Vamos falar de white people problems? Antes que os amigos comunista tudo venham me patrulhar, já adianto que 1) ao contrário dos últimos anos, não vi nenhum negro no avião (foram-se os tempos de Dilmãe), e 2) branco classe média faz muito mais merda que qualquer outro tipo de pessoa imaginável – Barra da Tijuca feelings, sorry not sorry. Além do mais, a viagem rendeu essa crônica, então tenham paciência com a tia aqui.
O voo pra Itália é sempre uma bosta. Primeiro porque costuma estar cheio de, bem, italianos, que não são exatamente disciplinados, discretos ou educados. Segundo porque está sempre cheio de, bem, brasileiros, idem. Terceiro que a Alitalia já morreu mas esqueceu de deitar: boa parte da frota tá bem velha e sonhando com a aposentadoria, a comida há anos não é mais a mesma, o pessoal de bordo é quase sempre antipático. Por essas e outras, esse meu voo de ontem não foi bem um pesadelo, mas passou perto.
Começou no embarque. Entramos no avião, fomos lá procurar nossos assentos e demos de cara com um senhorzinho que era a cara do meu avô paterno, só que com aquela barriga dura que chega a dificultar a respiração, sabe, vestindo conjunto de calça e casaco de nylon da Adidas (chamem de abrigo, de training, do que vocês quiserem). Eu e a Carol estávamos com a janela e o meio, e ele no corredor, mas ele estava sentado na janela felizão. Perguntei em inglês se ele queria ficar na janela, ele respondeu em espanhol que não falava inglês, dei uma enrolada e ele entendeu. Disse que tudo bem ficar espremido na janela, e eu obviamente fiz questão de dizer a ele que não se acanhasse se precisasse nos incomodar pra sair.
Além do senhorzinho de Adidas, também demos de cara com uma mala de mão cinza no meio do corredor. Coloquei a minha no compartimento e sentei pra esperar o fim do embarque e a decolagem, mas a mala de mão no corredor continuou ali, abandonada. Logo passou um comissário de bordo pra ajudar o pessoal a acomodar a bagagem, já que NUNCA tem espaço pra todo mundo. Começa o drama.
– De quem é essa mala?
Silêncio.
– SENHORES, DE QUEM É ESSA MALA?
O corredor inteiro se vira pra trás pra ver a mala e lá da primeira fila da nossa classe (a classe animal, obviamente) um garoto italiano levanta a mão e diz que a mala era dele, mas que ele tinha botado no compartimento. Ou seja, alguém TIROU A MALA DO GAROTO pra botar a sua própria.
Começamos bem, né?
Chega uma família pra sentar atrás da gente – avô, avó, mãe, um filho e, pelo que eu entendi, um primo do primeiro menino. O avô é uma daquelas figuras abomináveis: um Capitão Óbvio, com o agravante de achar que tá super abafando. O comandante fala “vamos pousar em 30 minutos”, ele enche o peito de empáfia e declara “vamos pousar em meia hora”. Esse tipo. Ainda por cima sofria de um mal comum a gente mal educada: um amor inexplicável por vocativos. Foi um tal de Flávia, vai pra lá, Flávia, me passa a mala, Flávia, cê tá me atrapalhando, chega pra lá, Flávia, que puta merda. Flávia, a avó, assim como todo o resto da família, tinha um tom de voz à altura de qualquer italiano, e o mesmo excesso de vocativos do avô. Foi aí que entrou o Fernando, um dos meninos. Fernando, senta. Fernando, bota o cinto. Fernando, guardou o casaco na mochila? Não mexe nisso, Fernando. Olha lá fora, Fernando.
Enquanto a Flávia chamava o Fernando sem parar, o avô levantou a mala pra botar no compartimento. Só que a mala caiu. Na minha cabeça.
– ALÁ, FLÁVIA, EU FALEI PRA VOCÊ CHEGAR PRA LÁ, FLÁVIA, VOCÊ ME ATRAPALHOU, FLÁVIA
Flávia deu um pequeno mas justificado piti, porque ela não tinha nada a ver com a história, e continuou passando instruções pro Fernando, do seu assento na fileira ao lado. Ou seja, antes mesmo do avião decolar, todos daquele setor já estávamos familiarizados com o Fernando e com o Lucas. Os dois estavam na janela e no meio, e a mãe de um dos dois, que não sei qual era, estava atrás de mim, no assento no corredor. Logo os meninos começaram a fuxicar em tudo – na tela de resolução pavorosa, no controle remoto antigão, na bandeja de plástico amarelado, no pacote com o travesseiro e a coberta. Os dois animadíssimos, e até aí tudo bem, mas falando altíssimo e cutucando os nossos assentos cada vez que enfiavam e tiravam o controle remoto do espacinho onde ele fica guardado embaixo da tela. Começaram a jogar um game qualquer, e até aí tudo bem, mas narrando TUDO em voz alta, com um canavial de interjeições e vários chutes e joalhadas nas nossas poltronas. A avó, da outra fila: Fernando, já olhou pela janela, Fernando? Botou o cinto, Fernando?
Passaram o voo INTEIRO assim. Inteiro. Mais de onze horas com esses dois cutucando a gente e falando alto. Como eu não tava no clima pra discutir, a cada cutucada eu levantava os braços pra trás e cobria a tela dele com a mão, dava um tapa nela, dava uma abanada com a mão pra ver se a criatura se tocava. Claro que não adiantou nada, porque eles tavam pilhadaços, não dormiram nada e também não pararam de falar nem de cutucar.
Voo interminável, não dormi nada, o senhorzinho do meu lado disse que era do Líbano – por isso a semelhança com meu avô, filho de sírio – mas que morava no Paraguai. Foram praticamente as duas únicas coisas que ele disse, porque ele dormiu, roncou MUITO e mudou de posição mil vezes durante o voo inteiro. Mas beleza, o voo interminável finalmente terminou. Sabem o que não terminou? A enxurrada de vocativos. Fernando, já tirou o cinto? Tomou café direito, Fernando? Não esquece o casaco, Fernando. Fernando, bota o casaco agora pra você ficar com as mãos livres pra puxar a mala, Fernando.
A filha da Flávia se levantou e esticou o braço pra abrir o compartimento da fileira na frente da minha, ou seja, duas à frente dela. Naquela posição cretina que contrariava as leis da física, LÓGICO que foi ela tentar puxar a mala que a bicha caiu – dessa vez na cabeça da mulher sentada no corredor na fila na frente da minha. A mulher ficou tão atônita que virou pra trás sem reação, somente uma expressão de WTF no rosto. A filha da Flávia pediu desculpas, repetindo “eu abri a porta e a mala voou, do nada, sozinha” mil vezes, talvez pra convencer ela mesma de que era isso mesmo que tinha acontecido. E a Flávia continuava no Fernando isso, Fernando aquilo. Nos dois assentos internos da fileira na frente da nossa, uma senhora e o filho estavam de olhos arregalados, ainda em choque com a cena da mala voadora, mas quando eu imitei o menininho do meme falando “Firnindi, vim iqui, Firnindi!”, eles começaram a rir e comentaram: nossa, o avião inteiro conhece o Fernando, que família chata.
Muito. Esperei a família do Fernando se afastar, com medo de mais alguma mala voar magicamente pra cima da minha cabeça, recolhemos nossas coisas e saímos placidamente do avião, mas ainda ouvimos a filha da Flávia gritando FERNANDO! no corredor em direção à saída. Eles ainda iam pegar uma conexão depois. Não sei o que é pior, viajar com a Alitalia ou com o Fernando.