão. Isso durou alguns anos, e em 2006 apareceu a psoríase. Eu tava um dálmata, toda coberta de manchas e placas, e descamava tanto que precisava varrer o chão ao meu redor várias vezes por dia.

Não é legal.

Há uns anos, recém-chegada a Curitiba, numa conversa no famigerado grupo de mães da escola, o assunto de repente foi animais de estimação, e alguém comentou que não tinha cachorro porque não tinha tempo de cuidar. Uma outra respondeu que trabalhava 12 horas por dia, tava na terceira pós-graduação, e mesmo assim tinha dois cachorros e uma cacatua. Perguntei que horas ela ficava com o filho dela, já que o dia tem 24 horas pra todo mundo. Silêncio sepulcral no grupo.

Eu nunca entendi essa glorificação do workaholic. Acho ridículo, honestamente. Ridículo. A pessoa que só pensa em trabalhar está claramente neglicenciando, voluntariamente, todos os outros aspectos da sua vida. Isso é legal onde, zente? Que bosta de vida é, pensar só em trabalho e não socializar, não ler um livro, não ir ao cinema, não conhecer os memes atuais, não fazer atividade física, não dar atenção pros entes queridos, não ficar deitado olhando pro teto pensando na vida de vez em quando? Isso é glorificado por quê, caceta?

Quando eu trabalhava aquele tanto de horas por dia, ainda por cima lidando com o público, tava sempre tão cansada que não tinha vontade de conversar, de ler, de nada. Depois que comecei a trabalhar como freelancer, de casa, passei a organizar meu tempo da maneira que eu quero, e isso faz uma diferença brutal na minha vida. Eu trabalho bem menos que outros tradutores, porque eu sou muito, MUITO mais rápida do que qualquer outro tradutor que eu conheço. Nas horas em que não trabalho eu consigo malhar, ler, estudar, me inteirar dos memes, ficar sem fazer nada olhando pro teto ponderando sobre coisas que eu li e vi, sobre conversas que tive, sobre aulas às quais assisti, questionando minhas opiniões e certezas, tendo insights. Quando vou pegar a Carol na escola, eu já malhei, já trabalhei, já li, já ponderei sobre a vida, estou serena e com paciência pra ouvir todas as histórias bobinhas de escola da minha filha, responder às perguntas cabeludas dela, fazer pesquisa sobre os caetés com ela, explicar o livro que eu tô lendo (porque ela sempre pergunta). Jamais conseguiria dar a ela toda a atenção que ela merece se estivesse arrancando os cabelos e chorando de exaustão. Consigo preparar as pautas pro Pistolando, organizar a agenda do podcast, assediar convidados com graça e simpatia, fazer as nossas capas. Consigo parar pra ouvir amigos e conhecidos que vêm se abrir comigo em pvt; consigo fazer novas amizades que enriquecem muito a minha vida. Consigo acompanhar as tretas políticas nas redes sociais e procurar esclarecimentos com amigos que entendem do assunto e podem me ajudar a compreender melhor o que tá acontecendo, já que eu não entendo nada de coisa nenhuma. Consigo ter conversas na Mamilândia que cutucam os meus pontos de vista e me fazem pensar.

Sim, EU SEI que tenho a sorte de não precisar mais trabalhar 10 horas por dia, mas a parada não é essa. A parada é que mesmo quem não precisa trabalhar 10 horas por dia glorifica esse excesso de horas semanais como se isso fosse uma coisa boa. Trabalhar voluntariamente tanto que não se tem tempo pra estar com seu filho NÃO É UMA COISA BOA. Simplesmente não é, por mais que o capitalismo queira te fazer acreditar no contrário. Não é.

(Como sempre, cá estou eu explicando novamente que a minha crítica é pra quem pode fazer as coisas de um jeito, mas ESCOLHE fazer de outro. Assim como meu problema com o “conje” do Moro não é ele falar errado, é um JUIZ falar errado. Minha sogra semianalfabeta pode falar errado. Juiz não pode. Ponto.)

É por isso que eu me recuso a me sentir culpada. Certamente não produzo materialmente o mesmo que um trabalhador 9-6, mas o meu ócio, hoje, produz maternidade serena e consequentemente uma filha que não enche o saco dos outros, produz parte do Pistolando, que pode não ser grande coisa mas é conteúdo de qualidade pros poucos que nos escutam, produz gentileza, pois não estou estressada o suficiente pra ignorar as pessoas ao meu redor (cumprimentem os garis, porteiros, guardas de trânsito da sua rua, cumprimentem as pessoas com quem vocês cruzam na rua todo dia, cumprimentem as pessoas, caceta), produz amizade, porque só com tempo e calma consigo emprestar meus ouvidos e ombros aos amigos que precisam deles, produz evolução, pois só com tempo e calma consigo refletir sobre as minhas atitudes e falas.

Essa glorificação do trabalho extremo em detrimento de, bem, de viver, precisa absolutamente acabar. Senão a gente acaba que nem esse pessoal no Japão aqui, vejam que maravilha.

Ouçam mais sobre isso no Boa Noite Internet, do Cris Dias, aqui. Ouçam o que o Danilo/Dimitra tem a dizer sobre isso aqui. E por acaso (ou algoritmo) li esse fio aqui exatamente sobre esse assunto hoje.

P.S.: Como tudo nesse mundo, ter tempo pra pensar na vida também tem seus lados ruins: a autoanálise é das coisas mais dolorosas que existem. Talvez muita gente desprovida de vida interior preencha seu tempo trabalhando exatamente pra não ter que pensar, porque pensar dói. Mas pessoalmente acredito que a imensa maioria simplesmente siga a manada mesmo: espera-se de nós que trabalhemos loucamente, nosso valor na sociedade está diretamente ligado ao que produzimos, e poucos são os que refletem sobre isso e se desgarram da manada. Mas também tem o seguinte, né, como você vai refletir se trabalha 10 horas por dia e perde 3 horas diárias no deslocamento? O capitalismo não quer que você tenha tempo pra raciocinar. Como dizia aquele grandíssimo filho da puta pseudopoeta golpista que foi nosso presidente, não pense em crise, trabalhe. Ao que eu respondo: teu cu.

cabelo

Minha filha abriu um Kinder Ovo mês passado e ficou chateada de ter tirado uma bonequinha loura, de cabelão comprido. Olhou o papelzinho que mostrava as outras bonequinhas da coleção e falou: poxa, tanta boneca diferente pra eu tirar e fui pegar logo a de cabelo louro e liso!

Quisera eu ter tido esse insight quando tinha essa idade; provavelmente muito da minha vida seria bem diferente hoje em dia. A minha vida inteira eu sempre desejei ter cabelão liso – não necessariamente louro, mas liso e comprido – e nunca enxerguei o fato de todas ao meu redor serem assim como mesmice. Eram simplesmente o que eu também queria ser (além de magra, obviamente; em toda a minha vida escolar eu sempre fui a única gorda, feia e de cabelo crespo da minha turma). Hoje, vendo fotos de amigas de escola no Instagram, fotos delas com as amigas, com suas mães e primas, a primeira coisa que me vem em mente é: MEU ZEUS DO CÉU, ELAS SÃO TODAS IGUAIS! Todas. Absolutamente iguais.

