desfile de alunos, parte i

Ando com uma certa fauna de alunos ultimamente, e gostaria de compartilhar essas estranhezas com vocês.

Hoje apresento-lhes o Piloto do Moletom.

O Piloto do Moletom é um altão interessante, embora não seja o meu tipo. Trabalhou como comissário de bordo e hoje é co-piloto de vôos chumbregas da Alitalia. Fala até bem inglês, mas, caramba, o cara só vem pra aula de moletom, e todos são HORROROSOS. Não repete quase nunca; cada semana tem um moletom diferente, mas sempre, sempre, SEMPRE horrendo.

Mas o pior de tudo é a falta de imaginação/abstração, típica da população do interior do Zaire. Outro dia a lição do livro falava de senso de humor, e tinha um texto do Bill Bryson falando da diferença entre o humor britânico, irônico, e o americano, tendendo pro infantil. Terminava com um encontro do autor com um taxista colega de ironia. Ele entrou no táxi e perguntou:

“Are you free?”

Ao que o taxista respondeu, com sorriso maroto:

“No, I charge just like everybody else.”

O Piloto do Moletom não entendeu. Nem depois da punchline, e nem depois que eu expliquei. Tudo bem não achar graça, até porque piada que tem que ser explicada não é mais engraçada, mas ele não entendeu mesmo. Levou tipo meia hora pra sacar que free nesse caso significava grátis. Cacetes estrelados! E olha que não é burro! No final da aula olhou pra mim e disse: meu dever de casa então vai ser desenvolver um senso de humor.

Boa sorte, darling.

Conheci um casal muito estranho hoje.

Depois de um dia inteiro sem fazer nada (o feriado aqui é hoje), resolvemos coroar nossa preguiça infinita jantando no McDonald’s. Ainda eram seis da tarde, mas com essa merda de outono já estava escuro. Enquanto estávamos na fila um gordinho acena pro Mirco, que me explica quem era: o filho do Brbfsrsjfsf, assim chamado porque ele mais grunhia do que falava, o dono da vendinha em frente à casa da Chiara e onde ela compra pão todos os dias. Brlmsfmnrb morreu ano passado, e agora é a viúva quem fica na vendinha. Mas eu ainda não tinha conhecido o filho, que se chama Daniele.

Daniele nos chamou pra sentar à mesa com ele e a namorada coreana, Une, que veio pra Itália estudar piano. Cara, um casal mais bizarro eu ainda tô pra conhecer. Ele é gordo, alto e agitado, fala SEM PARAR e, acreditem, muito mais rápido do que eu. Ela é completamente muda, de oclinhos, toda intelectual e frágil. Ele tem uma loja de móveis tabajara, uma casona, uma Lotus e uma Ferrari na garagem. Ela estuda piano há seis anos. Tipo assim, toooooootalmente nada a ver. Sábado vamos jantar todos juntos no Giovanni, aquele lá na casa do cacete. Vamos ver se alguém consegue embebedar a garota pra ela soltar algumas palavras.

a família buscapé na holanda

O dia estava delicioso. Chegamos cedo na Arianna pra almoçar, pra dar tempo de lavar os cachorros. Acabamos também lavando o galinheiro, colhendo manjericão pra fazer pesto, quebrando as primeiras nozes do ano e arrancando um galhão gigante da nogueira, que ficou meio partido depois do último vendaval e estava ameaçando a vida de pombos, coelhos, patos, perus, galos, galinhas e gansos. Colhemos pepino na horta, os tomates ainda não estavam bons, descobrimos uma árvore que dá uma fruta que não é nem pera nem maçã, e é incomível de tão dura e fibrosa, descobrimos uma nogueira jovem que nasceu sozinha sem ninguém convidar mas vai ter que ser transferida porque está fazendo sombra por cima das abobrinhas, Legolas sentou no meio da horta pra comer nozes, pegamos ovos quentinhos pra trazer pra casa, reguei as hortênsias de fora que estavam murchas murchas, e, hear, hear, ouvimos as aventuras de Arianna e companhia na Holanda.

Arianna e Ettore nunca fazem nada de interessante e por isso nunca têm nada pra dizer além de quem casou, quem separou, quem trocou de carro, quem pariu, quem morreu. Agora eles têm a famosa viagem à Holanda pra contar. Foram pra lá pela terceira vez esse ano, mas agora com os tios do Mirco, que nunca tinham andado de avião. Guerriero não é um palerma; foi motorista de caminhão por muito tempo e conhece a Europa inteira. Sabe fazer TUDO – consertar qualquer coisa, construir tudo, cozinhar o que você inventar – mas não é exatamente descolado, entende. Então estão os quatro na estação de trem sei lá de onde pra pegar um trem não sei pra onde, e mandam o Guerriero ir pedir informações – imaginem um homenzarrão com os dedos mais grossos que você já viu na sua vida, cara de bonachão, hérnia umbilical cutucando a camiseta, sem falar nem italiano mas somente a horrível variante dialetal de Santa Maria degli Angeli (Angioli, como dizem eles). Imaginem esse homem, que nunca andou nem de metrô, pedindo informações a um holandês. Volta ele dizendo que o trem que eles tinham que pegar era aquele mesmo que eles achavam que fosse. Embarcam e começam a conversar. Passa o tempo e Guerriero começa a rir sozinho. Perguntam o que foi, e ele, que obviamente não teve coragem de ir lá perguntar nada pro holandês, solta a seguinte pérola, rolando de rir da própria piada iminente:

– Encontrei um sujeito de Castelnuovo [um buraco aqui no interior do Belize, deve ter tipo dez habitantes] e ele disse que o trem era esse…

Meno male que o trem não tava errado. Do jeito que são enrolados, era capaz de irem parar na Arábia Saudita. De trem.

ô gente bizarra…

Tudo bem que os umbros têm fama de estranhos e fechadões, mas assim já é demais.

Simona entra no escritório dos tradutores dizendo que um dos alunos-zumbis, um daqueles que nem sorriem quando dou buongiorno e sempre respondem “nada…” quando pergunto o que fizeram de bom no fim de semana, resolveu aumentar as horas do curso. Das 30 horas iniciais, que em teoria seriam só pra melhorar as notas na escola, resolveu passar pra 50. Tá de sacanagem, falei. Ela: não não, a mãe telefonou dizendo que ele já começou as aulas de reforço na escola e acerta todas as respostas, os colegas perguntam o que ele está fazendo ali se sabe tudo, os professores acham ótimo, ele está cheio de autoconfiança e quer continuar com você porque disse que se deu superbem, que vocês conversam e coisa e tal. A mãe depois veio pessoalmente à escola pra falar comigo e confirmou a história.

Fiquei de boca aberta. O garoto nunca disse uma palavra além das respostas aos exercícios. Nunca riu, nunca fez uma pergunta, e das minhas piadas só ri educadamente. O progresso que eu notei foi pequeno e eu sempre achei que ele odiava as aulas e morria de tédio. Agora me vem com essa. Dá pra entender?

inclua-me fora dessa

E hoje tive aula com o aluno mais escroto do mundo.

O cara tem uma malharia, faz suéteres. É conhecido na cidade por não pagar impostos, não fazer jamais uma fatura, usar material de décima qualidade e fazer produtos de qualidade duvidosa, vendidos por camelôs a imigrantes sem gosto e sem dinheiro. O galpão dele é ao lado do antigo galpão do concessionário do pai da Chiara, e ela contou que há alguns anos a Guardia di Finanza baixou no galpão do cara, de metralhadora em punho (adorei esse detalhe cinematográfico), pra vasculhar tudo. O cara sumiu por meses, sabe-se lá onde (provavelmente no Brasil, onde ele tem casa), e a multa chegou a dez milhões de euros.

Enfim. Eu não sabia de todo esse background quando conheci a figura. Entra esse hominho barrigudo, com cabelos tingidos de acaju, óculos Valentino horrorosos, sapato de pele de cobra. Fala boa tarde e passa por nós como um raio, indo direto lá pra cima, conversar com a chefa, deixando no ar um rastro de perfume em excesso.

Não é burro, lógico, senão não tinha feito a grana que fez. Disse que, se falasse inglês, seria a terceira potência mundial, depois dos EUA e da Rússia. Palavras textuais suas, e tive que me controlar pra não rir, lógico. Tem duas Ferraris, que ele dirige “em pista” nos fins de semana. “Andare in pista” e “fare shopping” são as únicas suas atividades recreativas – palavras dele. Então: não é burro, mas nem preciso dizer que não estudou nada, e por isso não entende nada. Eu falo devagar – JURO! – e ele nada. Boto a fita e ele reclama que falam rápido demais (não é verdade, cacete, é um livro didático!). Mas o pior de tudo é a mãozinha. Porque quando eu estou explicando uma coisa, normalmente pela décima vez, ele acha que entendeu (mas não), e começa a falar junto comigo, explicando a sua teoria. Além do horror de interromper os outros, que eu acho uma das coisas mais terrivelmente grosseiras do mundo, ele ainda levanta a mãozinha, como quem diz, deixa o papai aqui falar, filha. Caracaaaaaaaaaaaaaaaa! Cada vez que ele levanta aquela mãozinha eu me imagino em um desenho animado, pegando aquele braço peludo bronzeado nojento, dando um golpe de caratê e jogando o bicho no chão.