Se por um lado entendo a necessidade do ser humano de pertencer a um grupo, o que passa quase sempre pelo aspecto físico adotado pela coletividade, por outro a gente sabe que grande parte desse desejo de ser loura, lisa e magra é uma

Tcham tcham tcham tchaaaaaaaaam

CONSTRUÇÃO SOCIAL

Lógico. Ninguém nasce desejando ser loura (assim como ninguém nasce cristão, diga-se de passagem, mas aí é papo pra outro dia). Mas espera-se de nós, mulheres ocidentais, um determinado ideal físico absolutamente eurocêntrico que é inalcançável pra imensa maioria de nós. Embora não faça sentido querer ser algo que não somos, nossa vida gira, em boa parte, ao redor disso, frequentemente sem que nem percebamos. A ausência de outros tipos de referência, embora isso esteja mudando lentamente, estimula essa vontade de sermos o que não somos. Minha filha começou a ver na Netflix uma nova série sobre 5 adolescentes que usam a ciência pra resolver problemas. É aquela grande baboseira americana de sempre, canavial de clichês, mas pelo menos tem mulheres nas ciências. E há uma negra e uma hispânica no grupo, o que já é um avanço. Mas pergunta se tem alguém de cabelo curto? Não tem. Alguma delas é gorda? Claro que não. Muitas de nós permanecemos, portanto, sem representatividade, ou pelo menos sem representatividade natural – eu quero uma série ou um filme em que uma personagem seja gorda e isso não seja tratado como um problema central da história, em que isso seja somente uma característica dela, como ela ter olhos castanhos ou calçar 37. Tá difícil, mas pode ser que a gente chegue lá. Por enquanto, mulheres que não pintam os cabelos e mulheres de cabelos curtos também não aparecem em lugar nenhum. Eu, que me encaixo nessas duas categorias e também na categoria gorda, praticamente não existo, portanto.

Quando ouvi esse episódio (ouçam a parte 2 também) das PPKS Cintilantes sobre raspar o cabelo, a primeira coisa que pensei foi “mas nem fodendo que minha mãe olharia pra mim e diria nossa, cê tá linda”. Depois fui fazendo outros paralelos ao longo do episódio. Notei sobretudo que a minha atitude de cortar os cabelos curtos, em 2013 se não me engano, não impactou absolutamente ninguém à minha volta, assim como teve zero impacto eu não pintar o cabelo, ao contrário do que as meninas relataram no episódio. Sou a única mulher dos meus círculos sociais involuntários e padrãozinho – academia, mães da escola etc – a manter os cabelos curtos, crespos e grisalhos. É provável que todas elas me achem muito esquisita, mas como eu sou ogra dificilmente alguém vai fazer algum comentário estranho. E na real, dentro desses círculos eu sou esquisita mesmo – felizmente.

O problema é que a minha história de corte de cabelo foi a seguinte: odeio meu cabelo, quanto menos houver dele, melhor, vou cortar. O que, convenhamos, é um péssimo motivo pra cortar o cabelo. Por que não raspei logo de cara? Porque na minha cabeça (hohoho) pra raspar a cabeça tem que ser magra e ter rosto bonito, senão fode a bagaça.

O mesmo raciocínio – odeio meu cabelo – é o que provavelmente está por trás da minha incapacidade de entender o valor imenso que a maioria das pessoas dá ao cabelo. EU SEI que cabelo é moldura do rosto e que a sua fisionomia pode mudar radicalmente de acordo com o corte, a cor, a textura; não é disso que eu tô falando. Tô falando de gente que chora se no salão cortarem um dedo a mais da juba. Tô falando do fetiche religioso que obriga as mulheres a cobrir a cabeça. Tô falando de mulher que malha de cabelo solto, o que é tanto perigoso quanto pouco higiênico, simplesmente porque não consegue abrir mão do cabelão. Tô falando do cabelo enxergado como símbolo de feminilidade e instrumento de sedução, é isso. O que, se você parar pra pensar direitinho, implica que uma mulher de cabelo curto é menos mulher. É isso que eu não entendo – e atualmente também não aceito.

A verdade é que jamais entendi a tara por cabelo – eu queria ter cabelo liso pra ser igual às outras, mas nunca entendi por que se dá tanto valor ao cabelão. Continuo não entendendo, e isso pode ser, em boa parte, resultado de recalque, sim, não me custa nada admitir (embora eu já tenha alisado o cabelo e tenha continuado achando tudo horrível). Talvez se eu não odiasse tanto o meu, conseguiria dar valor, mas pra mim cabelo é simplesmente nylon que cresce.

O lance de tingir é outro babado. Nunca passou pela minha cabeça pintar o cabelo, de verdade. Usei tonalizante uma vez por pura curiosidade, ficou uma merda (lógico), saiu com meia dúzia de lavagens. Nunca mais. Já tenho uma infinidade de grilhões estéticos, tá de bom tamanho. Claro que pra mim é muito mais fácil encarar os grisalhos porque nunca trabalhei no mundo corporativo, onde a pressão estética provavelmente teria me levado ao suicídio na primeira semana, mas de qualquer forma, esse é um tipo de neura que eu não tenho. Ufa.

É muito libertador não ter cabelão. Embora as minhas motivações pessoais não sejam políticas, eu vejo o ato de não tingir e de não se render à dominação do cabelão como um ato político, sim senhora. De modo que é libertador do ponto de vista político, mas também do ponto de vista prático – olha quanto dinheiro deixo de gastar, olha quanto tempo eu deixo de desperdiçar secando, penteando, me preocupando, olha quanta energia eu poupo tendo menos cabelo pra me preocupar. É delicioso não ter MAIS ESSA paranóia na minha vida. E olha, ainda por cima conheço um monte de homens (e mulheres) que têm tara por nuca, viu ;)

E antes que alguém venha me encher o saco, não tô dizendo que toda mulher com cabelão é ridícula nem que todo mundo deveria raspar a cabeça. Estou dizendo o que eu constatei ao longo dos anos, observando as pessoas e lendo – olá, O Mito da Beleza, tudo bem? (inclusive, sobre isso, AGUARDEM E CONFIEM) – a gente acha que precisa ter cabelão, mas não precisa. Não é necessário ter cabelão. Não é necessário sermos magras. Não é necessário sermos lindas. Não precisa, mas se quiser, pode. Na real, o lance é que cada um sabe de si. Mas só consegue saber de si quando se tem consciência do que tá rolando, e seguir a boiada sem refletir é o exato oposto disso.

Não descarto completamente a hipótese de raspar a cabeça um dia. Só espero que se rolar, que seja pelos motivos certos.

natal, breve retrospectiva do ano, gordura e obrigados

2018 foi um ano especial, de verdade. Muita coisa diferente aconteceu, mas tudo o que rolou de legal foi graças às pessoas muito ótimas que conheci depois que passei a ouvir podcast.

Foi um ano de muitas primeiras vezes, boas e ruins. Hoje só vou falar das boas.

Gravei um monte de podcasts com um monte de gente sensacional.

Foi nesse ano que eu comecei meu próprio podcast, uma coisa que eu nem sabia que queria até a ideia surgir. E o Pistolando é a coisa mais legal que eu já fiz, depois da Carol – falo com tranquilidade.

Foi nesse ano que eu conheci pessoalmente, abracei, beijei, apertei tanta gente querida que não tenho nem palavras pra explicar.

Em 2018 eu tirei minha primeira foto com a minha filha.

Comecei a usar batom vermelho e gostar. E foda-se quem não gosta.

Descobri que a minha cara de pau, minhas habilidades sociais e minha síndrome de confessionário (sempre fico chocada com a quantidade de gente que vem me contar coisas superpessoais assim do nada) são bem acima da média, sendo que sempre me achei super normalzinha.

Comecei uma nova pós, sobre um assunto que realmente me interessa.

Viajei sozinha pela primeira vez desde que a Carol nasceu. Deitei no gramado do Green Park e dormi. Nunca tinha dormido em local público assim antes, despreocupada, sem precisar tomar conta de ninguém, sem hora pra ir embora, sem ter nenhuma responsabilidade por outra pessoa, menor de idade ou não.

Foi um ano em que recebi muitas demonstrações espontâneas de carinho e admiração, online e offline – amigos ou conhecidos que vieram pessoalmente falar comigo só pra me dizer coisas legais, sabe? Adultos e crianças também. Foi um ano em que eu mesma dei demonstrações espontâneas de carinho e admiração. Afinal de contas, gentileza gera gentileza, do unto others etc etc. Pra mim não tem nada mais legal nesse mundo do que saber que as pessoas gostam da minha presença. É uma parada mágica, de verdade. Se você tem alguém cuja presença te alegra, vai lá e diz isso a essa pessoa. Não tenha vergonha não.

Também foi o ano em que mandei à merda lindamente um ex-amigo que se tornou uma pessoa odiosa, e preciso dizer que foi um dos pontos altos de 2018 porque aquilo tava entalado há muito tempo e eu cheguei na fase de expor filho da puta mesmo, falar na cara, apontar o dedo na frente de todo mundo. Zero tolerância com intolerantes e filhos da puta.

Não li tanto quanto deveria, mas só li coisas boas. Se tiver paciência, publico aqui a lista das leituras do ano nos próximos dias.

Fui bastante ao cinema, sozinha (coisa que eu amo fazer) e acompanhada.

Voltei a escrever, embora com frequência bem reduzida ainda, e o feedback foi ótimo.

Aprendi a fazer umas coisas que não sabia, o que é sempre bom.

Conheci online muita gente ótima através do podcast e espero conseguir conhecer pessoalmente pelo menos algumas dessas pessoas ano que vem.

***************

Cês tão carecas de saber que eu sou ateia e desprezo horizontalmente e democraticamente todas as religiões. Acho Natal um saco, essa forçação de barra pra dar presente, as decorações cafonas, nem das comidas eu gosto, pra não falar da historinha pra boi dormir que dá o contexto à coisa. Pra piorar, aqui na Itália dia 26 é feriado também, o que significa dois dias iguais seguidos, comendo as mesmas coisas com as mesmas pessoas e tendo as mesmas conversas. Como já dizia o adesivo de carro que andou muito na moda nos anos 90 (#velha), I’d rather be surfing – e olha que nem surfar eu sei. Mas como parece que é falta de educação não desejar feliz whatever nessa época do ano, fica aqui o meu boas festas pra quem comemora, um vaitomanocu pra quem votou no Bozo, e um 2019 menos pior do que está parecendo que vai ser.

***************

Mas eu queria mesmo era falar de uma coisa que me veio em mente ontem.

Acho significativo que o último episódio que eu gravei esse ano tenha sido um EPEP sobre gordofobia. Falei um monte de coisas que todo mundo que me conhece um pouco melhor já sabia, mas talvez não conhecesse os detalhes. Foi bom falar sobre isso de maneira tão crua e espero que isso ajude outras pessoas a entender como é a vida da pessoa gorda.

Anteontem eu ouvi o episódio pronto, antes de ser publicado. Chorei tudo de novo, obviamente, mas fiquei na dúvida se ficou claro o que eu disse sobre não curtir 100% as coisas porque o fantasma da gordice tá sempre ali do lado abocanhando um pedaço da felicidade. Ontem antes de dormir pensei numa maneira talvez melhor de ilustrar esse fenômeno – lembrando que estou falando por mim, e não por todos os gordos do mundo. O lance não é exatamente não curtir 100% as coisas, é não estar 100% presente, por um motivo muito simples:

Em TODOS OS MOMENTOS da minha vida eu sempre desejei estar dentro de outro corpo.

Ou seja, sempre desejo não estar ali, daquela maneira, daquele jeito gordo, com aquele aspecto. A minha situação presente nunca, jamais é o que eu quero, mesmo quando tudo tá correndo às mil maravilhas, porque sempre tem uma coisa errada no cenário: eu mesma. Talvez venha daí, então, a sensação de nunca aproveitar plenamente a vida. Como é possível aproveitar plenamente um momento quando eu SEMPRE gostaria de estar num corpo que não é o meu? Esse desejo é perene, incansável, onipresente, e incrivelmente doloroso.

Por isso o único presente de Natal que eu peço é o meu pedido final no EPEP:

PAREM DE FALAR DE GORDURA, DE PESO, DE ASPECTO FÍSICO, NA FRENTE DE CRIANÇAS.

Acreditem, vocês não querem que seus filhos se transformem em mim. Parem. Só parem. Eu não tenho mais conserto, mas é possível ajudar a diminuir a probabilidade da existência de futuros eus. Parem.

***************

E por fim, meus agradecimentos em ordem totalmente aleatória:

à Craco, pelo incentivo a fazer o Pistolando, pelo feedback, pela diversão, pelo aprendizado, pelos ombros amigos, pelas discussões profundas e pelas superficiais também, pelos convites pra gravar outros podcasts, pelas amizades sinceras que brotaram

à panelinha, vocês sabem quem são e eu amo vocês todos. Obrigada por deixarem a minha vida tão melhor

à Mamilândia, e mais especificamente pelo Vários Assuntos Ovariados. Meninas, vocês são exemplos pra mim de mais maneiras do que eu tenho palavras pra expressar. Amigas, irmãs, professoras, rede de apoio, vocês são TUDO

às mães feministas de Curitiba, suas lindas, pelas risadas e por todo o resto

à minha mãe, por ficar com a Carol pra eu poder fazer todas as coisas legais que fiz esse ano

ao Thiago, por ser o melhor parceiro de podcast do mundo, e apesar de ser ranzinza só me traz coisas boas, direta e indiretamente. Obrigada pelos papos, pela amizade e pela parceria

ao grupo das mulheres podcasters no Telegram, onde conheci um monte de mulher foda e tive conversas ótimas e sempre enriquecedoras transbordando de sororidade

aos nossos catárticos – a gente jamais poderia imaginar que iria ter tanta gente legal nos apoiando em tão pouco tempo

às pessoas chatas que me ensinam como não me comportar, coisa muito valiosa.