Como desgraça pouca é bobagem, ele quer ter aula todos os dias. Matem-me, por favor.

hm

Um estresse tremendo hoje na agência.

Acontece que a nossa chefe é uma louca desvairada, histérica e, I must add, sem dentes nas laterais da boca. Seu “casamento aberto” é famoso na cidade e parece que essa semana o amante oficial não deu as caras. Então a criatura entrou em crise e saiu catando pelo em ovo até achar.

Achou com a coitada da Vanessa e com o Stefano, o bonitão, que aparentemente passaram uma certa parte do expediente ontem com um browser aberto – vejam bem, isso não prova que eles não estavam trabalhando, até porque não houve nenhum atraso na entrega de trabalhos, nenhum problema com clientes, nada. Em particular no caso do Stefano, que é macho, eu entendo: no dia seguinte a uma Copa do Mundo que a Itália não vencia há décadas, é natural que quem não tem internet em casa vá catar vídeos dos gols na internet. Desde que isso não afete o seu ritmo de trabalho, não vejo qual é o problema. O fato é que passamos o dia inteiro ouvindo a chefa chamar os dois de idiotas e cretinos, coisa muito desagradável, já que são colegas de trabalho que sempre se deram bem com todo mundo e de quem os clientes e nós só temos boas coisas a dizer. A Vanessa, que é um amor de menina, é uma das pessoas mais eficientes que eu já vi. Ouvir a coitada sendo chamada de imbecil e cretina pelas costas me deu uma irritação ímpar. E a coisa chegou ao ponto que os dois foram mandados pra casa, suspensos, e a chefa começou a falar das pessoas que estava procurando pra substitui-los.

Cara, vou te dizer, desde que eu saí do Flash (quando saí do Brasil) nunca mais tive um chefe normal. Puta que o pariu!

Fomos ver o jogo da Itália na casa do Marco e da Michela. Ficamos de levar as pizzas, e o mais engraçado é que ninguém se ofereceu pra fazer isso por nós – ainda que eu e o Mirco sejamos os únicos que não têm mamãe e sogrinha perto e/ou disponíveis, os únicos que trabalham 12 horas por dia, os únicos que trabalham longe de casa e têm maiores probabilidades de chegarem atrasados. A pizza atrasou e quando chegamos ainda fomos saudados com um “Poxa, já estava quase desmaiando de fome”. A mesa estava montada na varanda, porque o Marco é fanático por limpeza (desde que seja a Michela que limpe, bem entendido) e não admite migalhas dentro de casa. Ou seja, vimos o jogo a oito metros de distância da televisão, comendo pipoca e pizza em pé, amontoados na varanda. Primeira e última vez, juro.

Precisa dizer que torcemos silenciosamente pro Gana o tempo todo, eu e Mirco? Não, né?

malona

Eu tenho tido uns alunos meio estranhos ultimamente. A última figura que me apareceu hoje foi uma mala sem alça filha de uma outra mala sem alça que fez algumas aulas comigo e outras com a Liese, e foi odiada por nós duas. A filha já fez aula com todo mundo ali na escola, e sempre foi odiada por todo mundo; era uma espécie de lenda metropolitana que eu ainda não tinha conhecido.

Começamos mal: ela é o tipo de pessoa que acha realmente que uma aula a cada três meses, sem livro, só “conversação” (como odeio esse termo!), é suficiente pra manter o seu parco inglês funcionando. E quando vi a figura a coisa só piorou: clássica balzaquiana que pensa que tem 18 anos (tudo bem se você tem um corpo de 18, mas isso não significa que você tenha que se vestir como se tivesse 18, pelamordedeus), dois quilos de pó-de-arroz e base na cara, boca inchada de silicone, um nariz com cara de plastificado mas que não é porque o da mãe é idêntico, sorriso forçadérrimo de Katie Holmes, cabelos chapinhados até o bulbo, decote vertiginoso mostrando os peitos siliconados e a lingerie de florzinha, cinto com brilhantes na fivela, pulseira com o seu nome escrito em brilhantinhos, e, cerejinha no chantilly, um crucifixo imenso formado por duas vezes a palavra amore ao contrário, também de brilhantes. O perfume não podia ser mais óbvio: doce e fortíssimo.