Beijos especiais pro Danilo, pra mim a definição perfeita de pessoa exquisite; pra Bia, que conheci aos 45 do segundo tempo mas já amo; pra Vevila, sua maravilhosa; pros nossos convidados todos do Pistolando; pra Fer e pro Rafa, pra Malu e pro Benjoca, por tornar nossas vidas curitibanas mais sociáveis e interessantes e únicas pessoas da minha esfera social offline que vão ler isso aqui; pra Ana, uma amizade que também começou por causa de podcast e que só me dá alegria.

Tenham um bom 2019, tirem os sapatos antes de entrar em casa, não se esqueçam de beber água quando forem encher a cara pra não terem ressaca no dia seguinte, crase: na dúvida, não usem.

Beijo.

você é sim, miga. é sim.

Pensei muito onde iria escrever esse post hoje, se aqui ou no Pistolando. No final das contas, decidi que a coisa toda partiu de uma reflexão minha que toca a política só tangencialmente, então escrevo aqui.

Essas eleições estão sendo tenebrosas pra qualquer um que tem um cérebro pensante e não tem sangue de barata. Toda a minha bolha esquerdopata gayzista podosférica está arrancando os cabelos, desesperada com a possibilidade de sermos governados por um troglodita que considera as minorias inferiores, desprezíveis e merecedoras de agressões e violência. Mas a coisa boa desse tipo de evento pavoroso é que a gente passou a conhecer realmente as pessoas que nos cercam. A maioria dos meus conhecidos que se declaram bolsominions eu já esperava – é bem o perfil mesmo. Outros me surpreenderam, mas confesso que são casos pontuais. O que me deixa triste não é ver que conheço tanta gente que vota neste grandíssimo saco de merda; o que fode comigo é mulher instruída estudada financeiramente independente que ainda não sabe o que é ser feminista (e consequentemente também não entende o que é machismo).

Ouvi hoje o nono episódio do podcast Maria Vai com as Outras, da Revista Piauí – recomendo fortemente que você assine a revista, ouça o MVCO e o Foro de Teresina, também deles. No comando está Branca Vianna, que entrevista duas mulheres em cada episódio (com a exceção do nono, que tem três entrevistadas), dentro do tema do programa. Então temos mulheres na ciência, mulheres em cargos de chefia, mulheres na saúde e por aí vai. As entrevistas são sempre muito boas, mas a Branca sempre termina perguntando à entrevistada se ela se considera feminista, e a resposta na maioria das vezes é não. Eu fico de boca aberta ouvindo, porque veja bem: as histórias são ótimas, são mulheres fortes, corajosas, que peitam as adversidades com a maior nonchalance, conseguem o que querem, correm atrás, ligam o fodam-se, navegam em ambientes costumeiramente masculinos como as donas da porra toda que são. São mulheres PODEROSÍSSIMAS. São mulheres que não existiriam sem o movimento feminista pra conseguir que pudéssemos estudar, receber herança, ter propriedades no nosso nome, votar, trabalhar fora, USAR FUCKING CALÇA COMPRIDA. Como é possível alguém ter uma vida tão rica, tão fora dos padrões mulherzinha fofinha submissa, e mesmo assim não achar que é feminista? Mulheres que em seus relatos reclamam de atitudes machistas no ambiente de trabalho, reclamam de ganhar menos, reclamam de assédio, reclamam de marido que não faz porra nenhuma em casa, gostariam que tudo fosse diferente – ou seja, na verdade anseiam por TUDO pelo qual o movimento feminista clama?

Essa semana eu me envolvi em muito mais tretas online do que deveria. Uma das piores foi a do funk cretino da campanha do Bozo. A hipocrisia começa no momento em que eles reclamam do funk como sendo indigno de receber fundos da Lei Rouanet (zzzzzzzzzzzzzz), porque não é arte, não é música, não é cultura, mas na hora de usar pra fazer propaganda desse Neanderthal de farda, serve, né? Seus merdas. Além da hipocrisia, as frases feitas, as idiotices repetidas à exaustão sem parar pra pensar nem meio segundo, são desesperadoras. Pra quem não sabe, a música diz que as mulheres de direita são lindas, enquanto que as de esquerda são peludas como cadelas e merecem comer ração de cachorro.

Se você não ficou sabendo da notícia, não sou eu que vou linkar aqui porque não quero dar click pra esse tipo de abominação; volte e leia o último período novamente.

E foi aí que eu entrei, pacificamente, eu juro, numa treta no Twitter comentando essa notícia. Vamos lá:

Bolsominions afirmando que a música não é ofensiva, porque diz que as mulheres de direita são bonitas, logo é um elogio.

Eu não sei vocês, leitoras, mas acredito que embora todo mundo, homens e mulheres, gostem de ser considerados bonitos, acredito também que vocês, leitoras, não querem ser definidas somente pela aparência física. Estamos em 2018, afinal; o aspecto físico de alguém deveria estar começando a perder importância, não? Que tal a gente ir ajudando a corroer essa superficialidade gradualmente, até chegar o dia em que isso não vai fazer diferença alguma em termos de juízo de valor das pessoas? Hein?

Bolsominions afirmando que a letra da música não é ofensiva, pois nada mais é do que um dado de fato: feministas são peludas.

Olha, que preguiça que esses acéfalos me dão. Primeiro que generalizar dessa forma – “toda feminista é peluda” – é de uma desonestidade intelectual ímpar. Segundo que não é verdade, obviamente. Terceiro que NÃO É DA SUA FUCKING CONTA. O que diabos muda na sua vida se uma mulher raspa a caceta da perna ou não? Por que você, homem, não vê propaganda na televisão endereçada a você, mostrando um homem raspando a perna peluda com o pé apoiado na beira da banheira? Por que homem pode expor os pelos do sovaco onde bem entender, e nós mulheres somos tratadas como párias se fizermos a mesma coisa? Pelo é pelo – queratina, praticamente um nylon que cresce. Pelo, como praticamente todas as outras coisas que existem no universo, não tem valor intrínsico. Seu valor é o que nós damos a ele. Por que diabos pelo de homem e pelo de mulher têm valores diferentes? A gente sabe o motivo, mas não é disso que quero falar agora. Um dia ainda vou gravar um episódio só sobre isso, mas não vai ser hoje.

O que eu queria falar, na verdade, era isso: miga, você é feminista sim, só não sabe. O fato de você se depilar, o fato de você se maquiar, o fato de você ser vaidosa, o fato de você gostar de rosa, nada disso impede que você seja feminista. Não são essas coisas que nos definem, sabe. Feminismo é sobre escolha – faça o que você quiser, desde que isso não encha o saco dos outros. Quer se maquiar? Manda ver. Quer se depilar? Ótimo. Não quer? Pois curta o seu sovaco peludo, ninguém tem nada a ver com isso. A gente tem que parar com esses estereótipos cretinos, usados pelos homens como ferramenta de opressão e pra fomentar a rivalidade entre as mulheres. Para com isso AGORA, nesse minuto. Antes de criticar a aparência da amiguinha em voz alta, conta até dez. Você pode até pensar “que cabelo feio, benza zeus”, mas NÃO FALE EM VOZ ALTA. Pratique guardar isso pra você, até o dia em que esse tipo de pensamento nem vai passar mais pelo seu cérebro (ainda estou na fase um, de não comentar, porque não é da minha conta e não importa também).

Estou num grupo de podcasters mulheres e um assunto que volta e meia reaparece é esse aparente paradoxo entre feminismo e vaidade. Cara, não existe paradoxo nenhum, cada uma faz o que preferir, caceta, não é pra isso que lutamos? Na nossa sanha de romper com tudo o que o patriarcado nos enfia goela abaixo, esquecemos que ainda temos poder de escolha.

Esquecemos que ainda temos poder de escolha, esse é o conceito-chave. Escolha. Tudo se resume a escolha. Eu me irrito LOUCAMENTE quando ouço alguma mulher falando que “as feministas acabam esquecendo da feminilidade, da doçura, da meiguice”. ODEIO esse papinho. Não temos a obrigação de sermos femininas, doces, meigas, fofinhas. Nenhuma de nós tem a obrigação de ser bonita. Entendem? Vou repetir bem grande porque quando eu li isso pela primeira vez, foi um divisor de águas na minha vida:

NENHUMA DE NÓS TEM A OBRIGAÇÃO DE SER BONITA.

Muitas de nós não seremos jamais. Eu nunca fui vaidosa; a sensação que tenho desde sempre, não sendo bonita, é a de que usar maquiagem seria meio como usar Band-Aid pra curar fratura exposta, sabe. Adianta porra nenhuma, é desperdício de tempo, de energia e de dinheiro, e só vira fonte de frustração. A parte mais difícil é aceitar QUE TÁ TUDO BEM NÃO SER BONITA (eu ainda não consegui, embora repita isso pra mim mesma todos os dias, várias vezes por dia). Todas nós temos qualidades independentes do nosso aspecto físico. Eu não tenho obrigação de ser bonita (felizmente). EU NAO TENHO OBRIGAÇÃO DE SER BONITA. Também não tenho obrigação de ser fofa e meiga. Se essa fosse a minha natureza, ainda assim eu seria feminista – existem feministas fofas e meigas, conheço várias. Mas tá tudo bem ser fofa e meiga se a gente for assim naturalmente; a partir do momento em que nos anulamos e viramos esse personagem fofo e meigo pra caber num padrão, numa expectativa que a sociedade (leia-se o patriarcado de merda) tem de nós, aí ferrou tudo, aí nos rendemos. Aí perdemos, playboy.

Essa volta toda foi só pra repetir que eu fico muito chateada quando vejo mulheres claramente feministas dizendo que não são. Fico mais chateada ainda porque os conceitos negativos normalmente associados ao feminismo, e que fazem com que muitas mulheres sejam veementes na sua rejeição ao feminismo, são completamente inventados, idiotas e desprovidos de sentido, como os malditos pelos, a vaidade, a doçura. Muitas mulheres rejeitam o feminismo porque acham que ser feminista é não poder ser vaidosa, o que implica, automaticamente, que não ser vaidosa É UMA COISA INTRINSICAMENTE RUIM. Não ser vaidosa não é nem bom e nem ruim, simplesmente é. Não ser bonita não é nem bom nem ruim, simplesmente é. Não raspar o sovaco não é nem bom e nem ruim, simplesmente é. Nenhuma dessas coisas tem qualquer valor intrínsico. Você não é obrigada a parar de raspar as pernas pra ser feminista, assim como eu não sou obrigada a ser bonita pra poder existir nesse mundo. Parem com essa sandice, pelamordeCher.

Feminista não tem que ter sovaco cabeludo, mas se quiser, pode. Feminista não tem que ser baranga, mas se quiser, pode. Feminista não tem que ser promíscua, mas se quiser, pode. Feministas estão aí pra que você, amiga, possa usar maquiagem SE QUISER, e não usar quando não quiser, pra que você possa dar mais que chuchu na serra feliz da vida depois do divórcio, pra que você tenha um cargo de chefia se for competente o suficiente, pra que você possa se divorciar se o seu marido for um merda, pra que você possa casar com uma mulher, se quiser, pra que você possa escolher não ter filhos, se não quiser.

Feminismo é sobre ter escolha. Se você, leitora, acha que a mulher tem que poder escolher o que ela bem entender, você é feminista sim, é feminista pra cacete. Aceita que dói menos. E seja bem-vinda ao clube.

P.S.: Aqui vai uma listinha de podcasts com mulheres no elenco, nem todos com temática feminina ou feminista, pra vocês se deleitarem.

Olhares
Ponto G
Pretas na Rede
Sobre História
Dragões de Garagem
Pílulas de Beleza
Bora Marcar?
Dibradoras
Mulherio
PodProgramar
As Mathildas
Baseado em Fatos Surreais
É Pau, É Play
É Pau, É Página
HQ da Vida
Conexão Feminista
O Que Assistir

E, é claro, o Pistolando, que eu faço junto com o Thiago, e o Papo Cético, do qual faço parte do elenco fixo agora, e que também tem a Estrela como membro fixo.

Tem mais, tem muito mais. Se estiver interessado, vai lá no Twitter e procura por #mulherespodcasters. Tá cheio de mulher foda produzindo conteúdo foda. São todas feministas – mesmo as que ainda não sabem que são.

Elena Ferrante que se cuide

Deixa eu contar a minha saga italiana de hoje.

O lance é o seguinte: na Itália, como em muitos países europeus, os correios (Poste Italiane) também funcionam como banco (BancoPosta). Na Itália as Poste Italiane também funcionam como operadora de celular (Poste Mobile). Eu tenho conta no BancoPosta desde que fui morar na Itália e quando eles lançaram um cartão de crédito pré-pago, a PostePay (é feminino porque “carta di credito” é feminino), aproveitei e fiz. E quando eles passaram a funcionar como operadora de celular, passei meu chip pra eles, pra facilitar a recarga. Sempre fiz tudo pelos diferentes apps do Gruppo BancoPosta, passando dinheiro da conta pra PostePay e pro celular pré-pago sem problema. Só que conforme novas atualizações dos apps foram saindo, a coisa foi ficando complicada. De modo que agora eu preciso da senha pra usar com o username pra acessar o app, de uma coisa chamada AppPIN que eu não me lembro de ter configurado, mas aparentemente configurei, porque ele não me deixa me registrar de novo, e uma coisa chamada PosteID, idem.