Aí ela abre a boca e começa a falar. Tem duas lojas de roupas pra homens, uma no shopping de Trevi e a outra no centro de Foligno; de manhã ela não trabalha porque tem vendedoras nas duas lojas, e só começa no “batente” depois do almoço; é formada em Belas-Artes e desenha as camisas das lojas, mas já imagino o que não deve sair dos seus sketch books; nos fins de semana sai com os amigos pra discoteca. A conversation foi indo, horror dos horrores, aquela pronúncia italiana hedionda, palavras em italiano misturadas na conversa, ela disse que confundia inglês com francês (…) porque falava francês muito bem, embora tenha soltado um “Tulúse-Lautréc-a” em um certo momento; falou que viaja muito, ah, sim, porque viajar abre a mente (…), mas viaja sempre de excursão (……….). Quando fiz a pergunta fatal – o que você lê? – a resposta foi a única possível: “aaaah amo molto Paulo Coelho, Dan Brown, Sidney Sheldon…”

Juro, passei sessenta minutos me segurando pra não encher a garota de tapas na cara. Quando finalmente saímos da clausura, vi Simona sentada na secretaria, segurando o riso. Quando a mala foi embora, ela começa: por que demorou tanto? Tava doida pra ver a tua cara depois de uma hora com essa insuportável! Imita, imita! Você também sentiu vontade de encher a cara dela de porrada?

Simona e eu somos almas gêmeas em certas coisas.

a foca

Há alguns dias nossa querida vizinha fofoqueira, a Foca Monaca, nos surpreendeu. Eu sei que ela freqüenta a tia chata do Mirco, mas não imaginava que se lembrasse dos nossos nomes, até porque não damos muita confiança. Mas outro dia cheguei em casa depois de uma aula com o Paulo Cintura, às dez da noite, e dei de cara com ela e a família pegando um arzinho fresco em cadeiras de plástico no jardim de casa. O yorkshire histérico, que acho que se chama Jimmy mas não tenho certeza, começou a latir. Aí veio a surpresa, porque ela começou a falar com o cachorro, vai lá, Jimmy, vai lá com a Letizia, olha quem é, é a Letizia, Jimmy! E eu pensando, comé que essa mulher lembra do meu nome? Porque aqui, mesmo todo mundo me chamando de Letizia que nome mais italiano não existe, o fato de que eu não sou italiana faz com que todos esqueçam meu nome, automaticamente, como se eu me chamasse Mohamed, Ivanova, Suely Maria, Rosemary, Tanaka, Shun-Li ou outra coisa que eles não conseguem pronunciar. Estranhamente, quando eu chamei o cachorro veio, em vez de continuar latindo como sempre faz. Veio, e ainda deitou no chão, no meio da rua, de barriga pra cima. Enquanto fiquei lá coçando a barriga dele, porque afinal de contas ele é histérico e chato mas é sempre um cachorro, leia-se gente boa, a Foca se aproximou e começou o interrogatório:

– Ué, cadê o Mirco?
– Não sei, acabei de chegar, ainda não nos falamos. Não sei nem se está em casa.
– Eu achei que você trabalhasse com ele.
– Também trabalho com ele. Mas dou aula de inglês em Perugia quando não estou na oficina [reparem no meu estranho bom humor nesse dia; em vez dos tradicionais sim e não resolvi ser explicativa]
– Ah tá… E volta a essa hora?
– Pois é, coisas da vida.
– Você faz a contabilidade da oficina?
– Faço, entre outras coisas.
– Ah tá… E não tem secretária não?
– Não, sou eu a secretária agora, só que eu não fico lá oito horas por dia.
– Ah tá…

Nisso chega o Mirco de lambreta. Olha ele aí, eu digo. Por isso que ele não ligou como faz sempre quando termino de dar aula, porque tava de lambreta.

– Ué, mas ele usa lambreta? E o carro?
– Fui jantar na casa da Arianna [o Mirco não chama os pais de pai e mãe, mas de Ettore e Arianna]
– Ah tá… Mar por quê, o carro quebrou?
– Não, é que tá fresquinho, gosto de andar de lambreta. E eu queria parar na estrada pra pegar um girassol pra Z [sou eu], mas estavam todos muito longe da beira da estrada, não consegui.
– Ah tá… Então essa lambreta é de vocês, não sabia…
– Bom, vamos subir, né? Boa noite!
– Boa noite, boa noite!

Na manhã seguinte saímos cedo pra oficina e vimos a Foca sentada, de camisola lilás de babados, no balancinho do quintal. Dormindo.