Pra fazer operações pelo app e pelo site você precisa escolher um de três métodos: ou escolhe receber uma OTP por SMS, ou usa esse PosteID que ao que parece é uma espécie de gerador de OTP in-app, ou usa um aparelhinho que parece uma calculadora. Esse aparelhinho funciona assim: você no site ou no app pede pra fazer a operação x, ele te dá um código, você enfia o seu cartão de débito na maquininha, digita o código, a maquininha te gera outro código, você digita esse segundo código no site ou no app, e libera a operação. Parece complicado – e é.

Quando voltei da Itália em janeiro desse ano, tive que reconfigurar o celular todo e ele travou o chip. Eu não lembrava o código pra desbloquear o chip, e na terceira tentativa ele bloqueou tudo e disse que só dava pra desbloquear com o código PUK. Que eu obviamente não tenho, porque ele tá no cartãozinho onde veio o chip há alguns anos, nem lembro onde guardei, e tá na Itália, não aqui. Beleza, o celular bloqueado por agora não me dá problemas, mas vai foder a minha vida quando eu for pra Itália em julho, pois chegar lá sem celular é uma merda.

Tá. Tô eu tentando com uma certa urgência recarregar meu cartão pré-pago pra pagar uma coisa importante online – deveria ser uma coisa simples, vai no app, faz, resolve, show. Mas nãaaaaaaaaaaaaao.

Primeiro que o site tem horário. De madrugada muitas funções são desativadas, inclusive a recarga do cartão pré-pago.

Segundo que o site não é nada intuitivo e você não acha as coisas facilmente.

Terceiro que: pra fazer essa operação pelo app, preciso usar um daqueles métodos acima. O SMS eu não recebo porque meu chip está bloqueado. O PosteID não consigo usar porque aparentemente falta alguma coisa na configuração, e pra resolver isso eu preciso ligar pra lá mas não posso ligar porque o chip está bloqueado porque falta o PUK. Pra recuperar o PUK, preciso ligar pra lá, mas não posso, porque o chip está bloqueado. A maquininha não está vendo o cartão quando eu coloco. OLSEGE, eu já tava às gargalhadas de desespero porque nada do que eu tentava dava certo.
Pedi pra minha cunhada ligar pra lá e tentar se passar por mim pra resolver. Ela liga com os meus dados todos, mas a mulher suspeita que ela não sou eu (ela disse que meio que gaguejou na hora de ditar o CPF) e não deixou ela fazer nada. Implorei pra ela ligar de novo; felizmente a outra pessoa com quem ela falou resolveu e mandou a porra do PUK.

De posse do PUK, desbloqueio o chip. Beleza, agora é mole, vou fazer por SMS.

Não funciona. Diz que o sistema tá com problemas.

Eu continuo rindo loucamente e tento configurar o PosteID. Não funciona porque o app tá instalado tanto no celular italiano quanto no brasileiro, e deu tilt lá – ele fica mandando eu ler o código QR que aparece no app do outro telefone, mas não aparece nada.

A essa altura já tô rindo das lágrimas escorrerem e xingando deliciosamente em italiano. Resolvo voltar praquele instinto básico que tá no DNA de todo brasileiro: a gambiarra. Achando que é mau contato na maquininha, enfio um cartão de visitas por baixo do cartão de débito e a maquininha milagrosamente lê, de modo que consigo finalmente ir adiante com a recarga.

A tela mostra um ponto de exclamação amarelo enorme e os dizeres: “ver mensagem na sua caixa de mensagens”. “Caixa de mensagens” é um link; clico e obviamente vou parar não diretamente na caixa de mensagens, mas na homepage do banco. Lá vou eu procurar a caixa de mensagens pra saber por que a operação não deu certo (afinal de contas, ponto de exclamação amarelo). A mensagem? Sua operação foi concluída com sucesso.

A próxima pessoa que disser que o Brasil é um país atrasado vai levar um tapão na orelha daqueles de deixar surdo a tarde inteira.

sobre como educar crianças e sobre quem somos enquanto adultos

Amores, tava ouvindo isso aqui agora (link no final do post) enquanto malhava bracinhos e acho que vou ter que inclusive ouvir novamente, porque é cheio de insights interessantes. Todo mundo que tem filhos ou pretende ter deveria ouvir. Na verdade todo mundo deveria ouvir, porque rola uma autoanálise maneira também. Fiquei fazendo vários paralelos sobre como eu educo a minha filha, e fiquei com dúvidas sobre como fui educada. Vou ter que perguntar pra minha mãe se eu era medrosa quando era criança, porque eu não lembro de ter ouvido muitas coisas do tipo “cuidado, não vai cair, não se suja, não sue (tá, essa é coisa de italiano, não acho que exista outro povo no mundo que mande o filho parar de suar), você é menina e não pode fazer isso ou aquilo”, mas também é verdade que eu cresci nos anos 80, onde as crianças eram praticamente abandonadas à própria sorte e o conceito de perigo ainda não tinha sido inventado.

Eu pessoalmente só fui entender que mulheres tinham mais medos do que homens quando comecei a viajar sozinha e TODAS as minhas amigas e conhecidas, tanto no Brasil quanto fora, me perguntavam se eu não tinha medo – de pegar avião, trem, ônibus sozinha, de ter que pedir informações pra desconhecidos, de ficar sozinha, de pegar estrada, de dirigir sozinha pra um lugar que não conheço, de uma cacetada de coisas que simplesmente jamais passaram pela minha cabeça como difíceis ou perigosas ou assustadoras. Mais especificamente, a ficha caiu quando a irmã de uma amiga disse que, embora morasse numa cidade micro na Toscana, o marido ia levá-la e buscá-la no trabalho todo santo dia, pois ela, que, pasmem, era de Ribeirão Preto, tinha medo de dirigir na cidadezinha. Lembro de ficar parada olhando pra cara dela sem nem entender direito do que ela tava falando. Como assim ter medo de dirigir? Como assim ter medo de dirigir numa cidade onde a velocidade máxima oficial não passa de 50, e, a julgar pela quantidade de velhos dirigindo Api (googlem Ape Piaggio), na maior parte do tempo não deve passar de 20? Onde nem sinal de trânsito tem, porque não precisa? Comecei a notar que muitas, MUITAS mulheres têm medo de dirigir, o que pra mim é uma coisa do outro mundo, embora hoje eu veja a coisa com outros olhos. Muitas tiveram acidentes e ficaram traumatizadas, de modo que entendo perfeitamente o medo, embora eu mesma tenha batido num poste na Itália (tive uma queda de pressão por causa dos remédios pra prevenção da enxaqueca – ou talvez eu estivesse tentando pegar um brigadeiro na bolsa, jamais saberemos) e minha primeira reação foi simplesmente ligar o carro novamente e voltar pra casa, até que um cara na calçada olhou pra mim e fez “não vai rolar, amore, acho que cê não tem ideia da dimensão da batida”. Quando eu caí de lambreta, depois que consegui expulsar todo mundo que tinha assistido à cena e veio socorrer, montei de novo e voltei pra casa sozinha – claramente uma reação idiota, já que eu não lembrava direito do acontecido, o que significa que bati a cabeçorra e sendo assim precisava de um hospital. O fato é que eu conheço homens que não dirigem, mas não conheço nenhum que não dirija por medo. Significa? Claro que significa. O problema não é o medo em si, é de onde ele vem. E basta você parar pra observar crianças brincando no parquinho por 3 minutos pra entender que ele vem da infância. Colocamos medo nas meninas e deixamos que os meninos se arrisquem mais. Ponto. A tal fragilidade feminina não é genética; é ambiental. Não é culpa nossa, não é um defeito nosso, não temos que nos sentir mal por isso. O que temos que fazer é mudar o nosso modo de agir, pra que isso não se perpetue, pra que nossas filhas não percam oportunidades só porque têm medo.

Fazendo todas essas conexões mentais eu entendi que desse ponto de vista, e de alguns outros também, eu sou muito mais próxima do que se espera de um homem do que de uma mulher. Além dos medos normais de que algo de ruim aconteça com meus entes queridos e de insetos que voam pra cima de mim (eles quietinhos não me dão nervoso algum; meu problema é quando eles levam pro lado pessoal), eu acho que não tenho medo de nada não. Ou então tenho, mas ignoro solenemente e vou e faço assim mesmo, o que no final das contas tem o mesmo resultado final.

Isso tudo, obviamente, explica MUITA coisa. Eu cresci num mundo que não estava ainda preparado pra mulheres que não são frágeis, fofinhas, delicadas, medrosas, desprotegidas, dependentes, lindas – possivelmente tudo isso junto. Eu não sou nenhuma dessas coisas, ou seja, me fodi lindamente. Mas tamos aí. A geração da Carol vai ser diferente. Ela pode ser o que ela quiser e provavelmente não vai ser julgada por isso, não vai carregar isso como um peso, isso não vai ter repercussões gigantes e irreversíveis sobre a saúde mental dela, que é o que aconteceu comigo e com outras mulheres que conheço que tiveram percursos parecidos com o meu. Estou trabalhando arduamente pra que ela seja feliz e faça do mundo um lugar melhor, sendo que lugar melhor significa, entre outras coisas, um lugar onde beleza não é juízo de valor, onde mulher não precisa ser fofinha, mas pode ser, se quiser e puder, onde HOMENS PARAM DE FUCKING INTERROMPER MULHERES, PORQUE EU ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO HOMEM QUE FAZ ISSO E TENHO VONTADE DE SOCAR. Homens, não sejam essa pessoa. Mulheres, não deixem que interrompam vocês nem outras mulheres na sua frente. Reclamem, façam-se ouvir, levantem a voz – LEVANTEM A FUCKING VOZ. “Não terminei ainda”, “não me interrompe”, “eu ainda não acabei de falar”, “para de interromper que é feio” – você pode imprimir em cartões e esfregar na cara da mala sem alça quando for interrompida, se ainda não tiver coragem pra reclamar vocalmente. Não vão faltar oportunidades pra praticar, e com a prática vem a perfeição, o medo vai se esvaindo. Logo logo você vai simplesmente levantar o tom de voz um tiquinho quando for interrompida, continuando a falar sem perder o fio da meada, e enfiar a mão aberta em PARE na cara do interrompedor pra ele ver o que é bom.

Então assim, eu canso de repetir pra Carol, canso mesmo, que não é vergonha nenhuma ter medo, que medos são saudáveis, são mecanismos de sobrevivência importantes, mas não podem nos impedir de fazer coisas que queremos muito fazer ou que são importantes pra nós. Finge que não tem medo, vai lá e faz. Fake it til you make it. E precisamos deixar que nossos filhos e filhas se aventurem mais, suem mais, se sujem mais, experimentem mais, façam mais, enfrentem mais seus medos. Precisamos encorajá-los a serem corajosos, não importa se são Enzos ou Valentinas.

E, como diz a moça no TED Talk, precisamos parar de fazer o dever de casa no lugar deles (a mão de marcar chega a tremer ;)

Quem souber inglês o suficiente pra entender, OUÇA, mesmo que não tiver filhos. E comente, por favor, porque eu preciso trocar umas ideias sobre isso tudo.

TED Radio Hour

você é o que você fala?

Eu estou longe do Rio desde 2002, como vocês estão carecas de saber. A julgar pela quantidade de posts banzo-related, vocês também estão carecas de saber que ser carioca faz parte da minha identidade, embora eu não me identifique diretamente com uma porção de características tipicamente cariocas. Mas meu humor é carioca; minha abertura e cara de pau pra falar com todo mundo, em qualquer lugar, também. Meu sotaque é carioca e quando eu falo “boa tarde” ao telefone e imediatamente me perguntam se eu sou do Rio, uma bolha de orgulho cresce ao meu redor como um campo de força e joga um sprayzinho de felicidade na minha cara, me deixando meio abobada por toda a duração da conversa.

O problema, se é que de problema se trata, é que desde que vim morar em Curitiba, meu contato com o sotaque carioca é quase zero, resumindo-se ao meu irmão e à minha mãe. Então o que acontece é que eu, não estando obviamente em situação de objetividade pra avaliar, não sei mais que português eu falo. Ainda me identificam como carioca, todos (pelo menos todos que algum dia assistiram a alguma novela da Globo que se passa no Leblon, com várias Helenas), mas eu uso a Carol como sotacômetro, já que ela fala carioquês comigo (ai dela se não) e curitibano na escola e com os amigos. E o carioquês dela é beeeem suave.

Quando amigos do Rio mandam áudio pelo WhatsApp, eu fico me perguntando se eu falo assim também. Quando eu ouço o podcast Lado B do Rio, que por sinal recomendo fortemente, fico em altas autoanálises pra saber se meu jeito de falar se afastou muito do que eles falam. Agora estou aqui, sorrindo bestamente desde o início do desfile na Sapucaí, mais ainda quando o comentador fala de um arco de sei lá o quê que está no Jardim Botânico do Rio, quase chorando, vendo as entrevistas com o pessoal da escola e achando o sotaque TÃO puxado que parece caricato, e me pego perguntando pros meus botões o que acontece quando a gente perde o próprio sotaque.

Porque se o sotaque é parte fundamental da sua identidade, o que acontece quando ele vai se dissolvendo? Uma parte da gente some junto? Tá, todo mundo sabe que quando a gente migra, ganha uma espécie de persona diferente pra cada país onde mora – e há quem diga que o mesmo acontece pra cada língua em que somos fluentes (a minha voz certamente muda quando mudo de língua, mas não tenho objetividade suficiente pra notar diferenças no jeito de raciocinar). O sumiço do sotaque é uma lenta dissolução do meu eu original? Com mais dez anos fora do Rio, vou começar a falar como? O que vai sobrar do Rio em mim? Quanto da minha carioquice manca vou conseguir passar pra Carol, if at all? E que consequências isso tem na minha vida, na dela?

E por que diabos estou pensando nisso tudo agora, em vez de curtir o desfile como se estivesse vendo um Fla x Flu no Maraca, comentando em voz alta, reclamando, elogiando, me indignando, como costumo fazer? Fica aí o questionamento.

(TEM QUE ACABAR O QUESTIONAMENTO!)

de dança

Pediram pra eu fazer um post sobre balé, mais especificamente sobre como é fazer balé em idade adulta.

Olha: fazer balé em idade adulta é, obviamente, muito engraçado (eu dou muita sorte na vida, porque estou sempre rodeada de pessoas que me divertem). Minha turma é de iniciantes, ou seja, ou gente que nunca fez dança na vida, ou que fez muito pouco há trocentos anos, tipo eu, então boa parte da aula é passada reclamando ou gemendo ou sacaneando alguém. Diversão garantida. O fato de estar fazendo balé depois de velha não me incomoda em absolutamente nada, pois nunca entendi o conceito de ter vergonha de estar envelhecendo. Todo mundo envelhece; quem não envelheceu é porque morreu antes, o que claramente é uma merda. A gente fica cheio de dores novas e problemas de saúde que nunca tinha tido antes? Sim. Mas, cara, até bactéria semeada na placa cheia de nutrientes, sem predadores, com casa, comida e roupa lavada vai ficando murcha ao longo do tempo e para de se reproduzir. Tem tanta coisa errada no mundo, caceta; eu vou ficar perdendo meu tempo lutando contra cabelo branco? Mas nem fodendo.

Estou terminando uma pós-graduação na qual quase todos os professores são BEM mais jovens que eu, e minhas colegas de turma todas têm vinte e poucos anos. Mas só parei pra pensar nisso agora, porque a leitora perguntou como é fazer balé depois de velha. Isso jamais foi um problema pra mim. Se amanhã eu decidir que quero fazer curso de amarelinha e só tiver turma de criança, vou fazer, sem drama. Não é esse o problema.

O problema é que eu tenho uma relação de amor e ódio com a dança. Se por um lado eu AMO ver pessoas dançando, qualquer coisa que seja, e tenho uma curiosidade quase mórbida de entender a biomecânica dos movimentos, ao ponto de não conseguir fazer nenhuma atividade física sem imediatamente pensar em quais grupos musculares estou usando, por outro eu tenho plena consciência do enorme volume que ocupo no espaço, e da maneira bestialmente desprovida de graciosidade que tenho de me mover no mundo. Sempre fui gorda, toda torta e desajeitada; não conheço outra forma de ser, e não houve um dia sequer na minha vida em que eu não tenha acordado e ido dormir pensando em como será que é ser bonita e graciosa. Adoro ver homens e mulheres dançando, de igual maneira, mas meu olhar sobre dançarinas mulheres é diferente: é uma análise muito clínica e detalhada, praticamente cirúrgica, do que eu gostaria de ser, mas nunca fui, nem nunca vou ser. De modo que eu AMO ver, mas é sempre, sempre uma experiência muito dolorosa também.

Eu não danço. Nada. Nunca. Não sou uma pessoa que dança; meu corpo não faz o que eu quero do jeito que eu quero, o resultado que ele me oferece não é o que eu quero, porque ele não é o que eu quero. O que eu faço definitivamente não é dançar balé, é fazer balé. É uma tentativa muito meia-boca de executar, na ordem mais correta possível e de preferência no ritmo certo, sequências de movimentos que o professor manda a gente fazer. Eu me expresso bem com palavras, obrigada; o resto não funciona. Aí você se pergunta, macacos me mordam, por que essa cretina faz balé então? Faço balé porque amo balé, amo demais, e não sei nem explicar bem o motivo, já que normalmente fujo de coisas delicadas como o diabo da cruz. Talvez seja recalque mesmo. Lembro que em um livro de inglês que eu usava pra dar aula tinha um texto sobre Toulouse Lautrec, que tinha as pernas curtas e todas tortas por um problema genético (inclusive essa síndrome, que só foi compreendida muitos anos depois, leva o nome dele. Se você acompanha Outlander, você já sabia disso, inclusive. Just sayin’. ). Segundo o autor do texto, rola uma teoria de que ele frequentemente pintava dançarinas porque elas eram tudo o que ele não era: proporcional, bonito, gracioso. Talvez seja por isso que eu amo tanto o balé clássico: porque ele é exatamente o oposto do que eu sou, em absolutamente TODOS os sentidos. Leve, delicado, atlético, belo, elegante, exibido, glorioso. Praticamente um não-eu.

Faço balé porque quero entender a técnica, tenho uma sanha de compreender a passagem gradual de movimentos simples pra outros complexos, quero compreender a lógica de uma coreografia e a sua relação com a sua trilha sonora. Não tenho pretensão de dançar; eu não danço, não sei como. Tenho plena consciência do ridículo que é uma mulher ogra desse tamanho, toda errada, desproporcional, o baricentro lá na puta que pariu, tentar fazer movimentos que são, por definição, necessariamente delicados e graciosos. Como eu respondi no comentário à leitora que motivou esse post, minha solução pro dilema é tríplice: não me olhar no espelho, jamais (obrigada, propriocepção linda da tia que permite que eu faça aula sem me olhar); não usar roupa de balé, porque eu não suportaria a humilhação; não me apresentar, jamais, porque, né.

Acontece com a zumba também. Na zumba é mais fácil, porque eu modifico (leia-se adapto) tudo. Movimentos sexy: só não. Sambadinha: passinho de grupo de pagode. (inserir meme da Bela Gil com os dizeres VOCÊ PODE SUBSTITUIR A REBOLADA POR UM AGACHAMENTO, POR EXEMPLO)

Tem dias em que eu chego em casa da aula e vou chorar debaixo do chuveiro? Ô, se tem. Pode ser que um dia eu não aguente mais o tranco, largue tudo e fique só na musculação? Pode, né. Não sei. Por enquanto, vou fazendo. Porque a alternativa é não ter balé nem zumba na minha vida, e, embora eu não saiba explicar o motivo exato, isso eu não quero.

Então meu conselho é: arrume uma turma tão legal quanto a minha, e faça o que bem entender. O máximo que pode acontecer é você não gostar da experiência e não querer mais fazer. Pode dar aquela deprezinha, mas se você tiver os colegas certos, isso fica em segundo plano. Se sua turma for chata, troque de turma, de escola, de bairro. Junte uns amigos e vão, abram uma turma só pra vocês. Arrume um professor maravilhoso, uma bicha má com um cabelo lyndo e analogias tão boas pra reclamar do aluno que tá fazendo errado que a sua filha fica imitando depois. Preencha a turma com uma amiga que reclama, com uma amiga que quando sobe no palco ilumina tudo sozinha de tanta felicidade, com um amigo fauno, com um amigo que fala de Platão no meio do alongamento, com uma amiga novata que ri de nervoso quando a valsinha não sai, com uma amiga que tem um dedão do pé fodido. Se não rolar, não rolou. Às vezes não rola mesmo, e faz parte da vida.

Faz. E depois me conta como foi.